02 de Setembro de 2018, Domingo: Jesus chamou a multidão para perto de si e disse: “Escutai todos e compreendei: o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior (vv. 14-15).

1ª Leitura: Dt 4,1-2.6-8

A 1ª leitura foi escolhida em vista do evangelho de hoje que fala da Lei. No livro de Deuteronômio (quer dizer “Segunda Lei”, ou seja, cópia ou segunda edição da Lei, cf. 17,18), Moisés anuncia outra vez a Lei antes de morrer.

Os autores puseram discursos na boca de Moisés lembrando a aliança e a (primeira) Lei dada no monte Horeb/Sinai (Ex 19-Nm 9). Nesta aliança, Javé Deus escolhe Israel para ser o seu povo que deve comprometer-se a obedecer a lei e prestar culto somente a Javé. Esta segunda declaração se situa na terra de Moab (28,69) ao lado oriental do Jordão, antes de “entrar na posse da terra prometida”. A conquista e a vida na terra (e a volta após o exílio) dependem da atitude que o povo tem diante do projeto de Deus.

A parte central do livro (12,1-26,19) surgiu a partir do séc. VIII a.C. no reino do Norte (Israel), foi levado ao reino do Sul (Judá) e serviu para as reformas do rei Ezequias (716-701 a.C.; cf. 2Rs 18,1-7). Possivelmente já ampliado (4,44-28,68) surgiu como “Livro da Lei” encontrado no templo (2Rs 22,8-20); é usado pelo rei Josias (640-609) na sua reforma de unificar Israel e centralizar o culto em Jerusalém (cf. 2Rs 23). Depois da queda de Jerusalém (586 a.C.), para responder ao contexto do exílio babilônico e início do pós-exílio, criou se uma nova introdução (1,1-4,43) e o final (28,69-34,12).

Nossa leitura de hoje faz parte desta nova introdução, um sermão colocado na boca de Moisés que quer mostrar a excelência deste código de leis e decretos e motivar o cumprimento dos seus mandamentos.

Agora, Israel, ouve as leis e os decretos que eu vos ensino a cumprir, para que, fazendo-o, vivais e entreis na posse da terra prometida que o Senhor Deus de vossos pais vos vai dar. Eis que vos ensinei leis e decretos conforme o Senhor meu Deus me ordenou, para que os pratiqueis na terra em que ides entrar e da qual tomareis posse (vv. 1.5).

Na época da redação, o povo judeu se encontra longe da sua pátria, no exílio da Babilônia. Como chegou a esta situação tão precária? Resposta da redação: o povo com seus reis não guardou “as leis e os decretos” de Deus, praticava a injustiça imitando outros povos e adorando outros deuses (cf. a história deuteronomista, por ex. Jz 2; 2Rs 21). “Agora”, antes de poder voltar do exílio, o povo judeu se encontra de novo na mesma situação, no lugar, onde já se estava uma vez, a dizer, além do Jordão no tempo de Moisés, antes de “entrar na posse da terra prometida”.

O dom da Terra é relacionado ao dom da Lei. Faz parte da Lei de Deus, permanentemente “ouvir” (cf. 6,4) para entender e “ensinar” para “cumprir” e “praticar”.

Vós os guardareis, pois, e os poreis em prática, porque neles está vossa sabedoria e inteligência perante os povos, para que, ouvindo todas estas leis, digam: “Na verdade, é sábia e inteligente esta grande nação! Pois, qual é a grande nação cujos deuses lhe são tão próximos como o Senhor nosso Deus, sempre que o invocamos? E que nação haverá tão grande que tenha leis e decretos tão justos, como esta lei que hoje vos ponho diante dos olhos? (vv. 6-8).

Com isso as leis de Israel superam as dos outros povos, por ex. o Código do rei babilônico Hamurabi (cerca de 1.700 a.C.) que já continha a lei do Talião (“olho por olho, dente por dente”, cf. Ex 21,24; Dt 19,21). Comparado com outras nações (Egito, Assíria, Babilônia), Israel é uma anão, mas “qual é a grande nação cujos deuses lhe são tão próximos como o Senhor, nosso Deus, sempre que o invocamos? E que nação haverá tão grande que tenha leis e decretos tão justos, como esta lei que hoje vos ponho diante dos olhos?“ (vv. 7-8).

