04 de Agosto de 2018, Sábado: Jeremias passou a ter proteção de Aicam, filho de Safã, para não cair nas mãos do povo e evitar ser morto (v. 24).

Leitura: Jr 26,11-16.24

Ouvimos a continuação da narrativa do sermão de Jeremias no templo (cf. 7,1-15) no ano de 609 a.C.; ao seu secretário Baruc se atribuem estas passagens biográficas (Jr 26-45). Firme na certeza da origem divina de sua missão (v. 15), Jeremias enfrenta as autoridades religiosas (cf. 1,18; 15,20), mas ao que parece, o rei e o chefe da guarda não estavam presentes durante o discurso.

Durante os doze anos de reforma do rei Josias (a partir do achado do núcleo do livro de Deuteronômio no templo, cf. 2Rs 22-23), Jeremias ficava calado (parecendo apoiar). O profeta levanta novamente a voz quando Joaquim começou reinar em 609 afirmando seu poder e estilo de vida de luxo e explorando o povo. À crítica ao templo se junta a crítica da injustiça social (cf. Jr 22,13-17).

Os egípcios não destruíram o templo quando passaram por aí em 609. Então os sacerdotes e profetas do templo criaram uma ideologia que via no templo uma proteção mágica, mas em Jr, o templo se tornou um “covil de ladrões”: “Roubar, matar, cometer adultério, jurar falso, queimar incenso a baal, correr atrás de deuses estrangeiros, que não conheceis, depois virdes e vos apresentardes diante de mim, neste templo, onde meu nome é invocado, e dizer: Estamos salvos,…” (7,9-11). Um redator acrescenta também os sacrifícios humanos, holocaustos de crianças no vale de Ben-Enom (7,30s; 19,4s); por tudo isso, o profeta anuncia a destruição da cidade.

Os sacerdotes e profetas dirigiram-se aos chefes e a todo o povo, dizendo: “Este homem foi julgado réu de morte, porque profetizou contra esta cidade, como ouvistes com vossos ouvidos” (v. 11).

Os personagens da cena se repartem em três grupos: sacerdotes, profetas (institucionais), profissionais (chefes). Vemos o povo volúvel, incitado primeiro pelos sacerdotes, seguindo depois as autoridades civis (chefes); vemos estas agir com sensatez e justiça. No meio, Jeremias, desamparado, sem outro poder a não ser o da palavra.

Abre-se um processo formal, com Jeremias como acusado, sacerdotes e profetas como acusadores, o povo como espécie de jurado. A acusação passa por alto o templo; ou o inclui tacitamente? O povo é chamado a testemunhar a veracidade da acusação.

Disse Jeremias aos dignitários e a todo o povo: “O Senhor incumbiu-me de profetizar para esta casa e para esta cidade através de todas as palavras que ouvistes. Agora, portanto, tratai de emendar a vossa vida e as obras, ouvi a voz do Senhor, vosso Deus, que ele voltará atrás da decisão que tomou contra vós. Eu estou aqui, em vossas mãos, fazei de mim o que vos parecer conveniente e justo, mas ficai sabendo que, se me derdes a morte, tereis derramado sangue inocente contra vós mesmos e contra esta cidade e seus habitantes, pois em verdade o Senhor enviou-me a vós para falar tudo isso a vossos ouvidos” (vv. 12-15).

A Bíblia do Peregrino (p.1913) comenta: O discurso de Jeremias é formulado com admirável concisão. No começo e no fim o argumento supremo: “o Senhor me enviou”. Como o prova? – Com o testemunho. Em posição simétrica, duas frases condicionais como alternativa. Se se converterem, o Senhor não cumprirá a ameaça (o discurso precedente fica particularizado e reforçado). Se o condenarem, incorrerão em novo crime, que não melhorará a situação, pois todos serão réus solidariamente. Tal perspectiva assusta.

No centro a frase de Jeremias, toda serenidade e mansidão. Aquele que foi enviado com autoridade sobre reis e povos está aqui indefeso, mas seguro. Na sua falta de poder está seu poder gigantesco, já que no tratamento que lhe derem, os outros decidirão a sua sorte. Paradoxal “praça-forte” de domínio próprio inexpugnável (cf. Pr 16,32).

“Se me derdes a morte, tereis derramado sangue inocente contra vós mesmos”; cf. a auto-maldição em Mt 27,24-25: “O seu sangue caia sobre nós e nossos filhos!”

Os chefes e o povo em geral disseram aos sacerdotes e profetas: “Este homem não merece ser condenado à morte; ele falou-nos em nome do Senhor, nosso Deus” (v. 16).

As palavras do profeta se impõem com estranha força de convicção. Sacerdotes e profetas ficam entre os juízes e o povo. O povo oscila na sua opinião.

Jeremias passou a ter proteção de Aicam, filho de Safã, para não cair nas mãos do povo e evitar ser morto (v. 24).

