31 de março de 2018 – Semana Santa Sábado Vigília Pascal

Na Vigília Pascal há sete leituras do AT, uma do NT e o evangelho do Ano (A, B, ou C).

Neste comentário, limitamo-nos à leitura da criação (1ª leitura), à leitura obrigatória da passagem pelo Mar Vermelho (3ª leitura do AT) e às palavras do apóstolo sobre batismo, morte e ressurreição (Rm 6). Segue o evangelho do túmulo vazio.

1ª Leitura: Gn 1,1-2,2 (versão breve: Gn 1,1.26-31)

Por motivos pastorais costuma-se ler na vigília pascal apenas a versão breve com a criação do ser humano. É compreensível, mas se perde a alusão da “luz” do “primeiro dia da semana” com a “luz” da ressurreição que é uma nova criação (cf. Rm 4,17; 2Cor 4,6; 5,17 e o início do evangelho de hoje).

Todos os povos responderam as perguntas sobre as origens do mundo com diversos mitos (narrativas simbólicas sobre as origens; Gênesis significa “origem”) na sua própria cultura, língua e nível de compreensão. Para ser entendida há 2000 ou 3000 anos atrás, a Palavra de Deus não podia falar nem na língua dos anjos do céu nem nos conceitos científicos de hoje, mas precisava-se adaptar às limitações da época (inculturação/encarnação da Palavra). Portanto, hoje precisamos traduzir esta Palavra para nossa língua e conceitos atuais: ex. Deus criou através do big bang (explosão primordial há 14 bilhões de anos) e da evolução das espécies.

Para evitar interpretações fundamentalistas (cf. Verbum Domini n.º 44) é importante descobrir qual era a intenção do autor bíblico, e a partir daí entender seu significado para hoje. Não se entende um texto sem o contexto.

Gn 1 é muito mais um “poema” em 7 estrofes (7 dias) do que um relato científico (Gn 2,4b-25 já o contraria na sequência e no método da criação). Foi escrito cerca de 550 a.C. no exílio da Babilônia (atual Iraque), usando o conceito comum da época sobre a estrutura do mundo (ex. as águas de cima (no céu de onde vem a chuva) e as águas em baixo (mar, rios) são separadas por uma chapa firme, o “firmamento” (com compartimentos para chuva, vento, raios).

Os babilônios tinham seus próprios mitos e deuses astros, ex. sol, lua, estrelas, mar eram todos adorados como divindades; o mundo surgiu da luta desses deuses; o homem veio do sangue de um demônio.Mas o autor bíblico rejeita estas ideias. Sua intenção é demonstrar que um único Deus criou tudo isso, com livre vontade, com soberania e o poder da Palavra (Deus falou, e assim se fez). As criaturas não são mais deuses dos quais se precisa ter medo, mas devem ser submetidas pelo homem (o progresso científico pode partir daí, mas o mesmo desligando-se de Deus na modernidade leva a destruição, querendo ser igual a Deus e não respeitando os limites, cf. Gn 3-4). Como o autor bíblico aceitou certos conceitos da época, rejeitando outros, assim podemos hoje aceitar certas ideias ou teorias (ex. observações e teorias cientificas) e rejeitar outras (ex. ateísmo, esotérica, experiências letais com embriões…; cf. 1Ts 5,21-22).

1No princípio Deus criou o céu e a terra.

(2A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam a face do abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. 3Deus disse: “Faça-se a luz!” E a luz se fez. 4Deus viu que a luz era boa e separou a luz das trevas. 5E à luz Deus chamou “dia” e às trevas, “noite”. Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia. 6Deus disse: “Faça-se um firmamento entre as águas, separando umas das outras”. 7E Deus fez o firmamento, e separou as águas que estavam embaixo, das que estavam em cima do firmamento. E assim se fez. 8Ao firmamento Deus chamou “céu”. Houve uma tarde e uma manhã: segundo dia. 9Deus disse: “Juntem-se as águas que estão debaixo do céu num só lugar e apareça o solo enxuto!” E assim se fez. 10Ao solo enxuto Deus chamou “terra” e ao ajuntamento das águas, “mar”. E Deus viu que era bom. 11Deus disse: “A terra faça brotar vegetação e plantas que deem semente, e árvores frutíferas que deem fruto segundo a sua espécie, que tenham nele a sua semente sobre a terra”. E assim se fez. 12E a terra produziu vegetação e plantas que trazem semente segundo a sua espécie, e árvores que dão fruto tendo nele a semente da sua espécie. E Deus viu que era bom. 13Houve uma tarde e uma manhã: terceiro dia. 14Deus disse: “Façam-se luzeiros no firmamento do céu, para separar o dia da noite. Que sirvam de sinais para marcar as épocas, os dias e os anos, 15e que resplandeçam no firmamento do céu e iluminem a terra”. E assim se fez. 16Deus fez os dois grandes luzeiros: o luzeiro maior para presidir o dia, e o luzeiro menor para presidir à noite, e as estrelas. 17Deus colocou-os no firmamento do céu para alumiar a terra, 18para presidir ao dia e à noite e separar a luz das trevas. E Deus viu que era bom. 19E houve uma tarde e uma manhã: quarto dia. 20Deus disse: “Fervilhem as águas de seres animados de vida e voem pássaros sobre a terra, debaixo do firmamento do céu”. 21Deus criou os grandes monstros marinhos e todos os seres vivos que nadam, em multidão, nas águas, segundo as suas espécies, e todas as aves, segundo as suas espécies. E Deus viu que era bom. 22E Deus os abençoou, dizendo: “Sede fecundos e multiplicai-vos e enchei as águas do mar, e que as aves se multipliquem sobre a terra”. 23Houve uma tarde e uma manhã: quinto dia. 24Deus disse: “Produza a terra seres vivos segundo as suas espécies, animais domésticos, répteis e animais selvagens, segundo as suas espécies”. E assim se fez. 25Deus fez os animais selvagens, segundo as suas espécies, os animais domésticos segundo as suas espécies e todos os répteis do solo segundo as suas espécies. E Deus viu que era bom.)

26Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e segundo à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, e sobre todos os répteis que rastejam sobre a terra”. 27E Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou: homem e mulher os criou. 28E Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, sobre os pássaros do céu e sobre todos os animais que se movem sobre a terra”. 29E Deus disse: “Eis que vos entrego todas as plantas que dão semente sobre a terra, e todas as árvores que produzem fruto com sua semente, para vos servirem de alimento. 30E a todos os animais da terra, e a todas as aves do céu, e a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou todos os vegetais para alimento”. E assim se fez. 31E Deus viu tudo quanto havia feito, e eis que tudo era muito bom. Houve uma tarde e uma manhã: sexto dia.

(2,1E assim foram concluídos o céu e a terra com todo o seu exército. 2No sétimo dia, Deus considerou acabada toda a obra que tinha feito; e no sétimo dia descansou de toda a obra que fizera.)

Correspondem-se os dias: 1º e 4º (a luz, e as lâmpadas do céu), 2º e 5º (o mar e o ar, e os seres que os povoam), 3º e 6º (a terra seca, e os animais na terra, e à tarde da 6ª ainda o ser humano). Chama atenção que o homem não tem um próprio dia, fato que o liga com as outras criaturas; sabemos que na teoria da evolução, o homem é “descendente de macaco”, ou melhor, tem um ancestral comum com os macacos de hoje. Mas na Bíblia, o homem tem uma própria missão: ser “imagem de Deus” (tanto homem quanto mulher!), “submeter e dominar” a criação, não quer dizer destruir (crise ecológica), mas governar com inteligência, amor e cuidado (Gn 2,15: “cultivar e guardar”), não como dono, mas como administrador e bom pastor.

Para o autor de Gn 1 que faz parte da “tradição sacerdotal”, a ordem espacial corresponde à ordem temporal. O número 7 já aparece na Babilônia como medida do tempo (7 dias são uma fase da lua; Israel e Babilônia tinham um calendário lunar). No exílio, o povo judeu estava privado do seu lugar sagrado (o templo de Jerusalém estava em ruínas), mas mantinha seu tempo sagrado (principalmente a celebração do sábado). Como em Ex 16, Deus institui o sábado como dia de descanso contra toda escravidão (primeira lei trabalhista: Ex 20,8-11; Dt 5,12-15), ele mesmo descansa e abençoa toda criação. Em Gn 2,1-3, o sábado é o dia da presença de Deus com suas criaturas, o dia que não declina (cf. Ap 22,5).

No Novo Testamento, o dia sagrado passa para o “primeiro dia da semana”, porque neste dia Jesus ressuscitou e se fazia presente na reunião dos discípulos (Jo 20; At 20,7). O primeiro dia é agora o “Domingo” (latim Dies Domini = Dia do Senhor) e significa a nova criação, pela qual “o Pai ainda trabalha e Eu também” (Jo 5,17).

 

3ª leitura: Ex 14,15-15,1

Esta leitura representa o ápice da libertação da escravidão do Egito, uma experiência fundamental do povo de Deus. Os judeus a leem ou narram na sua celebração da páscoa (seder, haggadá). Os cristãos a leem como 3ª leitura na vigília pascal prefigurando a salvação pelas águas do batismo.

A passagem pelo mar “vermelho” (13,18; em hebraico, “dos caniços” ou “dos juncos”; cf. 2,3; 2Rs 9,26) assinala topograficamente a saída do povo: é a última batalha, não combativa, a última fronteira.

O mar Vermelho divide a geografia (entre a África e a Ásia), divide a história e se converte em linha divisória da existência. A passagem pelo mar é como que nascimento do povo de Israel, sua liberdade e independência. Para os israelitas é como paradigma, para nós “passar” é salvar-se. O mar Vermelho é a fronteira do Egito; passando o mar, o povo de Israel deixa o território do Egito, e consequentemente, ganha outra condição: passa da escravidão à liberdade.

O faraó se arrepende de ter permitido a saída dos escravos e lança os exércitos para recapturar o povo que, com rapidez, iniciou o Êxodo (palavra grega que significa: “saída”; cf. 12,37-42; 13,17-20; 14,5-9). Os israelitas, vendo os soldados e os carros do faraó no encalço, se apavoram e se rebelam contra Moisés e contra Deus (vv. 10-12). Moisés consola reafirmando o propósito de Javé para libertar seu povo (3,7s; 6,1): “Não temais! Permanecei firmes e vereis o que o Senhor fará hoje para vos salvar… O Senhor combaterá por vós e vós ficai tranquilos” (vv. 13-14).

15O Senhor disse a Moisés: “Por que clamas a mim por socorro? Dize aos filhos de Israel que se ponham em marcha.16Quanto a ti, ergue a vara, estende o braço sobre o mar e divide-o, para que os filhos de Israel caminhem em seco pelo meio do mar.17De minha parte, endurecerei o coração dos egípcios, para que sigam atrás deles, e eu seja glorificado às custas do Faraó, e de todo o seu exército, dos seus carros e cavaleiros.18E os egípcios saberão que eu sou o Senhor, quando eu for glorificado às custas do Faraó, dos seus carros e cavaleiros”.

