07 de Junho de 2021, Segunda-feira: Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia (v. 7).

10ª semana 2ª feira – Ano Ímpar

Leitura: 2Cor 1,1-7

Ouvimos nas próximas duas semanas trechos da segunda Carta aos Coríntios. Ela foi escrita por volta de 55 d.C. na Macedônia (capital Tessalônica) como o próprio Paulo afirma (7,5; 8,1). Por causa de mudanças de tom e estilo dentro desta carta, os peritos de hoje a consideram uma coleção de várias cartas (cf. 2,3.4.9; 7,8.12).

Paulo, apóstolo de Jesus Cristo por vontade de Deus e o irmão Timóteo, à Igreja de Deus que está em Corinto e a todos os santos que se encontram em toda a Acaia: para vós, graça e paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo (vv. 1-2).

É saudação costumeira que inclui os remetentes com o nome e título, os destinatários, a saudação. Ao “apóstolo” se associa um “irmão”, o mais fiel colaborador de Paulo, Timóteo (v. 1; cf. v. 19; At 16,1; 17,14s; 19,22; 20,4; 1Ts 3,2.6; 1Cor 4,17; Rm 16,21; 1-2Tm). A comunidade de Corinto (cf. At 18; 1Cor) se abriu a toda província ao redor, a Acaia. Os destinatários são os “santos”, ou seja, os consagrados a Deus, que participam da sua santidade como povo de Deus (cf. Ex 19,6). “Graça” (cháris, daí carisma=dom) é saudação grega, e “paz” (shalom) é saudação hebraica, aqui ambas se transferem unidas ao contexto cristão.

Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e Deus de toda consolação. Ele nos consola em todas as nossas aflições, para que, com a consolação que nós mesmos recebemos de Deus, possamos consolar os que se acham em toda e qualquer aflição. Pois, à medida que os sofrimentos de Cristo crescem para nós, cresce também a nossa consolação por Cristo. Se estamos em aflições, é para a vossa consolação e salvação; se somos consolados, é para a vossa consolação. E essa consolação sustenta a vossa paciência em meio aos mesmos sofrimentos que nós também padecemos. E a nossa esperança a vosso respeito é firme, pois sabemos que, assim como participais dos nossos sofrimentos, participais também da nossa consolação (vv. 3-7).

Paulo, pregador de seu “evangelho”, cuja atividade descreve nesta carta, começa com uma mensagem (ou testemunho) de consolo (“consolação”) na tribulação (“aflição”). Dez vezes na leitura de hoje soa o termo consolação ou consolar, em oposição três vezes à “aflição”, três vezes a “sofrimento”.

A tensão de opostos, “tribulação” e “consolo”, é superada de modo paradoxal pela ação de um “Deus e Pai”, fonte de todo consolo autêntico (Sl 94,19; Is 57,18), e pela causa que o inspira, “por Cristo” (v. 5; cf. Mt 5,11s). “Misericordioso, compassivo” é um dos títulos básicos da revelação do Senhor (Ex 34,6), repetido na liturgia, ligado à sua paternidade (Sl 103); é corrente na piedade islâmica: os muçulmanos consideram Alá (Deus em árabe) todo-misericordioso, mas não o chamam de Pai.

A consolação foi anunciada pelos profetas como característica de era messiânica (Is 40,1: “Consolai, consolai meu povo”). Será trazida pelo Messias (Lc 2,25) e consiste na cessação da provação e no início de uma era de paz e alegria (Is 40; Mt 5,5). Mas no NT, o mundo novo está presente em meio ao mundo antigo, e o cristão unido a Cristo é consolado no âmbito mesmo do seu sofrimento (vv. 4-7; 7,4; cf. Cl 1,24). Essa consolação não é recebida passivamente; é também “reconforto, encorajamento, exortação”; em grego a mesma palavra: paráklesis (cf. o Espírito Santo parácleto em Jo 14,16.26; 15,26; 16,7; cf. 1Jo 2,1). A sua fonte única é “de Deus” (vv. 3-4), “por Cristo” (v. 5) e pelo Espírito (At 9,31).

Em 2Cor, Paulo insiste constantemente na presença de realidades contrastantes, até mesmo contraditórias, em Cristo, no apóstolo e no cristão: sofrimento e consolação (1,3-7; 7,4): morte e vida (4,10-12; 6,9), pobreza e riqueza (6,10; 8,9), fraqueza e força (12,9-10). Tal é o ministério pascal, a presença do Cristo ressuscitado em meio ao mundo antigo de pecado e de morte (cf. 1Cor 1-2).

