04 de agosto de 2016 – 18ª semana 5ª feira

Leitura: Jr 31,31-34

Ouvimos hoje a promessa de uma “nova aliança” dentro do livro das consolações em Jeremias (Jr 30-31). Trata-se provavelmente de uma coleção poética pertencente à escola deuteronomista. As primeiras poesias foram colecionadas e elaboradas durante a reforma de Josias (622-609 a.C.; cf. 2Rs 22-23) para exaltar a volta dos exilados de Israel do Norte (deportados pelos assírios em 722 a.C., cf. 2Rs 17) e sua reunificação com o reino do Sul, Judá, em torno de Sião (a colina do Templo em Jerusalém; cf. 31,5-6.15.18.20).

Eis que virão dias, diz o Senhor, em que concluirei com a casa de Israel e a casa de Judá uma nova aliança; não como a aliança que fiz com seus pais, quando os tomei pela mão para retirá-los da terra do Egito, e que eles violaram, mas eu fiz valer a força sobre eles, diz o Senhor (vv. 31-32).

Deus sela a reconciliação concluindo “nova aliança”. Em v. 31 se mencionam “Israel” (reino do Norte) e “Judá” (reino do Sul), em v. 33 só Israel (“casa” quer dizer os moradores: a família, depois o povo): é mais fácil explicar um acréscimo (Judá) que uma supressão. Primeiramente os oráculos de restauração se dirigiam ao reino do Norte, mas depois da invasão do reino do Sul e da destruição de sua capital Jerusalém por Nabucodonosor (586 a.C.), o anúncio de retorno e de restauração foi em seguida estendido e ampliado aos exilados na Babilônia (30,3-4.8-9.17; 31,1 etc.).

Eles violaram a aliança, “mas eu fiz valer a força sobre eles”, em hebraico “fui senhor” ou “fui marido”. Em termos de aliança, o Senhor é o soberano que cumpriu seus compromissos da antiga aliança; em termos de matrimônio, o Senhor é o marido ao qual a esposa foi infiel (cf. Os 1-3).

Esta será a aliança que concluirei com a casa de Israel, depois desses dias, diz o Senhor: imprimirei minha lei em suas entranhas, e hei de inscrevê-la em seu coração; serei seu Deus e eles serão meu povo (v. 33).

A aliança fracassada exigia adesão exclusiva ao Senhor, traduzida no cumprimento integral da lei. A lei era formulada com toda a clareza e respaldada por bênçãos e maldições (cf. Dt 27-28; 30.33). Mas era externa, gravada numa pedra (Ex 24,12; 31,18; 32,15; 34,1.4.28s; Dt 4,13; 5,22; 9,9.15; 10,1-5), com a qual os ânimos dos homens não sintonizam.

A novidade desta “nova aliança” é que a lei será inscrito dentro (“em suas entranhas”), de modo que se converta no impulso ou dinamismo da conduta; o “coração” estará remodelado pela marca viva da lei. Na Bíblia, o ser humano escuta com o ouvido e pensa (planeja, decide e age) com o coração. A palavra de Deus morando dentro do centro do ser humano, eis a novidade (cf. Ez 11,19; 16,59-63; 36,26; Jo 1,14; 14,23; 2Cor 3,3).

Há de lembrar que a arca da aliança que continha as “tábuas de pedra” com a lei (dez mandamentos; cf. Ex 20; 25) se perdeu na invasão dos babilônios em 587 a.C. (cf. 2Rs 24,13; 25,9). Jeremias consola que “a arca da aliança de Javé, ela não voltará a memória, não se mais lembrarão mais dela, não a procurarão e nem será reconstruída” (3,16). Se a lei está inscrito no coração das pessoas, não precisa mais da arca. O corpo humano torna-se a arca da lei (cf. Maria é chamada arca da aliança, porque continha a palavra de Deus dentro de si, cf. Ap 11,19-12,1). Na Etiópia, a arca estaria preservada e escondida, dizem lendas locais da Igreja Copta hoje.

O final deste v. contém a fórmula clássica da Aliança, “serei seu Deus e eles serão meu povo” (cf. Dt 26,17s; 27,9; 28,9 etc.) muitas vezes relembrada por Jeremias (cf. 7,23; 11,4; 13,11; 24,7; 31,1.33; 32,38).