A pergunta de Deus supõe uma peça que faltava: uma súplica de Moisés como na oração de 5,22s. Repete-se o esquema de ordem e anúncio (cf. vv. 1-4). A ação avançará para enfrentar o limite extremo do perigo. Aí se mostrará a glória de Javé.

A narrativa da passagem pelo mar é uma mescla de pelo menos duas tradições: a tradição mais antiga fala de certo vento que baixa a maré (v. 21) e permite a passagem dos israelitas; a tradição mais nova (sacerdotal) destaca o papel de Moisés como intermediário que recebe ordem e a cumpre, “ergue a vara, estende o braço sobre o mar e divide-o”, assim abrirá caminho seco entre duas muralhas de água.

“Saberão que eu sou o Senhor, quando eu for glorificado …”. Expressão usada em que lembra o profeta Ezequiel (Ez 6,7.13; 7,4.9; 11,10.12 etc.) mostrando o caráter nacionalista e as vezes discriminador a teologia oficial pós-exílica (Javé com poder universal, israelitas separados como povo eleito, cf. 8,18; 9,4.26; 10,23; 11,7; 33,16). A glória do Senhor se revelará no deserto (16,7.10), na nuvem luminosa do Sinai (24,16s etc.) e depois no templo de Jerusalém (1Rs 8,10s).

19Então, o anjo do Senhor, que caminhava à frente do acampamento dos filhos de Israel, mudou de posição e foi para trás deles; e com ele, ao mesmo tempo, a coluna de nuvem, que estava na frente, colocou-se atrás,20inserindo-se entre o acampamento dos egípcios e o acampamento dos filhos de Israel. Para aqueles a nuvem era tenebrosa, para estes, iluminava a noite. Assim, durante a noite inteira, uns não puderam aproximar-se dos outros.

A função destes dois vv. é atrasar a solução e abrir espaço para uma descrição de grande densidade simbólica. A nuvem condutora desempenha uma função nova: adensar a escuridão e imobilizar os atores até o momento oportuno.

Introduz-se o anjo do Senhor (cf. 3,2; 23,20-23) que representa o próprio Senhor (Javé). Pela “coluna (de fogo e) da nuvem” (cf. v. 24; 13,21s), Javé separa os povos: ilumina o caminho do seu povo, enquanto o obscurece para os egípcios. A coluna de nuvem e de fogo representa a presença e a direção de Deus, função posterior do templo, da lei e dos sacerdotes no pós-exílio (cf. Ex 40,34-38; Lv 9,24; Nm 11,24-30; Dt 4,11-14; Ne 9,12-14; Is 4,5; 30,19).

21Moisés estendeu a mão sobre o mar, e durante toda a noite o Senhor fez soprar sobre o mar um vento leste muito forte; e as águas se dividiram.22Então, os filhos de Israel entraram pelo meio do mar a pé enxuto, enquanto as águas formavam como que uma muralha à direita e à esquerda. 23Os egípcios puseram-se a prossegui-los, e todos os cavalos do Faraó, carros e cavaleiros os seguiram mar adentro (vv. 21-24).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 90) comenta: Uma tradição mais antiga fala de certo vento que baixa a maré e permite a passagem dos israelitas, mas não dos carros que são tragados pela subida das águas. Sobrepõe-se uma tradição mais nova, segundo a qual Moises abre caminho seco entre duas muralhas de água. Não se sabe o que de fato aconteceu. Mas a vitória será usada pela teologia exílica e pós-exílica como fundamento do poder de Javé (vv. 18.31, cf. Dt 1,30; 11,4; Js 24,7…). Todo esse poder, porém, só é de fato sagrado se estiver a serviço da libertação dos oprimidos e da construção de uma sociedade justa, solidaria e fraterna

Existem neste livro do Êxodo várias versões do mesmo fato da libertação: uma versão em forma de poesia, o canto heroico de Ex 15 (o salmo responsorial desta leitura); em nossa leitura, temos duas versões misturadas num único relato: uma versão mais realista e psicológica, e outra mais litúrgica, doutrinal e abstrata, atribuída à redação sacerdotal no exílio babilônico. Com essas duas, o último redator (Esdras?) compôs o presente capítulo (no pós exílio). Isso explica as repetições temáticas e as mudanças de tonalidade.

Na tradição mais velha, o faraó toma a iniciativa, o povo discute com Moisés (vv. 5-7.10-12), depois entram em jogo os elementos (vento, mar, chão seco, noite) e a derrota egípcia é salvação para os israelitas. Na tradição posterior (sacerdotal), Deus toma a iniciativa (vv. 1-4.8-9) e Moisés é intermediário (ordens e anúncios, em seguida execução e cumprimento) que, como numa liturgia, “estende a mão” com a vara (v. 16) para “dividir o mar” que fica “como uma muralha”.

Na escuridão, o silêncio da noite e dois elementos cósmicos: o mar hostil, devorador, e o vento a serviço de Deus (Sl 104,4). “De pé enxuto”, lit. “sobre a terra seca”, como numa nova criação e no final do dilúvio, a água se retira e a terra seca aparece no meio dela (Gn 1,9; 8,1-5). A água hostil (cf. Gn 1,2; Sl 18,5s) se transforma em muralha protetora, em passagem segura para a luz do amanhecer que vem do leste. Direita e esquerda significam também sul e norte.