O consolo que o apóstolo recebe redunda em favor de seus fiéis, pela solidariedade ou comunhão em sofrimento e alegria. Nos vv. seguintes 8-11 (omitidos pela nossa liturgia), Paulo menciona experiências dolorosas que passou na Ásia, “tal acima de nossas forças que não esperávamos sair com vida” (v. 8). Não sabemos se foram maus tratos, doenças ou perigos na viagem. A aflição de Paulo devia ajudar consolando os cristãos (v. 6), por outro lado eles deviam colaborar “rezando por nós” (v. 11). Paulo vê os cristãos unidos intimamente como os membros de um mesmo corpo (1Cor 12,20-30): “Como participais dos nossos sofrimentos, participais também da nossa consolação” (v. 7).

 

Evangelho: Mt 5,1-12a

Nos próximos meses ouviremos o evangelho de Mateus, hoje o início de um sermão famoso que abrange três capítulos (Mt 5-7) e nos será apresentado até 5ª feira da 12ª semana do Tempo Comum. Em Mt, Jesus expôs o espírito novo do reino de Deus (3,2; 4,17) num discurso inaugural (o primeiro de cinco neste Ev), chamado de” sermão da montanha”.

Em Lc, o mesmo discurso, porém menor, acontece “na planície” (Lc 6,17.20-49). Como se pode verificar nas diferenças entre os evangelhos de Mt e Lc (p. ex. na infância de Jesus e nas aparições do ressuscitado), ambos os evangelistas não se conhecem, escreveram independentemente um do outro, mas copiaram grande parte do evangelho mais velho, de Mc. Mas em Mc não temos este discurso. A teoria das duas fontes diz que Mt e Lc usaram ainda outra fonte escrita (além de Mc) que se perdeu na história. Os peritos da Bíblia a reconstruíram e a chamam de “Q” (da palavra alemã Quelle = fonte): uma coleção catequética de palavras (não de ações, mas de parábolas, ensinamentos) de Jesus (e algumas de João Batista). Outra teoria propõe que um redator (Deutero-Mc) poderia reeditado Mc com algumas mudanças e acréscimos (material de Q), porque chama atenção o fato de que o sermão está inserido, em Mt e Lc, praticamente no mesmo lugar da sequência de Mc que informa de onde veio a grande multidão que seguia Jesus: de todo Israel e até regiões vizinhos, “vinda da Galileia, da Judeia… até Sidônia” (Mc 3,7-10: Lc 6,17-19; Mt 4,23-25).

Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los (v. 1).

“Começou a ensiná-los” (vv. 1-2; lit. “abriu a boca” (cf. Is 53,7; Ez 3,27; Sl 78,2). Jesus não se retira da multidão (cf. 14,23p) e nem se senta apenas para descansar. A introdução própria de Mt quer lembrar a seus leitores judeu-cristãos a autoridade tradicional de Moisés no monte Sinai (cf. Ex 19-20). O sermão da montanha é como a constituição de um novo povo de Deus com Jesus promulgando a nova lei. Os rabinos (mestres judaicos) costumam sentar-se ao ensinar (daí a palavra “catedral”, é o lugar onde está a cátedra=cadeira=sede do bispo). Todo discurso é dirigido não só aos discípulos, como pode parecer aqui, mas ao povo todo, como consta no final do sermão (7,28).

O início desta nova (interpretação da) Lei não são mandamentos como na antiga Lei (no Sinai era o decálogo, ou seja, os 10 mandamentos; cf. Ex 20), mas felicitações: as oito (ou nove, com v. 11) bem-aventuranças. Em Mt, Jesus usa a terceira pessoa (“os”, só em v. 11 muda para “vós”), em Lc a segunda (“vós”). Enquanto Mt apresenta oito (ou nove) bem-aventuranças como caminho de vida ética e espiritual (Mt 5,3: “pobres em espírito”) e com promessas de recompensa celeste, Lc só conhece quatro bem-aventuranças (Lc 6,20-23) e preserve mais a versão original e social, a mudança de situações entre esta e a futura (cf. 16,25). Esta opinião de que a versão de Lc é mais perto das palavras originais de Jesus se baseia na observação de que é mais provável um evangelista (Mt) acrescentar algo às palavras de Jesus do que diminuir ou tirá-las (também os quatro ais em Lc 6,24-26 devem ser um acréscimo).

”Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra (vv. 3-6).