O Dt insiste na eleição do povo de Israel através da revelação e da experiência de que o Senhor e sua palavra são “próximos” de Israel (cf. 30,14; Rm 10,8) e Deus está “no meio” do seu povo (6,15; 7,21). A grandeza e a sabedoria de Israel estão na lei de Deus que liberta seu povo sofrido e faz aliança com ele. A lei é o meio de instrução para formar uma sociedade justa e igualitária na qual cada membro do povo de Deus tem sua dignidade. É nesta lei que Deus está “tão próximo” do seu povo, mais do que num culto luxuoso no templo (que na época do exílio estava em ruínas). É esta Lei (a palavra hebraica torá quer dizer “orientação, instrução, lei”) que dá a Israel grandeza e fama maior que qualquer administração brilhante de uma corte ou uma máquina eficiente da burocracia do estado.

 

2ª Leitura: Tg 1,17-18.21b-22.27

Hoje e nos próximos domingos ouvimos a leitura da Carta da Tiago, uma das sete Cartas Católicas. “Católica” no seu significado grego: universal, geral, ou seja, estas cartas não se dirigem a um destinatário específico (por ex. a uma comunidade em Roma ou Corinto), mas a todos em geral. Na Bíblia Sagrada Edição Pastoral (p. 1489) se lê uma introdução:

A Carta de Tiago é um escrito de caráter sapiencial, isto é, mostra a sabedoria do discernimento cristão diante das situações. Dirige-se a todas as comunidades cristãs, simbolizadas pelas «doze tribos» do novo povo de Deus. O autor se apresenta como Tiago, pode ser o filho de Alfeu (Mc 3,18), ou mais provavelmente o “irmão do Senhor” (Gl 1,19; cf. Mc 6,3; At 12,7; 21,17s; 1Cor 15,7) que dirigiu a igreja de Jerusalém (cf. At 15,13) e morreu mártir no ano 62 (não o irmão de João que morreu em 44, cf. At 12,2). Diversas razões, porém, fazem pensar que o verdadeiro autor da carta é judeu de origem grega do final do século I, e que escreveu a carta entre os anos 80 e 100.

Esta carta é mensagem tipicamente cristã, como os Evangelhos; reduz toda a Lei judaica ao mandamento do amor ao próximo (1,25; 2,8.12). Pode-se dizer que é explicação das exigências desse mandamento em diversas circunstâncias: igualdade cristã (2,1-4), preferência pelos pobres (2,5-7), amor ativo (2,14-17). Esse amor exclui a exploração, e nesta carta encontramos a mais violenta passagem do Novo Testamento contra os ricos (5,1-6). A fé aqui é vista como dinamismo que produz ação e que só é madura quando se expressa em atos concretos (2,20-26); é fé que rejeita qualquer espiritualidade ou religiosidade individualista e intimista (1,26-27). Da mesma forma, a verdadeira sabedoria se expressa pela conduta (3,13-16).

Tiago rejeita a consagrada separação entre «dimensão vertical» e «dimensão horizontal» da vida cristã: «do mesmo modo que o corpo sem o espírito é cadáver, assim também a fé: sem as obras é cadáver» (2,26). E são estas as obras citadas no contexto: dar de comer ao faminto e vestir o nu (2,15-16; cf. Mt 25,35-36).

Irmãos bem amados (v. 16a).

Nossa liturgia saltou o início da carta com a saudação e o tema da provação. V. 16b: “Não vos enganeis”.

Todo o dom precioso e toda a dádiva perfeita vêm do alto; descem do Pai das luzes, no qual não há mudança, nem sombra de variação. De livre vontade ele nos gerou, pela Palavra da verdade, a fim de sermos como que as primícias de suas criaturas (vv. 16-17).

