03 de março de 2018 – Sábado, Quaresma 2ª semana

Leitura: Mq 7,14-15.18-20

Ouvimos nesta leitura a conclusão do livro do profeta Miqueias, que atuava na mesma terra e mesma época de Isaías por volta de 740 a 700 a.C. Como os demais escritos proféticos, também o livro de Mq foi ulteriormente atualizado. Como os livros de Oseias e Amós, também o de Mq termina com um tom de esperança, com uma liturgia da comunidade judaica no exílio (séc. VI) e no pós-exílio (vv. 8-10). Assim ela responde à palavra do profeta escrita dois séculos antes e lida no culto (pós-) exílio.

Apascenta o teu povo com o cajado da autoridade, o rebanho de tua propriedade, os habitantes dispersos pela mata e pelos campos cultivados; que eles desfrutem a terra de Basã e de Galaad, como nos velhos tempos. E, como nos dias em que nos fizeste sair do Egito, faze-nos ver novos prodígios (vv. 14-15).

Os vv. 14-17 são uma oração que lamenta a desolação da cidade de Jerusalém, “habitantes dispersos pela mata” (v. 14). É a situação dos judeus na volta do exílio. Em v. 11, foi prometida a restauração das muralhas e o alargamento das fronteiras para acolherem uma multidão.

Em v. 14, a comunidade pede ao Senhor que é pastor de Israel (cf. Sl 23,1-2.4; 74,1; 95,7; Ez 34): “Apascenta o teu povo com o cajado da autoridade, o rebanho da tua propriedade … que eles desfrutam a terra de Basã e de Galaad, como nos velhos tempos.” Depois de voltar do exílio, o povo está morrendo em solo medíocre, enquanto as terras ricas ao redor estavam ocupadas por estrangeiros, mas “nos velhos tempos” moravam lá as tribos de Israel depois do êxodo (cf. Jr 50,19). Com fé, pede-se ao Senhor fazer novas maravilhas como naquele tempo de Moisés: “Como foi nos dias em que nos fizestes sair do Egito, faze-nos ver novos prodígios” (v. 15), e que os povos inimigos ao vê-lo se envergonhem (vv. 16-17, omitidos na leitura de hoje).

Qual Deus existe, como tu, que apagas a iniquidade e esqueces o pecado daqueles que são resto de tua propriedade? Ele não guarda rancor para sempre, o que ama é a misericórdia. Voltará a compadecer-se de nós, esquecerá nossas iniquidades e lançará ao fundo do mar todos os nossos pecados. Tu manterás fidelidade a Jacó e terás compaixão de Abraão, como juraste a nossos pais, desde tempos remotos (vv. 18-20).

Se ao inimigo o Senhor se mostra poderoso e castigando (cf. vv. 16-17), ao seu povo se revela misericordioso e perdoando. Os vv. 18-20 são um hino ou salmo semelhante aos encontrados nas escritas proféticas (Is 12; 25,1-5; 26,1-6.7-15.16-9; 63,7-64,11 etc.). Geralmente o louvor se refere à grandeza do criador ou à sua intervenção salvadora em tempos de penúria. Mas aqui se confessa expressamente um Deus incomparável (“qual Deus existe, como tu…?”), porque ele tira e descarrega os pecados. No hebraico, Deus não só está disposto para esquecer e não guardar rancor para sempre (v. 18; cf. Ex 34,6-7; Jr 50,20), mas luta com verdadeira força contra as iniquidades e pecados, ele “calcará aos pés”, como se “apaga” um fogo, e “lançará ao fundo do mar todos os nossos pecados”, como antigamente jogou no mar os cavalos e carros do Faraó (v. 19; cf. Ex 15,1.21).

Quem escreveu este texto deve ter reconhecido profundamente seus erros do passado para poder louvar assim a compaixão de Deus e a fidelidade à aliança e sua promessa “como jurastes a nossos pais desde os tempos remotos”, fundamento de toda esperança e objeto primeiro da fé do povo de Deus (cf. Gn 22,16-18; 28,13-15; Sl 105,8-10; Lc 1,73).

Evangelho: Lc 15,1-3.11b-32

Este texto do evangelho é um dos mais conhecidos, mas encontra-se só em Lucas. Para Lc, a misericórdia de Deus e de Jesus é fundamental (cf. 6,36), não só para doentes e pobres, mas se abre ao perdão dos pecadores e a acolhida dos marginalizados (cf. 7,36-50; 19,10; 23,43).

Os publi­canos e pecadores aproximaram-se de Jesus para o escutar. Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus: “Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles”. Então Jesus contou-lhes esta parábola: (vv. 1-3).

