06 janeiro de 2017 – Sexta-feira

 

Leitura: 1Jo 5,5-13

Chegamos ao final da primeira carta de João. Mais tarde se acrescentou ainda um complemento (anexo vv. 14-21; leitura de amanhã) e as duas breves caras de 2Jo e 3Jo.

Depois da linha do crer, amar, cumprir (vv. 1-3) e da linha do amor (ao Pai, ao Filho de Deus, aos filhos de Deus, vv. 1-2), lemos agora o processo: o mundo se vence com fé (vv. 4-5), a fé se apóia no testemunho (vv. 6-11), o testemunho promete vida (vv. 11-13).

Quem é o vencedor do mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus? (v. 5).

Já em v. 4, a fé foi declarada “a vitória que venceu o mundo” (cf. Jo 16,33). A fé é confiança e adesão a Deus que é maior do que mundo e maior do que o Maligno no mundo (cf. 2,14; 4,4; Mt 4,1-11; 12,31; 14,30; 16,33; 2Tm 3,12; Rm 8,37; Ap 2,7-11.14.26; 3,5.12.21; 12,11; 21,7).

Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo. (Não veio somente com a água, mas com a água e o sangue). E o Espírito é que dá testemunho, porque o Espírito é a Verdade. Assim, são três que dão testemunho: o Espírito, a água e o sangue; e os três são unânimes (vv. 6-8).

Qual fé vence o mundo (cf. 4,1: “não acreditais em qualquer espírito, mas examinai”)? O autor da carta especifica a fé certa recordando o batismo de Jesus e sua morte na cruz (do seu lado aberto pela lança do soldado “saiu sangue e água”, Jo 19,34), escrevendo contra uma heresia (doutrina errada), que dissociava um Cristo glorioso e espiritual (que se revelou na água do rio Jordão e no Espírito) do homem Jesus, histórico, nascido na carne e sofrido no sangue da cruz (cf. 4,1-6; 2,18-22). Esta heresia chegou a afirmar que Cristo não sofreu, mas só estava parecendo para as pessoas (hoje, os muçulmanos acreditam assim, talvez seu profeta Maomé tenha conhecido o cristianismo através desta seita herética).

A fé que vence o mundo (a realidade sem Deus; os falsos profetas e os anticristos, cf. 4,1-6) não é uma espiritualidade desencarnada. É a fé em Deus que se encarnou em Jesus Cristo (Jo 1,14; cf. 1Cor 12,3). No batismo de Jesus, Deus declarou este homem “Filho de Deus” (Jo 1,32-34; cf. Mc 1,11p). O Espírito dá testemunho disso (em forma de pomba na hora do batismo, mas durante toda atividade de Jesus, porque “permaneceu” sobre ele (cf. Jo 1,33). Na cruz, Jesus entregou o seu Espírito, morreu de fato (não só pela aparência, mas confirmado pela lança do soldado) e do seu lado saiu “sangue e água” (Jo 19,30.34). Na sua ressurreição, mostrou suas chagas e deu o Espírito Santo aos apóstolos (evangelho de hoje), este mesmo Espírito que Jesus prometeu na última ceia chamando-o paráclito (defensor, advogado, consolador) ou “Espírito da Verdade”, porque dará continuidade com sua presença e obra (Jo 14,16s.26; 15,26; 16,7-15). “O Espirito é verdade”, como também o Pai é a verdade que Jesus releva e testemunha (Jo 8,32; 18,37). O próprio Jesus também é a verdade (Jo14,6; cf. 4,23), enquanto Pilatos (representante do mundo) não tem nem ideia da verdade (Jo 18,38). A verdade é divina e dá vida, a mentira é diabólica e tira a vida (cf. 4,1-6; Jo 8,44; Gn 3,1-5).

Não só o Espírito, o Pai também “dá testemunho” em favor de Jesus (vv. 9-10; Jo 5,32.37).  Enquanto o v. 6 fala do passado, o v. 7 apresenta um testemunho permanente na vida da igreja: o batismo (água) e a eucaristia (sangue), sobre ambos o Espírito é invocado na epiklese (oração de invocação) do sacramento. A Bíblia latina (Vulgata) a partir do século IV acrescenta entre os v. 7 e v. 8 o seguinte: “Três são os que dão testemunho no céu, o Pai, a Palavra e o Espírito, e os três estão de acordo;” certamente um reflexo do dogma da Trindade debatido neste século. As três testemunhas (segundo o princípio de Dt 19,15; Nm 35,30) dão um único testemunho, o de que Deus nos revela sua vida divina e a comunica (v. 11), na palavra e nos sacramentos.