Não será mais necessário ensinar seu próximo ou seu irmão, dizendo: “Conhece o Senhor!”; todos me reconhecerão, do menor ao maior deles, diz o Senhor, pois perdoarei sua maldade, e não mais lembrarei o seu pecado (v. 34).

Assim se restabelecem as relações pessoais, substância autêntica da aliança. Afirma-se o “conhecimento” do Senhor, que é reconhecimento e se traduz em compromisso (que faltava nos chefes e no povo, cf. 2,8; 4,22; 9,2). A transformação fará com que tal conhecimento atue como dom instintivo, não como lição aprendida.

Um “perdão” total, sem reservas, é o primeiro ato da reconciliação, no qual se manifesta o “amor eterno” (v. 3) do Senhor que perdura séculos. Estes versículos têm muitas citações e alusões no NT, p. ex. Rm 11,27; Hb 8,8-12; 10,16-17 (cf. a consagração do vinho na oração eucarística: “o sangue da nova e eterna aliança“).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 767) comenta: A nova aliança que Deus vai estabelecer depois de ter soberanamente (v. 32b) perdoado a quebra da antiga (v. 34) não consiste numa modificação das diretrizes dadas no Sinai e dos compromissos então assumidos, nem num novo culto puramente espiritual: ela consiste antes no fato de as diretrizes e compromissos antigos serem agora inscritos “no coração” no ser íntimo do homem (cf. Is 48,17; 51,7; 54,13; 55,3; Pr 9,1-6; Ct 8,2; Rm 8,2; 1Cor 9,21…). A estrutura da personalidade será regenerada de tal forma que cada um, sem ser orientado por outras pessoas, conhecerá e realizará a vontade do Senhor (cf. Zc 13,9; 1Jo 2,20.27; 3,9…). – Ao instituir a Eucaristia, penhor da realização da nova aliança, Jesus citará esta profecia (Lc 22,20; 1Cor 11,25). Os vv. 31-34 são citados integralmente em Hb 8,8-12, numa meditação sobre a nova aliança.

Evangelho: Mt 16,13-23

No evangelho de hoje, Mateus copia Mc 8,27-33, mas destaca o papel de Simão Pedro através de uma declaração de Jesus. Para apreciar, precisa reconhecer que Mt já usava o evangelho mais antigo, o de Marcos. Para Mc, a profissão de fé de Pedro está no centro do evangelho, mas Mc não nos transmite as palavras de Jesus sobre o primado de Pedro. Na primeira metade de Mc, Jesus demonstra seu poder, cura e atua milagres na Galileia até ser aclamado de “Cristo-Messias” por Simão Pedro (Mc 8,29). Mas a partir daí, Jesus começa anunciar sua paixão e morte em Jerusalém (Mc 8,31; 9, 31, 10,33). Simão Pedro deve ficar calado ainda sobre o segredo do messias, mas não quer entender o sofrimento anunciado a respeito do messias e repreende o mestre. A reação de Jesus é duríssima: “Atrás de mim, Satanás, não pensas as coisas de Deus, mas dos homens” (Mc 8,33).

O segredo do messias e a incompreensão até por parte dos discípulos são características do evangelho de Mc. João Marcos acompanhava Paulo e era intérprete de Pedro, conhecia bem o lado humano deles (cf. At 12,12.25; 13,5.13; 15,37.39; Cl 4,10; Fm 24; 2Tm 4,11; 1Pd 5,13). A obra atribuída a ele foi concluída cerca de 70 d.C., durante da guerra judaica e pouco depois da perseguição violenta pelo César Nero que resultou no martírio de Pedro e Paulo (65 ou 67 d.C.) e de muitos outros cristãos, por isso falava da necessidade da cruz e da dificuldade de entender isso.

Para Mt, a situação é diferente. Ele atenua ou evita falar da incompreensão dos discípulos. Para Mt e Lc, que escreveram cerca de 15 anos depois, os apóstolos já ganharam o status de santos. Como a guerra judaica tinha acabado com a derrota dos judeus, não havia mais tanta necessidade de um segredo messiânico, não precisava evitar o mal-entendido de um messias-Cristo nacionalista e guerreiro. Mas por fidelidade à sua fonte Mc, Mateus não omite nem o silêncio nem a repreensão, mas os adia para vv. 20-23, declarando antes Pedro como “pedra” fundamental da Igreja.