Tiago não quer que seus irmãos se enganem. A serpente no paraíso venceu porque enganou, distorcendo a boa vontade de Deus (cf. Gn 3). Quando rezamos o Pai nosso, podemos confiar na “livre vontade” de Deus é boa para nós; que “não nos deixe cair em tentação e nos livre do mal” (cf. Mt 6,9-13). O título “Pai das luzes” é surpreendente. A expressão parece se referir às luminárias celestes (estrelas), exemplo primordial de seus benefícios de Deus. Para os judeus, o normal é: “Senhor dos exércitos” (siderais; cf. Gn 2,1; Is 40,26); Sl 90,2 diz que o universo foi “gerado” (cf. Dt 32,18). O autor da carta salienta “de livre vontade… pela Palavra da verdade”.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2371) comenta: “Se ele é Pai das luzes, é também, ele próprio, luz (cf. 1Jo 1,5). O autor pretende excluir de Deus e de sua obra (cf. v. 13) todo dualismo, e subtraí-lo à divisão e à duplicidade que caracterizam o pecador (cf. v. 8; 4,4). É aquele que dá a quem pede (cf. v. 5; 5,15), sempre pronto a perdoar (5,11). Mas também é juiz (5,8-10; cf. 4,12) que dá o reino aos pobres submetidos às provações e pede contas aos ricos violadores de sua lei.”

Deus é Senhor (1,1) e Pai (1,27; 3,9), é o “Pai das luzes”, criador do dia e dos luminares celestes (Gn 1,3-5; 14-18) e fonte de toda a luz espiritual (Jo 1,4; 8,12; 1Jo 1,5; cf. 1Pd 2,9). As imagens que seguem são sugeridas pelo movimento dos astros Diferente das mudanças das estrelas, nele “não há mudança, nem sombra de variação” (var.: “no qual não existe nenhuma mudança proveniente do movimento da sombra”); o mesmo título no apócrifo Ascensão de Moisés, (ApMos 36,5).

A Bíblia do Peregrino (p. 2895) comenta: Pai tem aqui um sentido fraco, de autor ou causa. Os astros têm fases de escuridão. “O que há de mais brilhante que o sol? Pois também ele tem eclipses” (Eclo 17,31). Deus não tem fase de escuridão, por isso pode enviar sempre sua luz benéfica. À imagem do “nascimento” do pecado e da morte se contrapõe o símbolo positivo, em que é Deus quem gera filhos, ou quem os adota (cf. Sl 2,7), pela pregação do evangelho (1Jo 3,1). “Primícias da criação” faz lembrar Pr 8,22 em grego. Pois bem, se somos seus filhos, ele nos concederá “coisas boas”, como diz Mt 7,11 par. Soou a palavra “mensagem” e retornará para ser completada.

Esta “Palavra da verdade” é o conjunto da revelação de Deus aos homens, a palavra criadora e os ensinamentos, o Evangelho (cf. 1Pd 1,23-24; Cl 1,15; Ef 1,13; 2Tm 2,15), mas também uma sabedoria de vida (cf. 3,14; 5,19) que o autora chama também de “lei da liberdade”, “lei real” (cf. 1,21-25; 2,8.12). Enquanto a concupiscência gera a morte (vv. 14s), essa palavra faz com que os cristãos existam qual “primícias” de uma criação nova.

A Bíblia de Jerusalém (p. 265) comenta: Tiago não fala da “graça”, exceto em 4,6. Aqui menciona o seu equivalente neste novo nascimento, devido à palavra de Deus (Jo 1,12; 3,3; 1 Pd 1,23) e que constitui o povo de Deus pelas sua “primícias” (cf. Dt 18,4; 1Cor 15,20; Rm 8,23; 16,5). Esta palavra é plantada nos corações (lit.: “inata”) pela pregação do evangelho que salva (v. 21) e pela fé, que é a aceitação deste anúncio (cf. 1Ts 2,13). São traços da catequese batismal.

Recebei com humildade a Palavra que em vós foi implantada, e que é capaz de salvar as vossas almas. Todavia, sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos (vv. 21b-22).

Nossa liturgia pulou os vv. 19-21a e retoma o tema da “Palavra” (logos, cf. v. 18), no uso típico no NT. Ela é revelação salvadora de Deus em Jesus (evangelho), prefigurada no AT, nas profecias e na Lei (de que é sinônimo: cf. “decálogo” – 10 palavras/mandamentos, Ex 34,28).

É preciso preparar-lhe o terreno, recebê-la escutando e pô-la em pratica. A primeira tarefa é limpar a “impureza” (v. 21a, ser livres de toda mancha; uma fórmula relacionada ao batismo cf. 1Pd 2,1; Rm 13,12; Ef 4,22.25; Cl 3,8; Hb 12,1), um dos símbolos básicos do pecado (cf. Sl 51 e Ez 36). Depois, deve-se acolhê-la suavemente, sem resistência nem violência, para que seja “implantada” (semeada, diz Mt 13). Dá fruto quando é posta em “prática” (Tt 3,14). Ao “gerar” (v. 18) corresponde ao “salvar”.

“Sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes”; para Tg é importante, a “prática” da fé, ou seja, as “obras”, não vale uma fé sem as obras (2,14-25). Nisso, ele concorda com os evangelhos (cf. Mt 7,21-28; 25,31-46; Lc 8,21; 11,28; cf. Dt 4,5s; 28,13-15; Ez 33,31s). Paulo, porém, polemizava contra as obras da lei judaica (como circuncisão, pureza alimentar etc., cf. Gl 2,16; Rm 1,17 etc.), não contra a prática da caridade (cf. 1Cor 13; Rm 13, 8-10). “Enganando-vos a vós mesmos” cf. o exemplo em v. 26.

Com efeito, a religião pura e sem mancha diante de Deus Pai, é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo (v. 27).

Nossa liturgia saltou os vv. 25-26. Quem multiplica orações com uma “língua sem freio” (v. 26) e pensa que nisso consiste ser “religioso” (cf. Mt 6,7), engana-se. É a polylogia (usar muitas palavras sem dizer muita coisa) que já os antigos condenavam. Corresponde a condenação profética do ritualismo (cf. Is 1,10-20; Jr 7; Is 58).

A isso se opõem as obras de misericórdia para com os necessitados, resumidos na dupla “viúvas e órfãos” (cf. Sl 68,6; Jó 29,12s; etc.). Temos aqui um eco dos profetas que se recusavam a dissociar o culto autêntico da justiça com os humildes (cf. Is 1,11-17.23; Jr 5,28; Ez 22,7; Zc 7,10).  “Deus (nosso) Pai” (cf. Mt 6,9; 1Cor 15,24; Ef 5,20): esta expressão já era usada no AT (Dt 32,6; cf. Is 63,16; Eclo 23,1.4; Sb 2,16) e expressa o cuidado para com os pobres: “Pai dos órfãos, justiceiro das viúvas” (Sl 68,6; cf. Dt 27,19; Eclo 4,10; At 6,1).

O culto espiritual agradável a Deus toma forma concreta no comportamento honesto e no serviço aos fracos (cf. Dt 27,19; Is 1,17; Jr 5,28; etc.). A “pureza” (sem mancha, não se deixar contaminar) exigida pelo culto é a do amor (cf. 4,8; Mc 7,1-23). Aliás, é a única vez na Bíblia que se define este termo: “religião” (cf. Mq 6,8). O shema Israel destaca o ouvir: “Ouve Israel, Javé nosso Deus é único…” (Dt 6,4). Religião não é só falar, mas ouvir e praticar, “re-ligar-se” a Deus que ouve o clamor do seu povo sofrido (Ex 3,7).

Além da prática exterior da caridade, “a religião pura e sem mancha” consiste também na integridade interior: “não se deixar contaminar pelo mundo”. Este sentido pejorativo de “mundo” (oposição a Deus) ocorre também nas cartas paulinas, 2Pd, e Jo e 1Jo.

A Bíblia Sagrada Edição Pastoral (p. 1490) resume:

Tiago chama a atenção para a essência da vida cristã: ouvir a palavra do Evangelho e colocá-la em prática. A fé não se resume em afirmações que podem ser ouvidas e decoradas; ela é compromisso que leva a tomar atitudes concretas e cheias de consequências. Centrado no mandamento do amor, o Evangelho é a lei da liberdade, pois o amor não se restringe a exigir a obediência a uma lista de obrigações; ele é comportamento criativo, que sabe dar resposta libertadora e construtiva em qualquer situação…Temos aqui um dos pontos centrais do Novo Testamento: o culto que se pede aos cristãos não se resume em cerimônias ou em saber fórmulas de cor. O verdadeiro culto é a entrega de si mesmo a Deus para viver a justiça na prática: não difamar o próximo (língua); socorrer e defender os pobres e marginalizados (órfão e viúva) e não comprometer-se com a estrutura injusta da sociedade (corrupção do mundo).