24Ora, de madrugada, o Senhor lançou um olhar, desde a coluna de fogo e da nuvem, sobre as tropas egípcias e as pôs em pânico. 25Bloqueou as rodas dos seus carros, de modo que só a muito custo podiam avançar. Disseram, então, os egípcios: “Fujamos de Israel! Pois o Senhor combate a favor deles, contra nós” (vv. 24-25).

Os egípcios penetravam pelo mesmo caminho. Onde os escravos fugitivos com sua bagagem leve passaram com facilidade, os “600 carros” (cf. v. 7) do exército atolaram. Agora é a vez dos egípcios de ter medo, entrar em pânico e fugir. O momento é a última vigília da noite, das 2 às 6h da manhã. A salvação costuma chegar pela manhã (Sl 17,15; 57). Quem combate, não é o povo dos hebreus que só assiste (cf. vv. 13s) é Javé, “o Senhor combate”, como guerreiro (cf. 15,3), em favor deles.

Menciona-se um elemento que faltava, o fogo, sinal da presença de Deus em Gn 15,17 e depois em Ex 19,18. Poderíamos relacionar a “coluna de fogo e de nuvem” (13,21; 14,19s) com a explosão vulcânica em Santorin (Thera), uma ilha grega onde surgiu uma cratera enorme no mar e causou a maior erupção vulcânica dos últimos 10.000 anos. Um vento pode ter levado a nuvem vulcânica (piroclasto) até o Egito (800 km de distância) onde causou trevas, granizo e chuvas de pedra e fogo, poluindo o rio Nilo e provocando pragas e doenças. A coluna alta de fogo e nuvem de cinzas pode ter se elevado até a estratosfera, mas do Egito talvez não teria sido mais visível. Metade da ilha caiu no mar e, junto com a erupção, pode ter causado um enorme tsunami que chegou ao Egito com 2 m de altura (suficiente para acabar com os cavalos e cavaleiros). Em todo tsunami, antes de chegar a onda gigante (“como muralha”), as ondas pequenas se retiram e abrem o chão do mar, assim os hebreus fugitivos podiam ter passado rapidamente pelo mar raso dos juncos “de pé enxuto”.

A erupção em Santorin aconteceu entre 1600 e 1500 a.C., mas não se conhecem registros egípcios da erupção ao não ser as trevas, barulhos e chuvas torrenciais que devastaram grande parte do Egito e foram descritas na “Estela da tempestade” do faraó Amósis (1539–1528). A ausência de tais registros é por vezes atribuída à desordem geral no Egito em torno do Segundo Período Intermediário. Mas os efeitos da erupção junto com o tsunami por ela causada devem ter ficado na memória da região toda influenciando a descrição de elementos na tradição do êxodo (no tempo de Ramsés II, 1250 a.C.) como também o desaparecimento de Atlântida descrito por Platão (em Timaios e Critias). O relato platônico originalmente deriva dos relatos do legislador ateniense Sólon (638–558) que, durante sua viagem em Saís, no delta do Nilo, tomou conhecimento, por intermédio de sacerdotes egípcios, do desaparecimento de um grande império insular.

26O Senhor disse a Moisés: “Estende a mão sobre o mar, para que as águas se voltem contra os egípcios, seus carros e cavaleiros”. 27Moisés estendeu a mão sobre o mar e, ao romper da manhã, o mar voltou ao seu leito normal, enquanto os egípcios, em fuga, corriam ao encontro das águas, e o Senhor os mergulhou no meio das ondas. 28As águas voltaram e cobriram carros, cavaleiros e todo o exército do Faraó, que tinha entrado no mar em perseguição de Israel. Não escapou um só. 29Os filhos de Israel, ao contrário, tinham passado a pé enxuto pelo meio do mar, cujas águas lhes formavam uma muralha à direita e à esquerda (vv. 26-29).

Quando os egípcios vão atrás deles, as águas se fecham e os engolem (Sb 10,18s), mas não sem nova ordem litúrgica (“Estende a mão…”) e sua execução imediata. Os egípcios são engolidos pelo o refluxo do mar (maré alta, tsunami?). Na narrativa mais antiga, somente Javé é que intervém; talvez nem se falava de uma passagem do mar pelos israelitas, mas apenas da miraculosa destruição dos egípcios pelos elementos.

30Naquele dia, o Senhor livrou Israel da mão dos egípcios, e Israel viu os egípcios mortos nas praias do mar, 31e a mão poderosa do Senhor agir contra eles. O povo temeu o Senhor, e teve fé no Senhor e em Moisés, seu servo (vv. 30-31).

Do exército inimigo só restavam cadáveres (cf. Is 37,36). Morte dos opressores e vida com liberdade, assim é o final do juízo de separação. Os israelitas são testemunhas e por isso mudam de atitude. O medo o povo de antes se transforma em “respeito” reverencial (“temeu”, a mesma palavra hebraica) e a desconfiança (cf. vv. 10-12) se muda em fé “no seu servo Moisés” (em 4,16 e 7,1, Moisés é quase um deus pelo qual Javé fala e age; cf. Nm 12).