Jesus foi à região de Cesareia de Filipe e ali perguntou aos seus discípulos: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” Eles responderam: “Alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias; Outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas.” Então Jesus lhes perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Simão Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (vv. 13-16).

Na primeira parte do evangelho de hoje, Mt segue fielmente a Mc. Antes de ir ao sul para cumprir sua missão Jerusalém, Jesus e os discípulos encontram-se no ponto mais setentrional da sua trajetória, em Cesareia de Filipe, uma cidade construída junto às nascentes do Jordão, em 2 ou 3 a.C., por Herodes Filipe em honra de César Augusto. A pergunta de Jesus força os discípulos a fazer uma revisão de tudo o que ele realizou no meio de povo. Esse povo não entendeu bem quem é Jesus. Os discípulos, porém, que acompanham e veem tudo que Jesus tem feito, reconhecem agora, através de Pedro, que Jesus é o Messias.

O termo “Filho do Homem” (cf. 8,20 etc.) pode significar simplesmente “ser humano” (cf. Sl 8,5; Ez 2,1 etc.; em hebraico: “filho de Adão”) ou aludir à visão apocalíptica de Dn 7,13s, na qual um ancião (Deus) entrega o reino de Deus a um Filho do Homem que vem nas nuvens e contrasta com as bestas-feras dos reinos pagãos. Em Dn 7,29, o Filho do Homem é identificado com o “povo dos santos”.  Em alguns círculos judaicos (cf. o livro apócrifo Apocalipse de Henoc), este Filho do Homem foi identificado como indivíduo: o messias que virá e julgará o mundo no final dos tempos (cf. Mt 13,41; 16,27; 24,30.37.39.44; 25,31; 26,64). Jesus não podia ser preso ao utilizar este título pela ambiguidade do seu significado, aplicou-o a si mesmo com predileção, não só para indicar sua futura glória celeste (cf. 10,23; 13,37; 24,34p; 25,31; 26,64), mas também para expressar sua humilhação humana (8,20; anúncios da paixão: 17,12; 20,17-19; Mc 8,31; Jo 3,14).

O título “profeta”, que Jesus não reivindicou senão de maneira indireta e velada (13,57p; Lc 13,33), mas as multidões lhe deram sem hesitar (16,14; 21,11.46; Mc 6,15p; Lc 7,16. 39; 24,19: Jo 4,19; 9,17), tinha valor messiânico, pois o espírito de profecia, extinto desde Malaquias, devia reaparecer, segundo a opinião dominante entre os judeus, como sinal da era messiânica, seja na pessoa de Elias (17,10-11p), seja sob a forma de uma efusão geral do Espírito (At 2,17s.33).

De fato, no tempo de Jesus sugiram muitos (falsos) profetas (24,11.24p; etc.). Quanto a João Batista, esse foi realmente profeta (11,9p; 14,5; 21,26p; Lc 1,76), como precursor vindo com o espírito de Elias (11,10p.14; 17,12p). Em Jo 1,21, o Batista negou ser “o profeta” que Moisés havia predito (Dt 18,15). Este profeta, a fé cristã só reconheceu na pessoa de Jesus (At 3,22-26; Jo 6,14; 7,40). Contudo, por ter-se disseminado na Igreja primitiva o carisma da profecia, após o Pentecostes (At 2,11s; 11,27; 13,1; 15,32; 19,6; 21,9s; Rm 12,6; 1Cor 11,4s; 12,10.28s; 13,2.8-12; 14,6.22.24.29-32.37; Ef 2,20; 4,11; Ap 1,3; 10,11; 19,10; 22,6-10.18s), este título deixou, bem cedo, de ser aplicado a Jesus, cedendo o lugar a títulos mais específicos da cristologia.

Entre os profetas, Mt acrescenta o nome “Jeremias”, talvez pela perseguição que este profeta sofreu, ou pelo sonho em 2Mc 15,12-16 em que Jeremias dá uma espada a Judas Macabeus, num gesto semelhante Jesus dará a chave a Pedro.