Evangelho: Mc 7,1-8.14-15.21-23

Depois do discurso sobre do Pão da Vida no evangelho de João (Jo 6) no domingos passados, voltamos a seguir o evangelho de Marcos neste ano litúrgico B.

O evangelho de hoje apresenta um dos capítulos centrais do presente evangelho. A longa discussão com os fariseus sobre as tradições e sobre o que é puro e impuro (vv. 1-23) contrasta com o sucesso de Jesus Cristo junto à multidão (cf. 6,53-56; o mesmo contraste em 2,1-3,6; 3,20-35) e intercala-se, antes da partida de Jesus para terras pagãs (v. 24). Mt copiou esta discussão, Lc a omitiu (ou porque mudou seu itinerário das viagens de Jesus ou porque queria apresentar a cultura judaica com mais simpatia aos seus leitores gregos, cf. Lc 1-2; 11,38)

Os fariseus e alguns mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus. Eles viam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado. Com efeito, os fariseus e todos os judeus só comem depois de lavar bem as mãos, seguindo a tradição recebida dos antigos. Ao voltar da praça, eles não comem sem tomar banho. E seguem muitos outros costumes que receberam por tradição: a maneira certa de lavar copos, jarras e vasilhas de cobre (vv. 1-4).

Mc também escreve para leitores greco-romanos, como se pode deduzir através da longa explicação de costumes judaicos (vv. 3-4), dirigida obviamente a não-judeus. Os que se reúnem são “fariseus e alguns mestre da lei”, ou seja, doutores intérpretes oficiais da lei que “vieram de Jerusalém” com a auréola e autoridade que a capital acrescenta (cf. 3,22; Jo 1,19.24). Os doutores preservam a doutrina, os fariseus promovem a pratica, não só da lei de Moises, mas especialmente da muralha de interpretações e observâncias que a concretizam e defendem (no século II, os “rabinos”, mestres da lei, escrevem uma coleção destas prescrições chamada “mishna”, considerada uma cerca ao redor da lei). Com o propósito de formar um povo observante à lei e santo e consagrado ao Senhor (Lv 20,7; 19,1), os mestres da lei e fariseus tinham acumulado prescrições vinculantes, mas com isso impunham ao povo uma carga insuportável na vida cotidiana, apelando ilegitimamente para a vontade de Deus, em alguns casos anulando o sentido da lei. O exercício da religião tornou-se ritualista e externa e favorecia o orgulho dos observantes que desprezavam os demais (cf. Mt 23; Jo 7,49).

Entre as muitas observâncias, algumas se referem a lavatórios e abluções cotidianas (cf. Jt 12,7-9), baseiam-se em leis do culto para sacerdotes, mas os fariseus levaram ao extremo tentando impor ao povo todo (Ex 30,18-21; 40,12.31-32; Lv 15; Nm 19; Dt 21,6; Eclo 34,25; Hb 9,10). Não se trata de higiene, mas de pureza ritual, diferente de uma purificação do coração (conversão; cf. Is 1,16; 4,4; Ez 36,25; Mc 1,4; Hb 6,2 1Pd 3,21).

Os fariseus e os mestres da Lei perguntaram então a Jesus: “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?” Jesus respondeu: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos”. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens (vv. 5-8).

Os fariseus questionam Jesus a respeito da conduta dos seus discípulos (cf. 2,18.24). Não apelam à lei de Moises, mas à “tradição dos antigos”. Jesus responde com a profecia de Is 29,13 que denuncia duas coisas: o desacordo entre o interior e o exterior (“coração”, “lábios”) e a preferência de “preceitos humanos… vossas tradições” aos mandamentos divinos.

Nossa liturgia saltou os vv. 9-13 que apresentam o corban como exemplo de desrespeito ao (quarto) mandamento. Os fariseus ensinam a prática do “corban”, o voto pelo qual uma pessoa consagrava a Deus os próprios bens, tornando-os intocáveis (“consagrado a Deus”) e reservados ao tesouro do templo (cf. Mt 15,6; 27,6). Aparentemente, Deus era louvado, mas na realidade, os pais idosos ficam privados de sustento necessário, enquanto o templo e os sacerdotes ficavam mais ricos.