A recordação desta passagem aflora muitas vezes no AT, a tal ponto que esta libertação foi cantada como o milagre por excelência (Sl 77,17-20; 106,9). Isaías fala da volta do exílio babilônico como de um novo êxodo (Is 43,16-21). Nos registros do Antigo Egito, porém, não se encontra nada sobre esta fuga dos escravos hebreus, talvez por vergonha sobre a derrota (costumam-se registrar só as vitórias do faraó) ou por que achassem insignificante a fuga de alguns grupos de escravos. Pode ser que tivessem acontecido várias fugas de grupos distintos que se uniram depois num relato épico e único. Pelo menos um grupo atribuiu a libertação a seu deus Javé (os “Shasu-nômades de Yahu” mencionados em duas listas no Egito? O termo “hebreu” pode vir de hapiru com que os egípcios designavam grupos marginalizados de diversas etnias).

Não temos registros de Moisés fora da Bíblia. Mas estes grupos tinham seus líderes. O nome egípcio de Moisés indica alguém que pode ter tido conhecimento dos pontos fracos das fronteiras e do exército egípcio, assim os fugitivos não escolheram a rota mais curta seguindo pela praia, mas a mais longa (cf. 13,17s) por onde o exército não conseguiu mais seguir, mas atolou (afundou). No texto hebraico, o mar é o “mar dos juncos” (13,17s), só na tradução grega tornou-se o mar Vermelho.

Não é possível determinar o lugar e o modo deste acontecimento de Ex 14; mas aos olhos das testemunhas apareceu com uma intervenção espetacular de “Javé guerreiro” (Ex 15,3) e tornou-se um artigo fundamental da fé javista (Dt 11,4; Js 24,7; cf. Dt 1,30; 6,21-22; 26,7-8). Este milagre do mar foi colocado em paralelo com outro milagre da água, a passagem do Jordão (Js 3-4) na entrada da terra prometida. A tradição cristã considerou a passagem pelo mar como uma figura da salvação, e mais especialmente a salvação pelo batismo (1Cor 10,1) e torna sua leitura obrigatória na vigília pascal.

15,1Então, Moisés e os filhos de Israel cantaram ao Senhor este cântico (15,1).

“Este cântico” de Moisés é o salmo responsorial de hoje (as estrofes: 15,8-10.12.17) no estilo de um salmo de ação de graças. É o primeiro e o mais celebre dos “cânticos” que a liturgia cristã toma do AT. É repetido pelo cântico antigo da profetisa Miriâm, irmã de Moisés, em 15,21 que retém somente a destruição dos egípcios. Miriâm é o nome hebraico traduzido por “Maria” em grego (cf. a participação feminina da libertação nos caps. 1-2). No livro sagrado dos muçulmanos (Alcorão), o fundador do islã, Maomé, confundiu esta irmã de Moisés (Ex 2,4-8; Nm 12) com Maria, a mãe de Jesus.

O hino trata em toda a sua ampliação o tema da salvação miraculosa através do poder e da solicitude de Javé para com seu povo. O canto da vitória, que Miriam entoa em v. 21, é ampliado até englobar o conjunto das maravilhas do êxodo e da conquista de Canaã e até a construção do templo de Jerusalém, “em vosso monte, no lugar que preparastes para a vossa habitação, no santuário construído pelas vossas próprias mãos” (15,17).

 

8ª Leitura: Rm 6,3-11

Esta leitura resume o tema central da vigília pascal: a passagem da morte à vida em Cristo e em nós pelo batismo. A nossa páscoa é a transposição deste mistério da morte e ressurreição de Cristo para a nossa própria vida.

Será que ignorais que todos nós, batizados em Jesus Cristo, é na sua morte que fomos batizados? Pelo batismo na sua morte, fomos sepultados com ele, para que, como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, assim também nós levemos uma vida nova (vv. 3-4).

Paulo faz apelo à simbologia do batismo por imersão: o fato de ser imergido para dentro da água representa a morte e sepultura; o emergir da água, já tornado “nova criatura” (2Cor 5,17), significa a ressurreição, a nova vida divina.

Pois, se fomos de certo modo identificados a Jesus Cristo por uma morte semelhante à sua, seremos semelhantes a ele também pela ressurreição. Sabemos que o nosso velho homem foi crucificado com Cristo, para que seja destruído o corpo de pecado, de maneira a não mais servirmos ao pecado. Com efeito, aquele que morreu está livre do pecado. Se, pois, morremos com Cristo, cremos que também viveremos com ele. Sabemos que Cristo ressuscitado dos mortos não morre mais; a morte já não tem poder sobre ele. Pois aquele que morreu, morreu para o pecado uma vez por todas; mas aquele que vive, é para Deus que vive (vv. 5-10).

Paulo, ao dizer que nós fomos batizados na sua morte, quer dizer que nos unimos pelo batismo tão intimamente à morte de Cristo, destruidora de todo o pecado, que também nós morremos para o pecado, a tal ponto que este já não deve dominar mais a nossa vida.

Assim, vós também considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus, em Jesus Cristo (v. 11).

A nossa vida tem que ser uma vida de ressuscitados: “vivos para Deus em Jesus Cristo”. Mas nós não somos uns meros beneficiários, estranhos ao mistério pascal de Cristo: a nossa nova vida é uma vida em Cristo Jesus, pois estamos incorporados nele pela fé e pelo amor, feitos membros do seu corpo, sendo ele a cabeça (cf. 1Cor 12,12-27; Ef4,14-15; Cl 1,18).É assim que Paulo pode dizer: “Já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim” (Gal 2,20).