Se aceitamos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é maior. Este é o testemunho de Deus, pois ele deu testemunho a respeito de seu Filho. Aquele que crê no Filho de Deus tem este testemunho dentro de si. Aquele que não crê em Deus faz dele um mentiroso, porque não crê no testemunho que Deus deu a respeito de seu Filho. E o testemunho é este: Deus nos deu a vida eterna, e esta vida está em seu Filho. Quem tem o Filho, tem a vida; quem não tem o Filho, não tem a vida (vv. 9-12).

Cabe ao homem aceitar testemunho tal solene e fidedigno: o testemunho de Deus Pai (cf. Jo 5,32.36; 8,14-18; 10,37) a favor de seu Filho é também em nosso favor, porque afirma que no Filho temos a “vida eterna” (cf. 1,2; 2,25; 3,14s; 5,11.13.20; Jo 6,40.47.54; 17,2s; cf. 1Jo 2,17).

Eu vos escrevo estas coisas a vós que acreditastes no nome do Filho de Deus, para que saibais que possuís a vida eterna (v. 13).

O v. 13 recapitula o motivo fundamental da carta: restituir aos cristãos, perturbados pelos hereges, a plena consciência das riquezas da sua fé. Os. vv. 11-13 se parecem com o primeiro final do evangelho (Jo 20,31; o cap. 21 é acréscimo). De fato, a carta terminou aqui, antes de se ter acrescentado outro final (vv. 14-21; leitura de amanhã).

 

Evangelho: Mc 1,7-11

O evangelho de hoje nos apresenta o batismo de Jesus por João Batista. Mc é o primeiro evangelho que foi escrito (por volta de 70 d.C.). É uma obra anônima (como todos os quatro evangelhos). A tradição a atribuiu a João Marcos (cf. At 12,12.25; 13,5.13; 15,37-39; Cl 4,10; Fm 24; 1Pd 5,13), companheiro de Paulo e de Pedro. Mc inicia seu evangelho sem narrar a infância de Jesus, mas com seu batismo já como adulto. Mc entrelaça a história de João Batista e de Jesus: João é apresentado pela Palavra de Deus (Ml 3,1; Is 40,3) como precursor do messias (cf. vv. 2-3), depois é narrado sua atividade e pregação. Também Jesus é apresentado pela Palavra de Deus (voz do céu em v. 11), em seguida Mc narra sua atividade e pregação do seu evangelho (esta começa só depois da prisão de João Batista, v. 14).

Em Mc, João é descrito na sua atividade de pregador austero no deserto e praticando um batismo de conversão para o perdão dos pecados (vv. 4-6), mas Mc não nos transmite o conteúdo da sua pregação sobre penitência e juízo próximo (cf. Mt 3,7-10.12p; Lc 3,10-14), apenas as palavras que apontam para o “mais forte” que “virá depois”.

A Bíblia do Peregrino (p. 2394) comenta:

A boa notícia foi anunciada pelos profetas e agora João Batista a prepara. Marcos o identificava como o anjo prometido no êxodo: “Enviarei na frente meu anjo” (Ex 33,2), como o arauto de Is 40,3 (definido, segundo o grego, para destacar o deserto) e como o Elias que retorna (Ml 3,1). No vestuário e na austeridade, imita Elias (2Rs 1,8; Zc 13,4).

Prega no “deserto”, lugar do caminho de volta para Deus: “escuta-se nas dunas pranto suplicante dos israelitas… Aqui estamos, viemos a ti” (Jr 3,21-22; cf. Os 2,16 etc.). Lá acorrem, atraídos por sua fama, os que na Judéia e em Jerusalém não acham resposta, os que não se satisfazem com as liturgias penitenciais e os ritos de expiação do templo. Prega um “batismo de arrependimento” (metánoia), que se expressa na confissão pública dos pecados: “propus confessar meus delitos ao Senhor” (Sl 32,5), para obter o perdão de Deus: “e tu perdoastes minha culpa e meu pecado” (idem), e na imersão na água purificadora (cf. Ez 36,25). O batismo é o rito que representa e sela a reconciliação.