“Cristo” não é um nome, é título, tradução grega da palavra hebraica meshiach = messias, quer dizer, “ungido”, consagrado por uma unção (em grego: crisma – o óleo; cristo – o ungido). Quem foi ungido no AT? Reis e sacerdotes com frequência, e raramente um profeta (1Rs 19,15s; cf. Is 61,1; Lc 4,18). Quanto aos membros do sacerdócio, não parece que a unção lhes tenha sido conferida antes da época persa. Os textos sacerdotais antigos a reservavam ao sumo sacerdote (Ex 29,7.29; Lv 4,3.5.16; 8,12). Depois foi estendida a todos os sacerdotes (Ex 28,41; 30,30; 40,15; Lv 7,36; 10,7; Nm 3,3).

Nos textos históricos antigos, a unção é reservada ao rei (1Sm 10, 1s; 16,1ss; 1Rs 1,39; 2Rs 9,6; 11,12). Esta unção confere ao rei um caráter sagrado: ele é o Ungido de Javé (1Sm 24,7; 26,9.11.23; 2Sm 1,14.16;19,22). Aplicado muitas vezes pelos Salmos a Davi e sua dinastia, este título tornou-se o título por excelência do Rei do futuro, o “messias”, do qual Davi era o protótipo, e o Novo Testamento o atribui ao “Cristo” Jesus.

A esperança do messias remonta 1000 anos antes de Jesus: Em 2Sm 7, Deus prometeu a Davi que sua dinastia e seu trono permanecesse para sempre. O oráculo ultrapassa o sucessor de Davi, Salomão, e deixa entrever um descendente privilegiado em que Deus se comprazerá. É o primeiro elo das profecias sobre o messias, “filho de Davi” (cf. Is 7,14; 9,5-6; 11,1-5; 42,1; Jr 23,5-6; Mq 4,14; Ag 2,23; Mt 1,1; Mc 10,47s; 11,10p).

Mas a maioria dos sucessores no trono de Davi não seguiu os caminhos de Deus (cf. 1-2Rs). Depois do exílio não havia mais um rei da descendência de Davi em Israel. O rei Herodes não era nem judeu (era idumeu, de um povo vizinho ao sul da Judéia) e foi instituído por imposição de César Augusto. Mas a esperança por um messias salvador, que libertasse o povo dos seus opressores igual a Davi, se mantinha viva (e existe até hoje entre os judeus).

“Messias” ou “Cristo” é designação judaica do salvador esperado. Mc compreende esse título no sentido novo que lhe confere sua aplicação a Jesus (Mc 9,41; 12,35-37). Em Mc, Jesus só aprova esse título Messias/Cristo durante seu processo (Mc 14,61s), antes mandava calar os espíritos impuros que o reconheciam como “Filho de Deus” (3,11). O segredo messiânico de Jesus só pode ser entendido a partir da cruz; o centurião no pé da cruz proclama “Este era o filho de Deus” (Mc 15,39). Em Mc, só um homem reconhece Jesus como “Cristo/Messias”: Pedro, mas ele é logo intimado ao silêncio (Mc 8,30.33), enquanto em Mt 16, é primeiro instituído “Papa”, pela inserção dos vv. 17-19, antes de Mt copiar (de Mc) a ordem de silêncio, o anúncio da paixão e a repreensão de Pedro (vv. 20-23).

À resposta de Pedro “Tu és o Messias (Cristo)” em Mc 8,29, Mt acrescenta “o Filho de Deus vivo”. No AT, “filho de Deus” aplica-se aos anjos, ao povo eleito, aos israelitas fiéis e ao messias (2Sm 7,14; Sl 2,7; 89,27), designa uma relação particular com Deus fundada em sua eleição e na missão. Os cristãos destacam, com suas primeiras confissões de fé, o caráter único e decisivo da pessoa de Jesus: ele é mais do que um profeta ou rei (cf. Mt 12,41s), ele mantém com Deus uma relação filial inigualável (“Abba” significa papai, cf. Mc 14,36) e a ele foi confiada uma missão impar na obra da salvação (cf. Rm 10,9; Hb 9,26-28; Jo 3,16-17).