Lc escreveu um capítulo inteiro com três parábolas da misericórdia, a da ovelha desgarrada (vv. 4-7; cf. Mt 18,12-14), a da moeda perdida (vv. 8-10) e a do filho pródigo. O evangelho de hoje nos apresenta somente a última, mas preserva a introdução do capítulo que dá uma chave para nossa parábola. “Os fariseus, porém, e os mestres da lei criticavam Jesus: “Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles”” (v. 2). Jesus é Filho, só ele conhece o Pai (10,22) e age como ele acolhendo o pecador (o filho pródigo) e faz refeição com ele, da qual o filho mais velho (os fariseus) não quer participar.

Mas a arte literária de Lc deu a esta parábola um sentido mais universal que podia ajudar também na reflexão no Ano da Misericórdia (2016; cf. também n.º 5-6 da encíclica Dives em Misericórdia de João Paulo II) e sobre a juventude (cf. Campanha da Fraternidade 2013), porque os jovens querem conquistar sua liberdade e autonomia, mas às vezes por caminhos errados.

Um homem tinha dois filhos. O filho mais novo disse ao pai: “Pai, dá-me a parte da herança que me cabe”. E o pai dividiu os bens entre eles. Poucos dias depois, o filho mais novo juntou o que era seu e partiu para um lugar distante. E ali esbanjou tudo numa vida desenfreada (vv. 11b-13).

Foi sugerido de chamar esta parábola não a do filho pródigo, mas do “Pai misericordioso”, ou dos “dois filhos” (mas já existe outra com este título em Mt 20,28-32). Como é costume chamar as parábolas do reino pelo protagonista (semeador, joio e trigo, tesouro e perola, vinhateiros assassinos etc.), a parábola continua ser a do filho pródigo, no entanto o que Jesus mais revela nela é o Pai (cf. 10,22; Jo 1,18).

Ao contrário do que muitos pensam, já encontramos no Antigo Testamento (AT) textos sobre o aspecto emotivo e entranhado da paternidade de Deus (Os 11; Jr 31,18-20; Sl 103,13), aliás, a palavra “misericórdia, compaixão” vem da palavra hebraica de “entranhas, útero” que se comovem com a miséria dos outros. O amor paternal encontra-se também no desfecho da novela de José (Gn 50) e na história de Davi (2Sm 12,15-25; 19,1-9).

O filho mais novo pede ao Pai a parte de sua herança que lhe cabe (v. 12); a parte que cabe ao mais novo é um terço dos bens móveis (Dt 21,17). Contra a recomendação de Eclo 33,20-24 de não ceder herança em vida, o “pai dividiu os bens entre eles” (mas em v. 31 só deu a parte do mais novo). O filho mais novo “partiu para um lugar distante”, longe da presença paterna, num desterro voluntário, buscando a liberdade, mas o mau uso desta liberdade (cf. Gl 5,13-21), a libertinagem, leva logo a miséria e “ali esbanjou tudo numa vida desenfreada” (v. 13; cf. Pr 23,21; 29,3; Eclo 18,30,19,2).

Quando tinha gasto tudo o que possuía, houve uma grande fome naquela região, e ele começou a passar necessidade. Então foi pedir trabalho a um homem do lugar, que o mandou para seu campo cuidar dos porcos. O rapaz queria matar a fome com a comida que os porcos comiam, mas nem isto lhe davam (vv. 14-16).

Na sua necessidade (Pr 16,25), só consegue um trabalho degradante com um patrão pagão (Lv 25,47): cuidar dos porcos (v. 15), ofício humilhante para qualquer um, mais ainda para um judeu, forçado a ficar no meio de animais impuros que judeus não comem (Lv 11,17; cf. Mc 5,12s). Como não se bastasse, esses porcos gozam de melhor sorte do que o filho (v. 16).

Então caiu em si e disse: “Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome. Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: ‘Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados’” (vv. 17-19).

O narrador revela os pensamentos do jovem que chegou ao fundo do poço. A necessidade o faz refletir, ainda com interesse próprio, aquela situação passada com o Pai onde era mais feliz do que agora (Os 2,9; Jr 2,9), e depois descobre a dimensão religiosa: O pecado vai contra Deus (vv. 18.21; cf. Gn 39,9; Ex 10,16; Dt 1,41; 2Sm 12,13; Sl 51,8). Em pensamento, o jovem impõe a pena a si mesmo: perder todos os direitos de filho (cf. Gn 43,9).

Então ele partiu e voltou para seu pai. Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o e cobriu-o de beijos. O filho, então, lhe disse: “Pai, pequei contra Deus e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho” (vv. 20-21).