A crítica de Jesus, “assim vós esvaziais a palavra de Deus com a tradição que vós transmitis” (v. 13), não se dirige somente aos fariseus de então, mas também a nós. A Igreja Católica considera como revelação divina não só a “Bíblia”, mas também a “Tradição” (os dogmas, a lei canônica, as liturgias, os documentos dos papas e dos concílios, etc.). Em 1517, Martin Lutero criticou a “tradição” das indulgências e desencadeou a reforma protestante, aceitando “só a Bíblia, não a tradição da Igreja”. Sabe-se hoje, justamente pelas pesquisas luteranas e católicas, que a Bíblia é também parte da tradição: é a parte escrita da tradição e aceita pela Igreja como inspirada do Espírito Santo. Então, não é tal fácil separar a tradição da Igreja da própria palavra de Jesus. Por isso é sempre preciso um estudo da Bíblia no contexto histórico para não cair num fundamentalismo (interpretação ao pé da letra) que desconhece e distorce a intenção do autor bíblico. Mas a advertência de Jesus permanece atual: não esvaziar a palavra de Deus por tradições humanas, ex. normas eclesiais e devoções populares não devem esvaziar, mas corresponder às palavras profundas da Bíblia.

Jesus chamou a multidão para perto de si e disse: “Escutai todos e compreendei: o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior (vv. 14-15).

Depois de responder bem à crítica dos fariseus sobre comer os pães sem lavar as mãos (cf. vv. 1-13; evangelho de ontem), Jesus se dirige à multidão (v. 14-16) e depois, em casa, aos discípulos (vv. 20-23).

Já não se trata de uma tradição, de interpretação e observância, mas da própria lei, ou seja, dos tabus alimentares rituais (Lv 11; Dt 14). Na Torá (a “lei” de Moisés, em grego o Pentateuco, os primeiros cinco livros do AT), Deus diz: “Separai o puro do impuro” (Lv 10,10) e: “Separai também vós os animais puros dos impuros… e não vos contamineis com animais, aves ou répteis que eu separei como impuros. Sede santos para mim, porque eu, o Senhor, sou santo…” (20,25-26). O que Jesus diz equivale à abolição formal dessa lei (vv. 19-20; At 10,9-15).

Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo. Todas estas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem” (vv. 21-23).

Nossa liturgia saltou os vv. 9-13. No evangelho de Mc, Jesus só fala em parábolas à multidão de fora, mas explica-as aos seus discípulos que estão com ele num segundo momento, num círculo mais reservado (cf. 4,10-13.33s). Aqui faz um comentário ao novo princípio. Sem negar a existência do diabo, o evangelho não joga a culpa em algo ou alguém ser fora do homem, mas insiste na responsabilidade do próprio ser humano, “de dentro do coração saem as más intenções… Todas estas coisas más saem de dentro”. Seu coração, sua consciência livre, é a fonte da vida moral. A lista de doze pecados, embora seletiva, quer abranger os principais campos ou os mais frequentes; alguns pertencem ao decálogo (dez mandamentos, cf. Ex 20; Dt 5).

O site da CNBB comenta:

Jesus, citando o profeta Isaías, diz: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim”. Precisamos saber se somos cristãos de palavras ou de coração. O cristão de palavras é aquele que vive uma religiosidade de cumprimento de preceitos, normas e rituais, que em nada difere dos rituais de alquimia e bruxaria que existem por aí; o que muda é que no lugar de abracadabra, fala frases bonitas com efeitos especiais. O cristão de coração é aquele que ama a Deus, ama os seus irmãos que são templos dele e procura servir a Deus no serviço aos irmãos e irmãs, na valorização da pessoa humana e promoção da sua dignidade. O cristão de coração fala pouco e nem sempre sabe falar bonito, mas ama muito, é solidário, generoso e fraterno.

Todos nós somos capazes de ver a influência que a sociedade exerce sobre o comportamento das pessoas e muitas vezes ouvimos pessoas que querem responsabilizar outras pessoas ou a sociedade pelos seus próprios atos. Jesus, no Evangelho de hoje, nos mostra que, na verdade, a responsabilidade do ato compete à própria pessoa, pois a pessoa age de acordo com os valores ou desvios que estão presentes no seu coração. É claro que existe a influência do meio, mas ela só determina a vida da pessoa se encontra eco no seu coração, caso contrário, a pessoa rejeita essa influência.

 

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