Em Mt, porém, não é a primeira profissão de fé. Já em 14,33, depois da caminhada de Jesus sobre as águas (cf. Mc 6,45-52p), Mt substitui a incompreensão dos discípulos por uma profissão de fé: “se ajoelharam diante dele dizendo: ‘De fato, tu és o Filho de Deus’”. Mas aqui, no evangelho de hoje, Mt aproveita a oportunidade e apresenta um paralelismo das identificações: “o povo diz … vós dizeis, …; Pedro diz ‘tu és o Messias’, … Jesus diz ‘tu és Pedro’”.

Respondendo, Jesus lhe disse: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu (v. 17).

Simão, pela “carne e sangue” é “filho de Jonas”, mas declara que Jesus é o messias esperado, e Jesus ratifica, declarando que esta confissão procede de uma revelação do seu “Pai que está no céu” (cf. 11,25-27; Gl 1,16). A fé é resposta à revelação, à palavra de Deus. A fé (de Pedro e nossa também) é sempre dom de Deus, mas é tarefa também. Este dom da fé que recebemos no batismo (quando crianças) precisa ser aprofundado e vivido, praticado, celebrado, transmitido. A revelação a Pedro tem um sentido cuja profundidade Pedro mostraria, mais tarde, não ter aprendido ainda (vv. 22-23).

Por isso eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la (v. 18).

“Pedro” (cf. 10,2) é tradução grega do nome aramaico Cefas (Jo 1,42; 1Cor 1,12; 9,5; 15,5; Gl 1,18). Tal nome grego não era usado como nome próprio de pessoa na época. A mudança de nome pode ter ocorrido mais cedo (cf. Jo 1,42; Mc 3,16; Lc 5,8; 6,14).

A palavra grega ekklésia (Igreja) traduz o termo hebraico qahal que significa “assembleia” e é comum no AT para designar o povo eleito (cf. Dt 4,10; 23,2; 1Rs 8,22 etc.; At 7,38); lit. “chamada para fora”, uma voz chama os indivíduos para fora da casa para se reunirem em assembleia. Certos grupos judaicos, que se consideravam o “resto de Israel” (cf. Is 4,3) dos últimos tempos (ex. os essênios em Qumrã), aplicaram qahal ao seu próprio círculo. Jesus o transfere à comunidade messiânica, que ele irá construir selando uma nova aliança pelo derramamento de seu sangue (26,28; cf. 5,25). “O reino de Deus já está próximo” (4,17), por isso esta comunidade deve começar já aqui na terra por uma sociedade organizada (assembleia, igreja: At 5,11; 1Cor 1,2 etc.) cujo chefe é instituído por Jesus com estas palavras ao próprio Pedro.

Essa nova comunidade é simbolizada por um templo que Jesus “construirá”; ele é o dono da construção (“minha igreja”) e Pedro será a pedra fundamental (cf. Ef 4,20-22; Gl 2,47-9; 1Cor 10,10-17; 1Pd 2,4-8; Ap 21,14). Pedro terá um papel medianeiro: por sua fé, adesão e aderência a Cristo, participa da solidez da “rocha”, símbolo antigo de Deus (cf. Dt 32,4.15.18.30.31; Sl 19,14; 27,5 etc.) e da fé (cf. 7,24). A declaração de Jesus corresponde à função eminente que Pedro desempenhou no início da Igreja (4,18; 17,1; At 1,13.15; 3,1; 10,5; 15,7; Jo 6,67-69; 21,15-23; Gl 2,7).

A interpretação destas palavras e seu alcance diferem nas diferentes denominações. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1890) anota o seguinte: A tradição católica aduz este texto para fundamentar a doutrina segundo a qual os sucessores de Pedro herdaram o seu primado. A tradição ortodoxa opina que, em suas dioceses, todos os bispos que confessam a verdadeira fé integram-se na sucessão de Pedro e na dos demais apóstolos. Embora reconheçam a posição e a função privilegiada de Pedro nas origens da Igreja, os exegetas protestantes estimam que Jesus só tem em vista, aqui, a pessoa de Pedro.”