Dessa maneira, os judeus refazem a viagem dos israelitas pelo deserto e a passagem do Jordão (Js 3-4); não só como recordação, mas inaugurando uma era. Com isso se preparam, não para entrar na terra prometida, mas para receber o Senhor que chega (cf. Js 5,14; Sl 96, e 98). Esse Senhor (Kyrios, Yhwh) é agora o Messias.

(Naquele tempo, João Batista) pregava, dizendo: “Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias. Eu vos batizei com água, mas ele vos batizará com o Espírito Santo” (vv. 7-8).

Essa é a “proclamação” da voz no deserto (v. 3) ou pregação do arauto que Mc tem em comum com a fonte Q (uma coleção desaparecida de palavras que se deixa reconstruir a partir de Mt e Lc que a usavam; cf. Mt 3,11; Lc 3,16): a chegada do outro com mais autoridade.

A frase das sandálias com o gesto de agachar-se é provável alusão ao esposo da lei do levirato (Dt 25,1-5; Rt 4), como que sugerindo que ele não vai suplantar o Messias. Os quatro evangelistas e At 13,25 mencionam esta frase: o símbolo se esclarece na versão do evangelho de João (Jo 1,27.30; 3,28s). Uma longa tradição transmite essa interpretação teológica das sandálias, ao passo que outra tradição, também antiga, reduz o tema a uma expressão ética de humildade.

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 1923) comenta:

Conforme Mc, toda a pregação de João se refere Àquele que “vem depois” dele, ou em seu seguimento, lit. “atrás dele”). A expressão, que denota a dignidade, como num cortejo (cf. 1,17.20; 8,33.34), ressalta o contraste entre João e Jesus: aquele que vem depois é na realidade “mais forte”. A força, atributo do Messias (cf. Is 11,2; 49,25; 53,12; Sl de Salomão 17,24), manifestar-se-á na luta de Jesus contra Satanás (3,27 …). E aquele que vem na frente não passa, na realidade de um criado, calçar ou desatar as sandálias de alguém era uma tarefa própria do escravo (cf. Jo 13,4-17) … Esta palavra [v. 8] evidencia a distância entre a atividade de João caracterizada pelo batismo de água, e a do Messias, definida como um batismo no Espírito Santo. Mc não menciona o fogo (cf. Mt 3,11…). De preferência a Pentecostes ou ao batismo cristão (At 11,16; 19,1-6), o que parece ser designado aqui como purificação e santificação escatológica pelo Espírito Santo é a obra global da salvação inaugurada por Jesus (a seita de Qumran esperava-a para o fim dos tempos. Regra 3,6-8).

A água é elemento fundamental e símbolo da vida. Todas as religiões têm seus ritos de ablução ou purificação (cf. o banho no rio Ganges que é uma deusa na Índia). O batismo de João era algo novo e único, que rendeu a João o apelido “Batista”. Não era igual ao batismo de prosélitos (pagãos que se converteram ao judaísmo e se purificaram para poderem entrar em contato com os judeus) nem aos banhos cotidianos da seita dos essênios que se retiraram ao deserto (comunidade de Qumran) para levar uma vida pura longe da corrupção do templo na capital de Jerusalém.

João é mais do que uma testemunha qualificada, mas o profeta de conversão que confere o batismo. Talvez João não tenha pensado no messias, mas antes no Senhor (Javé) “que virá” em breve para fazer o julgamento (com fogo) e no qual não basta apenas pertencer ao povo eleito, mas precisa de conversão pessoal para se salvar. Mas não é a água (o rito do batismo) que salva. O batismo de João (mergulhar no rio Jordão) seria mais uma confirmação: o selo ao perdão que a pessoa recebe por sua conversão interior e confissão pública. Como sinal de conversão, obviamente, João não ministrava o batismo a crianças.

O batismo de João era um pedido de perdão (quem perdoa é o juiz, ou seja, Deus; cf. 2,5-7), só “com água”, mas sem Espírito (cf. At 11,15s; 19,1-6) e sem poder (de milagres; cf. At 10,37). O batismo de Jesus, ou seja, o batismo cristão significa mais: a filiação divina (cf. v. 11) através do “Espírito” (não da carne, cf. Jo 1,12s) que, portanto, confere a herança da vida eterna (Rm 6,4; 8,15-17; Gl 4,6s). Com este novo significado, o batismo começou ser ministrado também a crianças substituindo a circuncisão como sinal de pertença ao povo eleito (depois do Concílio apostólico em Jerusalém que desobrigou da circuncisão em At 15, em seguida Paulo batiza famílias inteiras em At 16).

