02 de setembro de 2017 – Sábado, 21ª semana

 

Leitura: 1Ts 4,9-11

Na leitura de hoje ouvimos a continuação da exortação aos tessalonicenses. No AT, o chamado Código de Santidade dedicava uma seção a relações sexuais (Lv 18), e outra aos deveres para com o próximo (Lv 19). Dois temas que Paulo tocou na leitura de ontem (vv. 3-8) e de hoje.

Não é preciso escrever-vos a respeito do amor fraterno, pois já aprendestes de Deus mesmo a amar-vos uns aos outros. É o que já estais fazendo com todos os irmãos, em toda a Macedônia. Só podemos exortar-vos, irmãos, a progredirdes sempre mais (vv. 9-10).

Mais uma vez Paulo frisa o “progresso” na comunidade (v. 1), desta vez no “amor fraterno” (v. 9) expressado aqui pela palavra rara filadélfia (em vez de agape; cf. 3,12); mas não em sentido filosófico, e sim como virtude ensinada pelo próprio Deus, “aprendestes de Deus mesmo” (cf. Is 50,4; 54,13; Jr 31,34; Sl 71,17 etc.).

A vivência do amor é o critério último para discernir se é autêntica ou não a vida da comunidade cristã (cf. 1Jo). Trata-se de amor recíproco que faz a comunidade crescer por dentro e, ao mesmo tempo, impulsiona a comunidade para fora de si mesma, a fim de testemunhar o Evangelho a todos (cf. 3,12), “em toda a Macedônia”. Macedônia é região que tinha Tessalônica como capital (hoje é um país próprio mais ao norte com outra capital, Skopje). É esse amor que constitui a santidade da comunidade, fazendo-a enfrentar sem temor o julgamento de Deus.

Procurai viver com tranquilidade, dedicando-vos aos vossos afazeres e trabalhando com as próprias mãos, como recomendamos (v. 11).

A exortação ao amor fraterno se concretiza num convite a “trabalhar” (v. 11). Paulo está provocando mudança de concepção vigente nas cidades gregas. Aí o ideal era trabalhar apenas duas horas por dia, o que supunha viver na dependência do trabalho dos outros. O ideal dos homens livres era a folga, ou seja, o ócio, o qual era negado aos escravos (neg-ócio!). Daí se compreende a transformação que Paulo causou nas cidades gregas, honrando os trabalhadores e criticando os ociosos. Indiretamente informa sobre a origem social dos cristãos nas comunidades por Paulo, em grande parte escravos (cf. 1Cor 1,26; 11,19-21; Gl 3,28; 4,7; Rm 8,15).

A expectativa da parusia (volta de Cristo) induzia alguns a omitir-se dos assuntos ordinários e mesmo do trabalho. Isso desacreditava o pequeno grupo cristão diante dos pagãos e os fazia passar necessidade sem razão. Na segunda Carta aos Tessalonicenses, Paulo (ou mais provável: um discípulo dele) alerta contra este mal-entendido (2Ts 2,2): Se Cristo voltar logo, para que ainda trabalhar e se preocupar com as coisas deste mundo?

Embora o próprio Paulo espere a volta de Cristo em breve (cf. 1Cor 7,29-31), não despreza o valor do trabalho. Frequentemente trabalha na sua profissão de fabricador de tendas (At 18,3; 20,34) para poder se dedicar ao evangelho gratuitamente, sem peso para a comunidade (cf. 2,9; 2Ts 3,8s; 1Cor 9). O próprio Jesus, Filho do dono do mundo, trabalhou com as próprias mãos na construção civil (como carpinteiro, cf. Mc 6,3), assim dignificou e santificou o trabalho, que era visto como maldição (cf. Gn 3,17-19). Assim, trabalhar para o próprio sustento torna-se questão de honra para o cristão (Ef 4,28; 2Ts 3,6-12) como também a sua possibilidade de contribuir para o bem comum e de repartir os bens com os menos favorecidos (cf. v. 12).

Como atraso da parusia, alguns deixaram de trabalhar e começaram a viver à custa dos outros. Na segunda carta aos tessalonicenses, o autor que escreve em nome de Paulo lembra uma norma: “Quem não quer trabalhar também não há de comer” (2Ts 3,10), e ordena: “Trabalhem na tranquilidade par ganhar o pão com o próprio esforço” (2Ts 3,12).

São Bento (séc. VI) resumiu a questão com seu lema: “Ora et labora” (reze e trabalhe)! O sucesso econômico do mundo ocidental tem uma das suas raizes aqui. Hoje, porém, a sociedade atribui isso unicamente ao esforço humano (ou ao capital que é idolatrado). Esquecendo-se de Deus e do sentido espiritual (p.ex. o dia do Senhor: sábado/domingo), a sociedade corre perigo de se tornar desumana novamente.