O primado do bispo de Roma (chamado “Papa”) era um primado de honra (por ser Roma a capital do império e o lugar do martírio de Pedro e Paulo); somente no segundo milênio desenvolveu-se o primado jurídico de chefe quase absoluto (“vigário de Cristo”) culminando no dogma na “infalibilidade” do papa (no Concilio Vaticano I em 1870), mas completado pela “colegialidade” dos bispos (o papa é o primeiro entre iguais) no Concílio Vaticano II (1962-1965). A permanência própria da Igreja durante 2000 anos, apesar de perseguições externas e crises internas, cismas etc., comprovam de certo modo a palavra de Jesus: ”O poder do inferno nunca poderá vencê-la”, lit. as portas do hades. Esta palavra grega, em hebraico sheol, designa a morada dos mortos (cf. Nm 16,33). As portas simbolizam seu poder (cf. Jó 38,17; Sb 16,13). O hades não conseguirá reter na morte os membros da comunidade messiânica de Jesus.

Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus” (v. 19).

Jesus promete a Pedro “as chaves do Reino dos Céus”, e com essas dá acesso ao reino (conforme as bem-aventuranças, cf. 5,3.10). Ele terá o poder de “ligar e desligar”, ou seja, proibir ou permitir, julgar, condenar ou perdoar, ensinar e interpretar, ratificado por Deus; diferente dos fariseus e doutores da lei que amarram fardos pesados (23,4) e fecharam o acesso ao reino de Deus (23,13). Enquanto somente Pedro fica com o símbolo da chave (cf. Is 22,22), a autoridade de ligar e desligar é dada também ao conjunto dos discípulos (18,18; Jo 20,23). O Reino de Deus está vinculado a uma Igreja cujos traços ainda não estão definidos, mas com o poder das chaves já não está desprovida de certa estrutura: depois das chaves, será a cátedra (= cadeira, para ensinar e presidir), daí a “catedral” e o magistério dos bispos e o do papa na Santa Sé (no Vaticano).

Jesus, então, ordenou aos discípulos que não dissessem a ninguém que ele era o Messias (v. 20).

Na terceira parte do evangelho de hoje, Mt segue fielmente a Mc 8,30 com o “segredo messiânico” e a incompreensão do primeiro discípulo (como já foi dito mais acima). Em Mc, Pedro é o único homem que reconhece Jesus como Messias, e junto com os discípulos é logo intimado ao silêncio (Mc 8,29-30). Jesus só aprova esse título Messias/Cristo durante seu processo (Mc 14,61-62). Esta imposição de silêncio é frequente em Mc (cf. Mc 1,34; 9,9; 1,34.45; 5,43; 7,36s, 9,9), só depois de sua morte será suspensa (Mc 9,9; 16,7; cf. Mt 10,27).

Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que devia ir à Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos mestres da Lei, e que devia ser morto e ressuscitar no terceiro dia (v. 21).

Depois da profissão da fé de Pedro, Jesus fala sobre o modo pelo qual deve cumprir sua missão de messias e anuncia sua paixão (vv. 21p; 17,12.22p; 20,17-19p; 26,2). Mt destaca a necessidade (devia) de ir à Jerusalém para sofrer lá (cf. Lc 24,26.44). Mt omite aqui o termo “Filho do Homem” (Mc 8,31); Jesus aqui é só o Filho obediente que cumprirá a profecia de Is 53 sobre o “Servo de Javé”, que devia morrer para salvar seu povo dos pecados (cf. 26,28p; 26,28). O quarto canto do Servo de Javé é o ápice de Deutero-Isaias e um texto profético sobre o sofrimento do messias/profeta (cf. Is 42,1; 61,1) e era usado muito no anúncio dos primeiros cristãos (citado em Mt 8,17; Lc 22,37; At 8,30-35; 1Pd 2,21-25; cf. Mt 26,28.63; 27,29-31.38s.60; Jo 1,29; 19,5 etc.) para identificar a paixão de Cristo (cf. Sl 22).