Jeremias só conseguiu profetizar durante 45 anos, porque encontrou sempre pessoas que o protegiam nos conflitos com o rei e seus colaboradores. A família de Safã, que sustentara a reforma de Josias (2Rs 22,8s), foi sempre amiga de Jeremias. Safã era “secretario” do rei reformador Josias e leu prontamente para o ele o “livro da lei” (o núcleo do Deuteronômio) descoberto no Templo em 622, e que foi, na ocasião, enviado, com o filho Aicam, para consultar a profetisa Hulda (2Rs 22,8-14). Aicam pertence ao partido favorável à vassalagem à Babilônia. Depois de libertado pelos babilônios que iniciaram a segunda deportação em julho de 587, Jeremias uniu-se ao filho de Aicam e neto de Safã, Godolias, governador nomeado pela Babilônia e encontrou proteção (40,5-16; cf. 39,14). Outro filho de Safã, Elasa, leva, cerca de 594, uma carta aos primeiros exilados de 597 (29,3). Outro neto de Shafan, Miquéias, em 605, relata aos ministros “reunidos em sessão” o que ele lembra da leitura feita por Baruc dos oráculos de Jeremias (36,11-13).

 

Evangelho: Mt 14,1-12

Este relato do martírio de João Batista que ouvimos hoje, Mt copiou de Mc 6,17-29 e o resumiu conforme seu costume, fazendo da morte do Batista um tipo de destino dos antigos profetas e do próprio Jesus.

Naquele tempo, a fama de Jesus chegou aos ouvidos do governador Herodes (v. 1).

O alcance da mensagem de Jesus se ampliou, até Herodes ouviu falar de Jesus. Não é o Herodes Magno (Grande) que perseguiu o menino Jesus (Mt 2), mas um dos seus filhos, o Herodes Antipas, o “governador” (lit. “tetrarca”, porque só reinava sobre um terço da área governada por seu pai) da Galileia e da Pereia (Transjordânia) entre 4 a.C. até 39 d.C.

Ele disse a seus servidores: “É João Batista, que ressuscitou dos mortos; e, por isso, os poderes miraculosos atuam nele” (v. 2).

Herodes não entende quem é Jesus, como muitos outros, que o confundem com João Batista ou Elias, Jeremias ou outro profeta (cf. 16,14p). João Batista e Jesus tinham quase a mesma idade e eram parentes (segundo Lc 1,36). João Batista deixou um impacto de modo que Jesus parecesse uma cópia dele (seguidor, “ressuscitado”), e não João como precursor de Jesus. Herodes e o povo não levam em conta as diferenças entre Jesus e João relatadas no quarto evangelho (João não realizou milagres e seu batismo não está ligado ao Espírito; o próprio Jesus não batizou, cf. Jo 1,19-36; 3,22-30; 4,1-2). Herodes achava que João ressuscitou em Jesus; somente agora o leitor de Mt sabe que João tinha morrido, mas não muito tempo atrás (cf. o final de v. 12, os discípulos de João “foram contar a Jesus o que tinha acontecido”; em 11,2s, da prisão, João enviou uma pergunta a Jesus através deles). As circunstâncias da morte do Batista são descritas em seguida em técnica retrospectiva.

De fato, Herodes tinha mandado prender João, amarrá-lo e colocá-lo na prisão, por causa de Herodíades, a mulher de seu irmão Filipe. Pois João tinha dito a Herodes: “Não te é permitido tê-la como esposa” (vv. 3-4).

De certo modo, é a continuação de 11,2-29, quando João Batista já estava na prisão (da fonte Q, cf. Lc 7,18-28). Já em 4,12, Jesus tinha ouvido da prisão de João e voltou à Galileia onde começou a pregar (4,17; cf. Mc 1,14s). O evangelista imagina a atividade pública de Jesus durante a prisão do Batista até este momento.

O motivo da prisão do Batista nos evangelhos é a crítica de João a respeito do casamento ilegítimo do governador com a esposa do seu irmão, o tetrarca Filipe que governava a Itureia e a Traconítide (cf. Lc 3,1). Para o historiador contemporâneo, Josefo Flávio, o motivo era político. A relação ilegítima de Herodes (Lv 18,16; 20,21), a admoestação franca de João (como a do profeta Natã o rei Davi, cf. 2Sm 12), o rancor passional de Herodíades (v. 8; cf. Mc 6,19); isso lembra o drama do fraco rei de Israel Acab (873-853 a.C.), cuja esposa Jezabel o incitava ao crime; então o profeta Elias que denunciou este crime acabou perseguido e ameaçado de morte (Elias é modelo do Batista, cf. 1Rs 21; 2Rs 1,8; Mt 3,4; 11,14; 17,11-13). No seu relato mais resumido que Mc, Mt diminui a intriga de Herodíades na morte de João e reforça o papel negativo de Herodes. Os leitores já sabem da perseguição de Herodes Pai (Mt 2) e não esperam nada de bom do filho dele.