A Bíblia do Peregrino (p. 2394) comenta: “O que vem” ou há de vir, o vindouro (equivale ao nosso futuro) podia ser título do Messias. É ele que traz o autêntico batismo: não de água que limpa, mas do Espírito Santo que vivifica e consagra; não água de rio, mais vento ou “alento” que desce do céu e transforma o deserto em jardim (cf. Is 32,15).

Naqueles dias, Jesus veio de Nazaré da Galileia, e foi batizado por João no rio Jordão (v. 9).

Pela narração, a entrada em cena de Jesus já o faz aparecer como sendo aquele que João anunciava. Veio do norte, de outra região, não de Jerusalém nem da Judeia, de onde as multidões se aproximavam de João (v. 5). O título do Evangelho já apresentou: “Jesus Cristo (messias), Filho de Deus” (v. 1). Agora ele é caracterizado por sua proveniência insignificativa: “de Nazaré”, um pequeno povoado “da Galileia”; um judeu do interior de uma região desprezada pela elite da capital (cf. Jo 1,46; Mt 4,15: “Galileia, terra dos pagãos”). Nazaré reaparece em 6,1-6p (cf. Lc 1,26; Mt 2,23; no título da cruz apenas em Jo 19,19: “Nazareno”; como nome dado aos cristãos, cf. At 24,5). Para Mc, Galileia é a terra onde será acolhida a mensagem de Jesus, ao contrário da capital Jerusalém (cf. 16,7).

Jesus recebe de João o batismo, com outro sentido: seu “submergir” (batizar era mergulhar, descer nas águas) e “subir” (v. 10) pode apontar em imagem para sua morte e ressurreição (cf. Rm 6,4; Fl 2,5-11; Jo 3,13 etc.). O interesse volta-se menos para o seu batismo do que para a revelação celeste que se lhe segue (vv. 10-11).

E logo, ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito, como pomba, descer sobre ele (v. 10).

Mc não fala de testemunha alguma, exceto Jesus: Só ele “viu o céu se abrindo” (lit. “os céus se rasgando” como um tecido, cf. a cortina do santuário em 15,38). É o que pediam os israelitas em Is 63,19; sinal de que Deus intervém para realizar suas promessas, aqui pelo enviado do Espírito Santo (cf. Testamento de Levi 18,6 e de Judá 24,2). Ao descer sobre Jesus, o Espírito o designa como sendo o salvador prometido, o ungido (messias-rei; cf. Is 11,2; 42,1; 61,1; 63,11), como o Espirito desceu durante a unção de Saul e Davi para capacitá-lo para o governo.

A Bíblia de Jerusalém (p. 1842) comenta: O Espírito que pairava sobre as águas da primeira criação (Gn 1,2) aparece aqui no prelúdio da nova criação. Por um lado, ele unge Jesus para a sua missão messiânica (At 10,38), que de ora em diante há de dirigir (Mt 4,1p; Lc 4,14.18; 10,21; Mt 12,18.28); por outro lado, como o entenderam os Padres da Igreja, santifica a água e prepara o batismo cristão (cf. At 1,5…).

“Espírito” é uma palavra feminina hebraico (ruah) e neutra em grego (pneuma) significando também “vento, ar” (cf. Gn 1,2; At 2,2). Como o Espirito é invisível igual ao ar, um animal que vive nos ares, um pássaro, é símbolo propício. Mas porque uma pomba e não uma águia (cf. Dt 32,11) ou um falcão (o símbolo do deus Horus no Egito que protegeu o faraó) ou uma coruja (símbolo da deusa virgem da sabedoria, Atena para os gregos, Minerva para os romanos)?

A pomba é símbolo da paz e do amor (cf. Ct 1,15; 2,14; 4,1; 5,2; 6,9; já na mitologia do Antigo Oriente acompanhava a deusa do amor, Ishtar), também de simplicidade (Os 7,16; Mt 10,16; Lc 2,24). Ela traz um ramo de oliveira depois do dilúvio em Gn 8,8, símbolo da nova vida e criação reconciliada. Corresponde a atitude do servo de Deus em Is 42,1-4 que não usa de violência como se esperava de um messias guerreiro como Davi para libertar seu povo da opressão estrangeira. Mc escreve no meio (ou fim) da Guerra Judaica (66-70 d.C.) contra os romanos, da qual os cristãos não participavam.

E do céu veio uma voz: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu bem-querer” (v. 11).