Evangelho: Mt 25,14-30

O evangelho de hoje apresenta a terceira parábola sobre vigilância e responsabilidade frente à parusia (vinda) de Cristo no fim dos tempos. Após a vigilância do servo de casa (24,45-51) e da cena nupcial (25,1-13) passa para o mundo da economia que também serve para falar sobre o reino de Deus. A parábola tem seu paralelo em Lc 19,12-27 (Mt e Lc a tiraram da mesma fonte de palavras, Q), porém, com moral diferente. Em Mt, a simples expectativa e a vigilância se convertem e culminam aqui em responsabilidade para ação no mundo. A responsabilidade é proporcional ao talento recebido para o serviço. Prêmio e castigo pela administração se orientam para o julgamento definitivo.

Um homem ia viajar para o estrangeiro. Chamou seus empregados e lhes entregou seus bens. A um deu cinco talentos, a outro deu dois e ao terceiro, um; a cada qual de acordo com a sua capacidade. Em seguida viajou (vv. 14-15).

Podemos imaginar “um homem” como grande comerciante viajando para o exterior. Entre “seus empregados” (servos ou escravos) ele reparte livremente, e não de modo arbitrário, o seu dinheiro (“seus bens”), porque leva em conta a “capacidade” de cada um (em grego, dynamis, dinamismo, capacidade de fazer). Só que também essa capacidade é dom (cf. Dt 8,17s).

Na época, também um escravo podia administrar dinheiro confiado pelo seu dono. Aqui não se define o modo como estes três deviam atuar com este dinheiro, mas é claro que o lucro pertencerá ao dono. Um “talento” equivale a 6.000 denários. Um denário (uma moeda de prata) era a diária de um trabalhador (cf. 20,2). Se estipularmos uma diária de R$ 100,00, os valores são consideráveis: “cinco talentos” equivalem R$ 3 milhões; “dois talentos”, R$ 1,2 milhões e “um talento”, R$ 600.000,00.

O empregado que havia recebido cinco talentos saiu logo, trabalhou com eles, e lucrou outros cinco. Do mesmo modo, o que havia recebido dois lucrou outros dois. Mas aquele que havia recebido um só, saiu, cavou um buraco na terra, e escondeu o dinheiro do seu patrão (vv. 16-18).

O patrão se ausentou e não volta logo, dando oportunidade aos empregados trabalharem. Já não menciona uma chegada iminente do patrão (cf. 19,28; escatologia adiada, 2Ts 2,2). O relato se concentra no serviço ao patrão, dono único do dinheiro e não fala expressamente do serviço aos outros. Os primeiros dois trabalham e fazem o dinheiro multiplicar, talvez através de ações financeiras. O sistema financeiro da época não era tal diferente do nosso: lucrar através de câmbio das moedas, depósitos ou créditos com juros. Os judeus já mantinham agências bancárias nas maiores cidades do império.

O terceiro empregado, porém, enterra a soma confiada; assim se procedia em tempos de guerra para não cair nas mãos do inimigo. No paralelo de Lc 19,20, ele deposita o dinheiro num lenço, mas em Mt, a soma é grande demais para isso.

Depois de muito tempo, o patrão voltou e foi acertar contas com os empregados. O empregado que havia recebido cinco talentos entregou-lhe mais cinco, dizendo: “Senhor, tu me entregaste cinco talentos. Aqui estão mais cinco que lucrei”. O patrão lhe disse: “Muito bem, servo bom e fiel! Como foste fiel na administração de tão pouco, eu te confiarei muito mais. Vem participar da minha alegria!” Chegou também o que havia recebido dois talentos, e disse: “Senhor, tu me entregaste dois talentos. Aqui estão mais dois que lucrei”. O patrão lhe disse: “Muito bem, servo bom e fiel! Como foste fiel na administração de tão pouco, eu te confiarei muito mais. Vem participar da minha alegria!” (vv. 19-23).

Quando o patrão finalmente volta, pede contas da administração, numa espécie de julgamento, no qual o patrão qualifica a conduta e a retribui. Os dois primeiros são elogiados, porque se mostraram bons em seu ofício; aliás, cada um dos dois recebe o mesmo elogio: “Servo bom e fiel” ao seu fiável (é o título de Moisés segundo Nm 12,7), “como foi fiel na administração de tão pouco” – “tão pouco” não corresponde às somas enormes de milhões, mas indica que a versão original da parábola (na fonte Q) tratava de valores menores (como as “minas” em Lc 19,13: uma mina equivale 100 denários, ou seja, R$ 10.000); Mt aumentou os valores. O prêmio (o mesmo para os dois!) supera qualquer previsão: perto dele os milhões eram nada; de uma posse administrada passa-se a convivência com o patrão: “Vem participar da minha alegria!”