 

Evangelho (Ano B): Mc 16,1-7

O primeiro evangelho que foi escrito, foi o de Mc por volta de 70 d.C. Nele, Jesus morreu na cruz, abandonado pelos discípulos e por um momento, até por Deus (cf. 15,34 citando Sl 22,2), mas estavam ali umas mulheres da Galileia “olhando de longe, entre elas Maria Madalena e Maria, a mãe de Tiago, o Menor e Salomé” (15,41). Nos outros evangelhos, Salomé foi trocada (ou identificada) pela mãe dos filhos de Zebedeu em Mt 27,56 (cf. Mt 20,20), e em Lc 24,12 por Joana (cf. Lc 8,3).

Os corpos dos condenados costumavam ficar na cruz descompondo-se ou comidos pelos cachorros e urubus. Mas em casos especiais foram entregues a parentes ou conhecidos. Como já era tarde e véspera de sábado que coincidiu com a festa da Páscoa (Jo 19,31), “José de Arimateia, ilustre membro do Conselho (sinédrio) que também esperava o Reino de Deus” (15,43) foi a Pilatos e pediu o corpo de Jesus. Mc nada diz sobre seu motivo (em Mt e Jo era discípulo), apenas que Pilatos “cedeu o cadáver a José o qual, comprando um lençol, desceu-o, enrolou-o no lençol e o pôs num túmulo que fora talhado na rocha. Em seguida, rolou uma pedra, fechando a entrada do túmulo” (15,46). Em Mt, o túmulo era novo e de José; em Lc e Jo, ninguém tinha sido ainda colocado nele. As mulheres, porém, sabem o lugar onde o corpo de Jesus foi sepultado: “Maria Madalena e Maria, mãe de José, observavam onde ele fora posto” (15,47).

Quando passou o sábado, Maria Madalena e Maria, a mãe de Tiago, e Salomé, compraram perfumes para ungir o corpo de Jesus (v. 1).

O funeral não estava completo, porque faltou tempo na sexta feira à tardezinha. As mulheres queriam ungir o corpo de Jesus, mas precisavam esperar, porque no sábado era proibido trabalhar, muito menos no cemitério. Os mortos eram considerados impuros, tocar num cadáver traria impureza (cf. Lv 21,1.11; Nm 6,9; 19,11-13; 31,19; Ag 2,13; Ez 44,25-27; Is 65,4). No âmbito judeu, ungir um cadáver era raro e aconteceu com óleo; com arômata (perfumes) só se ouviu no funeral de um rei (2Cr 16,14). Mas Jesus é o Cristo = Messias = “ungido” rei dos judeus (cf. 15,26).

Em Jo 19,39, Nicodemos traz 30 kg de ervas cheirosas para o funeral, quantia digno de um rei. Em Mt 28,1, as mulheres só querem “ver o túmulo” sem intenção de ungir; de fato, ungir um cadáver no terceiro dia parece arriscado pela decomposição (cf. Jo 11,39), apesar do clima mais frio em Jerusalém (800m acima do mar) na primavera. Jesus já foi ungido pela mulher em Betânia em vista à sua morte, agora a unção (que não acontecerá) prepara para ressurreição.

“Quando passou o sábado”, isto é, a noite deste mesmo dia (para os judeus, um dia começa na véspera e termina na véspera do outro dia), as lojas abrem e as mulheres podem comprar perfumes. Mas não vão ao cemitério à noite, sim esperam até o amanhecer.

E bem cedo, no primeiro dia da semana, ao nascer do sol, elas foram ao túmulo (v. 2).

Todos os evangelhos relatam a ressurreição no “terceiro dia” (cf. 1Cor 15,4) após a morte na sexta-feira, como Jesus já anunciou (cf. 8,31; 9,31; 10,34 “depois de três dias” tem o mesmo significado). No sábado era descanso e trabalho era proibido; então as mulheres foram ao túmulo “bem cedo, no primeiro dia da semana, ao nascer do sol”. Estes três termos para dizer a data e a hora chamam atenção.

Nos salmos, Deus ajuda pela manhã (Sl 30,6; 59,17; 90,14; 143,8). O sol é a luz do dia, divinizado em outras religiões. O termo “sol da justiça” (Ml 3,20) foi aplicado a Cristo e influenciou a formação das festas de Natal e Epifania. Em Jo 8,12, Jesus se declara: “Eu sou a luz do mundo, quem em seguir, não andará nas trevas, mas terá a luz da vida”. Quando Jesus morreu, era “escuridão sobre toda a terra” (15,33). Agora a luz do sol indica outra coisa, nova vida.

Em Gn 1,3, no “primeiro dia” da semana da criação foi criada a luz (Mt 28,1 e Lc 24,1 omitem o nascer do sol e usam o equivalente “ao raiar a luz”). A ressurreição é uma realidade nova, uma nova criação (cf. 2Cor 5,17) a partir da morte, ou seja, do nada (cf. Rm 4,17).

A comunidade (mais tradicional) em Jerusalém continuava ainda celebrando o sábado por um tempo (cf. Mt 24,20), mas nas outras comunidades o “primeiro dia da semana” tornou-se o dia sagrado dos cristãos em que se reuniram para comemorar a presença do ressuscitado na fração do pão (cf. At 20,7; Jo 20,19.26; 1Cor 16,2), o “dia do Senhor” (Ap 1,10), em latim dies dominicus, o “domingo”.

E diziam entre si: “Quem rolará para nós a pedra da entrada do túmulo?” Era uma pedra muito grande. Mas, quando olharam, viram que a pedra já tinha sido retirada (vv. 3-4).