E se escuta uma voz celeste, de Deus, que pronuncia seu testemunho definitivo sobre Jesus. Essa expressão designa, antes de tudo, Jesus como o verdadeiro Servo anunciado por Isaías (cf. 1ª leitura). Entretanto, o termo “Filho”, que acaba por substituir o termo “Servo” (graças ao duplo sentido da palavra grega pãis na tradução grega de Is 42,1), salienta o caráter messiânico e propriamente filial da sua relação com o Pai. É o Filho querido e “bem-amado” (cf. 12,6; talvez recorde Gn 22,2.12.16), objeto de sua predileção, lit. “em ti eu pus o meu bem-querer” (cf. Is 42,1).

No Antigo Israel, o rei foi ungido na hora da sua posse (quando subiu ao trono) pelo sumo sacerdote (Salomão por Sadoc em 1Rs 1,39; Saul e Davi por Samuel em 1Sm 10,1; 16,13) e declarado filho (adotivo) de Deus: “Tu és meu filho, hoje te gerei” (Sl 2,7; cf. 2Sm 7,14), como no Egito o rei (faraó) foi proclamado Filho do Deus solar (Horus-Re).

No batismo, Jesus recebeu a declaração (voz do Pai) e a unção (Espírito) de ser o messias. Como Mc não relata a concepção virginal de Maria (6,3 pode ser uma alusão: “filho de Maria”, não de José), uns acharam que Jesus se tornou Filho de Deus só a partir do batismo e por adoção (a seita dos basilidianos; Paulo também não se refere ao filho de virgem, cf. Rm 1,3s; Gl 4,4). Mas aqui se trata de uma posse alternativa do rei-messias que se dá no deserto em vez do templo corrupto de Jerusalém, e por um profeta (como Elias, cf. Ml 3,23s), não pelo sumo sacerdote (cf. a unção de Davi por Samuel em 1Sm 16,12s). Daqui em diante, Jesus vai atuar como messias e vencer o mal (Satanás, os demônios, a morte).

O título “Filho de Deus” (1,1) fica definido e exaltado. O testemunho do Pai é pronunciado desde a primeira aparição de Jesus e deve iluminar quanto segue. Tal é a riqueza da “boa notícia” (vv. 1.15). Na transfiguração, a voz falará de novo, desta vez aos três apóstolos: “Este é meu filho amado, escutai-o” (9,2). Escuta-se seu eco na voz do centurião pagão na hora da cruz (depois de “se rasgar” a cortina do templo): “Verdadeiramente, este era o filho de Deus” (15,39). Forma quase uma inclusão de todo o evangelho.

Em Mc, só Jesus sabe o segredo de ser o messias (Filho de Deus). Quando os demônios ou pessoas curadas querem divulgar sua identidade, Jesus manda calar, porque só na cruz se revelará o verdadeiro significado do seu ser messiânico: não salvar por guerra ou violência, mas vencer o pecado e a morte na cruz (cf. 8,29-34).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1225) comenta: No momento do batismo, revela-se a identidade de Jesus: ele é o Filho de Deus. Mas o entendimento adequado de quem ele é depende da compreensão do sentido de seu agir. O Servo de Javé (Is 42,1-4) é o modelo, com sua ação discreta e solidária.

Obs.: A tradição cristã começou batizar crianças por causa desta diferença entre o batismo de João e o batismo de Jesus. Já os apóstolos batizaram famílias inteiras e não só no rio (cf. At 10,24.48; 16,15.31-33). O batismo de crianças substituiu a circuncisão dos meninos como sinal de pertença do povo eleito (cf. Gn 17; At 15). O batismo cristão continua sendo um sinal de conversão dos pecados; crianças pequenas, porém, não são capazes de se converter (não sabem nem o certo nem o errado), não têm pecados individuais, mas recebem o perdão do pecado original (cf. Rm 5,12-21). Aliás, Jesus sendo batizado por João já é um exemplo de que o batismo pode ser ministrado a pessoas sem pecado (Mt 3,14s; cf. a acolhida das crianças em Mc 10,13-16). No batismo cristão, o batizado recebe ainda o Espírito que nos faz filhos e filhas de Deus e herdeiros do Reino (da vida eterna, cf. Rm 6,4-11; 8,14-17; 1Cor 12,13; Gl 3,26-29; 4,6s). A ordem de Jesus de batizar fez o batismo um sacramento considerado necessário para salvação para quem ouvir a mensagem (cf. Mt 28,19; Mc 16,16; Jo 3,5).

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