O pai não se deixa levar pela lei (Dt 21,20), mas pela graça, ou seja, pelo afeto paternal (Jr 31,20; Os 11,8), identificando-o de longe e “sentiu compaixão” e, mesmo sendo velho, “correu-lhe ao encontro” (v. 20). O abraço com beijos sela a reconciliação antes que o filho pronuncie a confissão (cf. Jr 3,13).

Mas o pai disse aos empregados: “Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés. Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado”. E começaram a festa (vv. 22-24).

É recebido como “filho” e assim restituído com a “melhor túnica” e um “anel” (v. 22). É um reviver, “meu filho estava morto e tornou a viver”; não a simples volta, mas o arrependimento e o perdão precisam ser festejados (cf. Eclo 32,5,6; 2Cor 5,17-19). A história poderia terminar com esse convite à alegria como nas duas parábolas anteriores (cf. vv. 6-7.9-10).

O filho mais velho estava no campo. Ao voltar, já perto de casa, ouviu música e barulho de dança. Então chamou um dos criados e perguntou o que estava acontecendo. O criado respondeu: “É teu irmão que voltou. Teu pai matou o novilho gordo, porque o recuperou com saúde” (vv. 25-27).

Mas esta parábola tem uma segunda parte, porque nem todos (os fariseus, nós?) se alegram com o resultado da misericórdia desse pai. Nem todos aceitam nem compreendem o coração do Pai, por ex. Jonas que não queria ser profeta de um “Deus compassivo e clemente, paciente e misericordioso” (Jn 4,2; cf. Ex 34,6; Jl 2,13; Sl 86,15; 103,8; 145,8; Ne 9,17). O filho mais velho voltou do campo, não estava folgado, mas dedicado ao trabalho. Ele estranha ao ouvir o barulho da música e a notícia sobre o irmão.

Mas ele ficou com raiva e não queria entrar. O pai, saindo, insistia com ele. Ele, porém, respondeu ao pai: “Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado” (vv. 28-30).

O irmão mais velho ficou com raiva, não quer entrar na alegria (cf. 14,15-24; 18,17.24s; Mt 5,20; 7,21; 23,13; 25,10.21.23) e discute com o pai em termos de retribuição comparativo. Sua fala é mais explícita do que a do próprio narrador: “esbanjou teus bens com prostitutas” (v. 30; apenas “vida desenfreada” em v. 13). Não chama o mais novo de “meu irmão”, apenas de “teu filho”.

Então o pai lhe disse: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado” (vv. 31-32).

O pai faz ver seu filho obediente que está bem pago convivendo com ele: “Tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu”. Já que o mais velho participa de tudo do Pai, deveria também participar da sua alegria de recuperar seu filho, porque a vida de uma pessoa vale mais do que bens perdidos (cf. Mc 5,1-20; 9,36). O padre belga José Cardijn, fundador da Juventude Operária Católica, dizia: “Cada operário vale mais que todo ouro da terra”. Muito mais ainda vale o filho para o pai do que um empregado.

A parábola termina aqui. Não sabemos se o filho mais velho aceitou a misericórdia do Pai e se reconciliou com seu irmão. Assim a parábola fica aberta com um convite a todos nós: mais do que obedecer todas as ordens do pai, devemos partilhar do seu coração compassivo. Paternidade gera fraternidade. Verdadeira obediência a Deus é amor aos irmãos.

Devemos amar Deus, mas amar também o irmão (cf. 1Jo 2,9-11; 3,11-17; Mt 6,14; 18,21-35; 22,34-40; Cl 3,13). E para facilitar a conversão (e a volta à Igreja), todo pecador deve saber que Deus não é um monstro vingativo, mas é um Pai misericordioso que quer a liberdade e a vida. “Deus não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva” (Ez 18,23-32). “Aproximemo-nos, então, com segurança do trono da graça para conseguirmos misericórdia e alcançarmos graça, como ajuda oportuna” (Hb 4,16).

O site da CNBB conclui: A Igreja precisa se aproximar cada vez mais dos pecadores e pecadoras para dar-lhes oportunidades reais de conversão e meios concretos para que possam seguir o itinerário da fé e trilhar os caminhos da santidade. Isso só é possível quando seguimos o exemplo de Jesus e acolhemos todas as pessoas que vivem no pecado e que são marginalizadas por causa disso. Se não nos dispomos a criar espaço nas nossas comunidades para essas pessoas e não criamos mecanismos pastorais e evangelizadores eficazes, os pecadores e as pecadoras não terão as melhores condições para corresponder à graça divina e nós seremos responsáveis por isso.

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