As mulheres sabiam da pedra porque tinha observado em 15,47 como José de Arimateia fechou o túmulo. Não pensaram antes quem poderia retirar esta pedra pesada? Esperavam encontrar um homem no caminho para ajudar? A “pedra muito grande” prepara para o milagre muito grande; a pedra retirada já é o primeiro sinal da ação de Deus. “Já tinha sido removida” é passivo divino. A pedra removida sinaliza que o poder da morte foi quebrado (cf. Is 25,7s).

Mc não descreveu a própria ressurreição como fazem depois os evangelhos apócrifos (cf. Evangelho de Pedro 35-49). Jesus já tinha saído.

Entraram, então, no túmulo e viram um jovem, sentado do lado direito, vestido de branco. E ficaram muito assustadas (v. 5).

O jovem aqui é o contrário daquele outro jovem na fuga dos discípulos no jardim Getsêmani quando Jesus foi preso: “Um jovem o seguia, e a sua roupa era só um lençol enrolado no corpo. E foram agarrá-lo. Ele, porém, deixando o lençol, fugiu nu” (14,51-52). Este jovem representa prefigura a vergonha de Pedro que negou sua fé quando foi apertado no pátio do sumo sacerdote. Alguns querem identificá-lo com o próprio evangelista, João Marcos morava em Jerusalém (At 12,12).

O jovem no túmulo, porém, é um anjo com as características do céu: “vestido de branco” (cor da luz; cf. 9,3; Ap 6,11; 7,9.13s) e “sentado do lado direito” (o lado preferido, cf. 12,35-37; 14,62; Sl 110,1). Ele representa a vitória e não a derrota, é a ressurreição que ele está anunciando (anjo quer dizer mensageiro). Descrever anjos como jovens ou homens corresponde a literatura da época (2Mc 3,26.33; Tb 5,9; At 1,10; 10,30), como também a reação humana de medo (cf. v. 8; 4,41; 5,15.42; 6,50s; 9,6).

Nosso texto pertence ao gênero da angelofania (cf. Jz 6,11-24; Nm 22,31-35; Gn 22,11-13; Lc 1,11-20.26-38) com os elementos: aparição do anjo, reação humana de medo, a própria mensagem e um sinal para confirmá-la. Outros falam de uma haggadá, um gênero dos rabinos para ilustrar e atualizar um conteúdo (aqui a mensagem da ressurreição) com histórias, lendas, parábolas etc.; os judeus narram a hagadá mais famosa (sobre a libertação do Egito) na ceia pascal.

Mas o jovem lhes disse: “Não vos assusteis! Vós procurais Jesus de Nazaré, que foi crucificado? Ele ressuscitou. Não está aqui. Vede o lugar onde o puseram. Ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele irá à vossa frente, na Galileia. Lá vós o vereis, como ele mesmo tinha dito” (vv. 6-7).

A mensagem do anjo é o centro do texto de hoje e um cume conclusivo do evangelho. Acalmar o medo (cf. 4,40; 6,50) faz parte do gênero. Revela que a procura das mulheres pelo corpo (como sua intenção de ungi-lo) não tem sentido. Jesus é caracterizado apenas com seu lado humano: “de Nazaré” (lit. nazareno), “crucificado”. Mas “ele ressuscitou”; lit.” ele foi ressuscitado” (acordado). O passivo divino (já em v. 4) revela a ação de Deus. O crucificado pelos homens foi ressuscitado por Deus (cf. o kerigma pascal em At 2,23s3,14s; 4,10 etc.). O grego não tem uma palavra própria para ressuscitar, usa os equivalentes “acordar” (14,28) ou “re-levantar” (5,41s; 8,31; 9,31; 10,34).

Como sinal que confirma suas palavras, o anjo aponta para o lugar vazio onde estava o corpo. O kerigma pascal pressupõe o túmulo vazio. Os judeus não se podiam imaginar uma ressurreição apenas com a alma, sem o corpo (diferente dos gregos; cf. At 17,31s; Sb 3).

O anjo envia as mulheres para dizer “a seus discípulos e a Pedro” que fracassaram “que ele irá à vossa frente, na Galileia. Lá vós o vereis, como ele mesmo tinha dito”. Uns querem relacionar isso a parusia, “vereis o Filho do homem vinda nas nuvens” (13,27; 14,62). Mas a parusia (volta de Cristo) nunca se referiu apenas a Pedro e os discípulos. Mas estes devem ser as testemunhas da ressurreição através da aparição do ressuscitado que Mc não narra mais (os vv. 9-16 são um acréscimo posterior do séc. II que resume as aparições dos outros evangelhos).

A reação das mulheres é fuga motivada pelo medo e espanto (comum após uma epifania ou milagres; cf. 4,41; 5,15.33.42; 6,51; 9,6). Nossa liturgia omite o último versículo (v. 8) com que encerrou o evangelho de Mc originalmente: “Elas saíram e fugiram do túmulo, pois um tremor e um estupor se apossara delas. E nada contaram a ninguém pois tinham medo.” Com este final de Mc em 16,8 surgem perguntas: Porque Mc não narrou mais uma aparição do ressuscitado? Porque o final do evangelho terminou assim, com o susto e o medo as mulheres que fugiram e contaram nada a ninguém?

Uma solução seria supor que a última página do manuscrito se perdeu onde Mc teria narrado uma aparição do ressuscitado e a despedida com envio ou ascensão, igual aos outros evangelistas.