“Os anciãos, os sumos sacerdotes e os mestres da Lei” são os três grupos do Grande Sinédrio, colégio de 71 membros, que governava o povo judeu. Ele constava dos representantes da aristocracia leiga (os anciãos), das grandes famílias sacerdotais (os sumos sacerdotes, entre os quais se elegia o Sumo Sacerdote) e dos escribas ou intérpretes da lei (na maioria com tendência farisaica). O Sinédrio era presidido pelo Sumo Sacerdote em exercício, Caifás. Não diz aqui de que maneira Jesus será morto, mas um versículo próximo deixa claro que será na “cruz” (v. 24, evangelho de amanhã).

Mt e Lc trocam o “ressuscitar três dias depois” de Mc 8,31 pelo “ressuscitar no terceiro dia”, contando sexta-feira, sábado e domingo (o tríduo pascal da liturgia começa na quinta-feira santa e termina no domingo da Páscoa). O terceiro dia é tradicionalmente o dia da salvação (Os 6,2; Jn 2,1; Mt 12,40).

Então Pedro tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo, dizendo: “Deus não permita tal coisa, Senhor! Que isto nunca te aconteça!” Jesus, porém, voltou-se para Pedro, e disse: “Vai para longe, Satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus mas sim as coisas dos homens!” (vv. 22-23).

Enquanto Lc simplesmente cortou esta incompreensão de Pedro e as palavras duras de Jesus em Mc 8,32-33, Mt as transmite fielmente, mas as relativiza e atenua antes pelo elogio de Pedro e seu papel de pedra da Igreja em vv. 17-19. A reação de Pedro (cf. 2Sm 20,20; 23,17; 1Cr 11,19) ilustra bem a dificuldade de associar o título de Cristo às perspectivas da paixão e da morte. Opondo-se ao padecimento de Jesus, Pedro endossa o papel de “Satanás” (cf. Jó 1-2) que tenta desviar Jesus da obediência a Deus (4,1-11p). Ele abandona a sua posição de discípulo que deve seguir “atrás” de Jesus (v. 24; cf. 4,20.22; 8,19-22; 19,21.27-29). A reação de Jesus é duríssima, chama o primeiro papa de “satanás” (cf. após da última tentação no deserto (4,10).

Mt salienta que desta maneira Pedro se torna uma “pedra de tropeço” (lit. escândalo, cf. Is 8,14; ou seja, um motivo de pecado) em vez de uma “pedra fundamental” da Igreja, desta maneira não é mais movido pelo Pai do céu (v. 17), mas por seus instintos humanos (a amizade por Jesus e o medo de seguir). Esta ambivalência de Pedro se repetirá na sua tríplice negação em 26,33-35.69-75.

Na história da Igreja, os sucessores de Pedro, os 266 papas (incluindo Francisco), se mostraram ambíguos também. Nem todo papa foi santo, uns escandalizaram por sua vida mundana (p. ex. Alexandro VI que traçou a divisa entre os territórios português e espanhol nas Américas no tratado de Tordesilhas, ele viveu com concubina e filhos no Vaticano). Na polêmica depois da sua excomunhão, Lutero chamou o papa Leão de “besta-fera” (cf. Ap 13), palavrão que uns protestantes repetem até hoje. Devemos levar em conta que já Pedro foi chamado assim, no entanto, e se arrependeu e recebeu de Jesus o mandato de papa (primeiro dos apóstolos) novamente (cf. Jo 21). Na Igreja, somos todos justos e pecadores, também os papas (na maioria foram pessoas santas).

O site da CNBB comenta: O Evangelho de hoje pode sugerir duas perguntas para a nossa vida pessoal. A primeira é: em que fundamentamos o nosso conhecimento no que diz respeito à nossa fé? A segunda pergunta é: quais são as consequências da nossa fé para a nossa vida? Quanto à primeira pergunta, podemos fundamentar o nosso conhecimento sobre as coisas da fé a partir da Palavra e do Magistério da Igreja, que nos garantem a verdade, mas podemos fundamentar este conhecimento na opinião de muita gente que fala muita coisa a respeito de Deus sem entender nada de nada ou até mesmo termos uma fé sem fundamento nenhum. Quanto à segunda pergunta, podemos fazer da nossa fé o motor da nossa vida ou podemos ter apenas uma fé discursiva ou indiferente, que não representa nada para a nossa vida concreta.

Voltar