Por fim, chegou aquele que havia recebido um talento, e disse: “Senhor, sei que és um homem severo, pois colhes onde não plantaste e ceifas onde não semeaste. Por isso fiquei com medo e escondi o teu talento no chão. Aqui tens o que te pertence”. O patrão lhe respondeu: “Servo mau e preguiçoso! Tu sabias que eu colho onde não plantei e que ceifo onde não semeei? Então devias ter depositado meu dinheiro no banco, para que, ao voltar, eu recebesse com juros o que me pertence.” Em seguida, o patrão ordenou: “Tirai dele o talento e dai-o àquele que tem dez! (vv. 24-28).

O terceiro é malvado ou “mau” em seu ofício, um “preguiçoso” (um adjetivo substantivado como tipo em Pr 6,6-11; 10,4.26; 13,4; 15,19; 19,15.24; 20,4.13; 22,13; 24,30-34; 26,13.15s). Ele procura defender-se pondo a culpa no patrão exigente; cf. Pr 22,13: “O preguiçoso diz: ‘Um leão está lá fora! Serei morto no meio da rua!’”. Realmente o medo do risco paralisa (Eclo 11,10), a inércia se afirma na preguiça. Mas o dinheiro não é uma semente que se enterra e cresce por si só; é o homem que imprime nele seu dinamismo para fazê-lo crescer. A colaboração humana está fortemente sublinhada.

O diálogo com o terceiro criado mostra a outra face do dinamismo do trabalho humano. O dinheiro confiado a mãos ativas tende a crescer; mas a preguiça deixa-o inerte, e o preguiçoso fica de mãos vazias (cf. Pr 6,11; 10,4; 15,19; 19,15). A quem aproveita o dinheiro enterrado? Por isso, o patrão entrega o talento agora ao mais hábil dos três servos. A parábola está cheia de termos técnicos da linguagem bancária: depositar, juros, etc.

Porque a todo aquele que tem será dado mais, e terá em abundância, mas daquele que não tem, até o que tem lhe será tirado (v. 29).

O provérbio final, com sua formulação paradoxal (13,12), expressa felizmente o duplo movimento: do mais ao sempre mais, do menos até o nada. Jesus não opina aqui sobre a lógica trágica do capitalismo que pode levar povos inteiros à ruína através da especulação financeira, mas expressa uma experiência sapiencial; cf. Pr 10,4: “A mão preguiçosa empobrece, o braço diligente enriquece”. Mt 13,2 (cf. Mc 4,25) aplica o mesmo provérbio ao conhecimento do mistério do reino que é dado aos discípulos. Eles são pobres materialmente (9,19s; 10,9s; 19,21-29), mas ricos espiritualmente (cf. Mt 5,3-12).

Mas os bens, que Deus dá, devem ser trabalhados para não perdê-los. A respeito da expectativa da parusia (volta de Cristo na glória do céu), Mt quer dizer que não basta estar preparado, esperando passivamente a manifestação de Jesus. É preciso arriscar e lançar-se à ação, para que os dons recebidos frutifiquem e cresçam. Jesus confiou à comunidade cristã a revelação da vontade de Deus e a chave do Reino. No julgamento, ele pedirá contas por esse dom. A comunidade o repartiu e o fez crescer, ou o escondeu dos homens?

Quanto a este servo inútil, jogai-o lá fora, na escuridão. Ali haverá choro e ranger de dentes! (v. 30).

Prêmio e castigo são de cunho escatológico do Senhor. Para advertir a comunidade, Mt costuma sublinhar o castigo: a expulsão “fora nas trevas” (22,13; 25,30) com “choro e ranger de dentes” (expressão de dor terrível; cf. 8,12; 13,42.50; 22,13; 24,51; 25,30; imagem bíblica da cólera e do despeito dos ímpios em relação aos justos: cf. Sl 35,16; 37,12; 112,10; Jó 16,9).  Mas nesta parábola destaca-se também o prêmio antes mencionado: “Venha participar da minha alegria” (vv. 21.23; cf. 13,43; 25,34).

O site da CNBB comenta: Um dos maiores perigos que ameaçam a verdadeira vivência da fé é o medo. Este medo faz com que não sejamos capazes de produzir os frutos exigidos pelo Reino de Deus. Mas esse medo sempre aparece com máscaras que nos enganam e uma das mais sutis que encontramos é aquela que é confundida com a virtude da prudência. Perguntamos se é prudente fazer isso ou aquilo e em nome da prudência justificamos o nosso medo. Nesta hora, devemos nos recordar de Maria, a Virgem prudentíssima, que não julgou prudente conversar com José antes de responder ao Anjo ou ficou esperando a vida inteira pelo milagre de Caná.

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