Outra solução aceita o final em v. 8 e parte do “segredo messiânico” que encontramos muitas vezes em todo evangelho de Mc. Jesus sempre dava ordem de guardar silêncio a respeito dele (o segredo do messias, cf. 1,43-45 etc.), mas essa ordem geralmente não foi respeitada, ao contrário, as pessoas divulgaram muito. A última ordem de manter segredo (depois da transfiguração), porém, tinha prazo: “que não contassem nada a ninguém até quando o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos” (Mc 9,9s). Agora em cap. 16, com a mensagem do anjo, chegou o momento de falar e anunciar, mas as mulheres não falam. Provavelmente, Mc queria provocar com este final absurdo (se as mulheres não contaram a ninguém, como o próprio evangelista sabe?). Os leitores de Mc devem ficar inquietados por este silêncio absurdo e começar anunciar a boa nova (“Evangelho”, Mc 1,1; 13,10; 14,9: “em todo mundo”).

Mc não precisa mais contar uma aparição do ressuscitado, porque já antecipou a ressurreição na transfiguração de Jesus em 9,2-10. Como Mc escreveu no ano 70, no meio da guerra Judaica da qual os cristãos não participavam, ele não estava interessado num messias triunfalista (guerreiro nacionalista), mas queria destacar um messias crucificado: o Filho de Deus não pega as armas para derramar o sangue dos romanos, mas derrama seu próprio na cruz. Mc mostra o lado humano de Jesus (Jo, o lado divino).

O messias Jesus morre abandonado na cruz em Jerusalém, e como ressuscitado manda seus seguidores para fora de Jerusalém, para Galileia “onde vós o vereis”. Pode ser uma justificativa e um convite para os cristãos fugirem da cidade cuja destruição (do templo) Jesus predisse (cf. 13,16-23). Segundo os historiadores Eusébio e Epifânio, “todos os discípulos foram exortados por um anjo que saíssem da cidade que seria destruída totalmente em breve. Aqueles partiram da cidade e se assentaram em Pella, numa cidade além do Jordão.” Mas Pella não fica na Galileia.

Mc pode sinalizar a primeira aparição do ressuscitado na Galileia (cf. 14,28) aos discípulos que devem testemunhá-lo. Para Mc, Galileia é a pátria do evangelho, onde Jesus começou sua atividade. Ele quer motivar para uma releitura e um recomeço da comunidade cristã fora de Jerusalém. Sair de Jerusalém significa também ir aos pagãos (cf. 13,10; Mt 4,15). O final aberto de Mc é um envio.

Os outros evangelistas escreveram 10 a 20 anos depois da guerra Judaica e mudaram o final. O evangelho de Lc termina em Jerusalém com a ascensão de Jesus e a oração dos discípulos no templo. Mt terminou seu evangelho com Jesus dizendo: “Estarei convosco todos os dias até o fim dos tempos”. Em Mc, Jesus parece dizer: “Estarei convosco em outros lugares. Podem sair de Jerusalém, desta cidade hostil, porque a presença de Deus não está mais nela (cf. a saída da glória do templo em Ez 9,18s; 10,22s). O santuário do templo rasgou na hora da cruz, o templo será destruído em breve, no ano 70 (ou já foi para Mc? Cf. 13,1s; 14,58; 15,38s). Há de recomeçar como na Galileia, onde ouviram pela primeira vez minha palavra.” (cf. 1,14-20). O final aberto de Mc é uma segunda vocação (a palavra Igreja vem de “convocação” em grego e hebraico).

O túmulo vazio não constitui uma prova da ressurreição, mas era conhecido pela comunidade em Jerusalém e nunca foi negado pelos adversários judeus ou pagãos. O túmulo vazio é um sinal ambíguo, pode significar outras coisas (furto ou recolocação do cadáver, cf. Mt 27,65; 28,12-15; Jo 20,2). O testemunho de mulheres não valia muito (cf. Lc 24,10s). Só pelas aparições de Jesus diante dos discípulos se firmou a fé na ressurreição do crucificado (em 1Cor 15,3-8, Paulo não menciona as mulheres nem o túmulo vazio). Maria Madalena é a primeira testemunha da ressurreição. Seu nome aparece em todos os evangelhos, ligado ao túmulo vazio. Em Mt 28,9s e Jo 20,18-23, ela é a primeira pessoa também a ver o ressuscitado (a tradição identifica-a com a pecadora e a irmã de Lázaro, mas os evangelhos não confiram isso, cf. Lc 7,36-8,3; Jo 12,1-8). Entre os homens, Simão Pedro é a testemunha principal da ressurreição (v. 7; 1Cor 15,5; Lc 24,34; Jo 21).

Aos discípulos que se dispersaram pela fuga (14,27.50s), Jesus apareceu primeiro na Galileia (Mt 28,16s; cf. Jo 21), ou seja, no caminho à roça (Lc 24,13-36). Assim se reuniram de novo e voltaram a Jerusalém (onde Jesus apareceu também, cf. Lc 24,34-51; Jo 20,19-29), e 50 dias depois deram testemunho em Jerusalém na festa de Pentecostes (At 2).

Com seu final aberto, Mc apresenta a mesma situação em que nós nos encontramos: sem aparições do ressuscitado, apenas com o túmulo vazio para verificar até hoje (cf. Jo 20,3-9.24-29). É preciso ter fé na palavra do evangelho, entender Jesus no seu trajeto todo (desde a Galileia até a cruz e a ressurreição) e anunciá-lo em vez de ter medo e calar-se.

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