Herodes queria matar João, mas tinha medo do povo, que o considerava como profeta (v. 5).

O medo diante da multidão, que Herodes sente, encontra-se depois nos dirigentes judaicos em Jerusalém (21,26.46). Nisso, Herodes Pai e Filho estão em sintonia com o povo judeu em ”toda Jerusalém” (cf. 2,3s).

Por ocasião do aniversário de Herodes, a filha de Herodíades dançou diante de todos, e agradou tanto a Herodes que ele prometeu, com juramento, dar a ela tudo o que pedisse. Instigada pela mãe, ela disse: “Dá-me aqui, num prato, a cabeça de João Batista” (vv. 6-8). 

A morte de João acontece durante um banquete de poderosos. Assim, o profeta que pregava o início da transformação radical é morto por aqueles que se sentem incomodados com essa transformação. Herodes celebra o banquete da morte (de João) com os grandes, mas Jesus celebra o banquete da vida com os pobres (a multiplicação dos pães, evangelho de segunda-feira próxima, 14,13-21 seguindo o mesmo contexto de Mc 6,30-44).

O aniversário do rei (Mt chama o governador/tetrarca de “rei” em v. 9, como Mc 6,14.22.26s) é ocasião de fazer benefícios e conceder perdão. A princesa Salomé (cujo nome não consta nos evangelhos, mas em outros registros) faz o papel de bailarina (cf. Ct 7,1-7) num solo de exibição oferecido a um público masculino. O rei, numa demonstração de esplendidez, promete dar-lhe quanto pedir, e ainda jura. Herodíades aproveita a ocasião propícia. O inesperado pedido da princesa coloca o rei numa posição comprometida: dividido entre estima/temor pelo Batista (em Mc 6,20.26) e o juramento pronunciado diante dos convidados.

O pedido invalidaria sem mais o juramento. Um juramento não pode justificar um crime de assassinato. Os leitores de Mt já sabem qual é a vontade de Deus a respeito do juramento (5,33-37). Jurando assim, Herodes abusa do nome divino, seu juramento leva ao crime.

O rei ficou triste, mas, por causa do juramento diante dos convidados, ordenou que atendessem o pedido dela. E mandou cortar a cabeça de João, no cárcere. Depois a cabeça foi trazida num prato, entregue à moça e esta a levou para a sua mãe (vv. 9-11).

Mas o rei cede à sensualidade e aos compromissos de corte. O banquete tem um final macabro, “a cabeça foi levada num prato, foi entregue à moça, e esta a levou para a sua mãe.” Uma cena semelhante, embora de signo contrário, é Judite levando e mostrando a cabeça de Holofernes (Jt 13). Uma tradição judaica sobre Ester fala da cabeça da rainha Vasti (cf. Est 1,9-2,1) levada numa bandeja à sala. A moça levando a bandeja com a cabeça do Batista tem acendido a fantasia de escritores e artistas e convertido João e Salomé em figuras arquetípicas. Mas João está prefigurando antes de tudo a morte de Jesus e também sua sepultura.

Os discípulos de João foram buscar o corpo e o enterraram. Depois foram contar tudo a Jesus (v. 12).

Os discípulos de João já foram mencionados em 9,14 e 11,4. Para Mt, o Batista e Jesus pertencem juntos (cf. 3,14s): anunciam a mesma mensagem do reino (3,2; 4,17), têm os mesmos adversários (Herodes, fariseus e saduceus; cf. 3,7) e sofrem o mesmo destino, a morte violenta de profeta perseguido por Israel (motivo tradicional no AT usado por Mt em 5,12; 17,12; 21,33-41; 22,3-6; 23,29-36). Por isso, é natural para Mt, que os discípulos órfãos de João fossem a Jesus (cf. Jo 1,35-37). “Depois foram contar tudo a Jesus” (v. 12b), Mt acrescenta este detalhe que Mc não mencionou.

O quadro denuncia sem afetação a imoralidade e corrupção dos dirigentes. A cabeça de João Batista não é um prato tão raro como parece, como se pode ver no destino dos profetas de ontem e hoje e do próprio Jesus. Em jantares e festas, como aquela, no limite da moralidade muitas mortes acontecem. Há mais assassinatos no final da semana do que nos dias de trabalho.

O site da CNBB comenta: A vida de João Batista foi sempre a história da ação divina na história da humanidade, mas principalmente a oposição que existe entre os valores do Reino de Deus e os valores que são assumidos e vividos pelas pessoas. Esta oposição aparece desde o início da vida de João, quando Zacarias, no seu cântico, afirma que ele veio para iluminar os que jazem nas trevas. Mas assim como acontece com Jesus, acontece também com João: os que são das trevas não o receberam, de modo que a sua morte foi consequência desta contradição. Mas até a sua morte se torna contradição, porque ela acaba por se tornar um testemunho ainda maior da verdadeira vida, que é destinada aos filhos da luz.

Voltar