Em Lc, os “pobres” (economicamente, cf. Dt 15,1-11; Is 29,10; Sl 72,4.13; 74,21; 1 Sm 2,8 e Lc 1,52-53) são também os “famintos” (Sl 58,7; Sl 107,9; Jl 2,26) e os “aflitos” que choram (Is 25,8; 30,19; Sl 56,9; 126,5-60), e sua situação está relacionada à posse do reino. Mt destaca mais a ética e espiritualiza, retrata as atitudes do próprio Jesus nestas bem-aventuranças indicando um caminho para qualquer discípulo que queira seguir.

O AT (Antigo Testamento) às vezes expressava felicitações como essas falando de piedade, de sabedoria e de prosperidade (Sl 1,1-2; 33,12; 127,5-6; Pr 3,3; Eclo 31,8; etc.). No espírito dos profetas, Jesus lembra que também os pobres participam das suas bênçãos: as três primeiras bem-aventuranças (Mt 5,3-5; Lc 6,20-21) declaram que pessoas comumente tidas como infelizes e amaldiçoadas são felizes, estão aptas para receber a benção do reino. As bem-aventuranças seguintes se referem mais diretamente a atitude moral do homem. Outras bem-aventuranças de Jesus se encontram em Mt 11,6; 13,16; 16,17; 24,46; Lc 11,27s; etc. (cf. Lc 1,45; Ap 1,3; 14,13; etc.)

Cristo retoma a palavra “pobre” com o sentido moral que já se percebe em Sofonias (cf. Sf 2,3), explicitado em Mt 5,3 pela expressão “em espírito”, que não ocorre em Lc 6,20. Despojados e oprimidos, os “pobres” ou os “humildes” estão disponíveis para o reino dos céus (cf. Lc 4,18; 7,22; Mt 11,5; Lc 14,13; Tg 2,5). A “pobreza” sugere a mesma ideia que a “infância espiritual”, necessária para entrar no reino (Mt 18,1; Mc  9,33s, cf. Lc 9,46; Mt 19,13; 11,25), o ministério revelado aos “pequeninos” (cf. Lc 12,32; 1Cor 1,26s). Aos “pobres” corresponde ainda os “humildes” (Lc 1,48.52; 14,11; 18,14; Mt 23,12; 18,4), os últimos em oposição aos primeiros (Mc 9,35), os pequenos em oposição aos grandes (Lc 9,48; cf. Mt 19,30p; 20,26p; Lc 17,10). Embora a expressão de Mt 5,3 enfatize o espírito da pobreza tanto no rico como no pobre, o que Cristo quer salientar é uma pobreza efetiva particularmente para seus discípulos (Mt 6,19s; cf. Lc 12,33s; Mt 6,25p; 4,18s, cf. At 2,44s; 4,32s). Ele mesmo dá o exemplo de pobreza (Lc 2,7; Mt 8,10p) e de humildade (Mt 11,29; 20,28p; Mt 21,5; Jo 13,12s; cf. 2Cor 8,9; Fl 2,7s) identificando-se com os pequeninos e com os infelizes (Mt 25,45, cf. 18,5p).

Os “aflitos” comovem a Deus (cf. Ex 3,17; Is 48,10; 61,1-3) e “serão consolados” (v. 4; cf. Is 40,1; 2Cor 1,3-7; em Lc 6,21 “haverão de rir”).

Própria de Mt é a “herança” da terra aos “mansos”, aos injustamente despossuídos (v. 5; cf. Sl 37,11). Alguns anos antes da redação do evangelho por volta de 80 d.C., a Guerra Judaica, os seja, a luta violenta contra os romanos para conseguir a independência de Israel, acabou em derrota (destruição de Jerusalém e do templo em 70). Esse fato reforçou a posição pacífica de cristãos contra o movimento nacionalista dos judeus (p. ex. zelotas; cf. o conselho de Gamaliel em At 5,34-39).

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados (v. 6).

Mt não só fala dos famintos, mas dos que têm “fome e sede de justiça” (v. 6). Como metáfora, fome e sede podem ter como objetivo o próprio Deus (Sl 42,2; 63,2: cf. Jo 6), aqui é a justiça que corresponde ao reino de Deus (cf. 5,20; 6,1.25.31.33).

Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia (v. 7).

A “misericórdia” (v. 7) é um atributo principal de Deus (cf. Ex 34,6) e é aconselhada também ao homem, inclusive como bem-aventurança em Sl 41,2. O passivo tem Deus como agente (cf. 6,12; 18,23-35; Pr 14,31; 19,17).

Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus (v. 8).

Os “puros de coração” (v. 8) são sinceros com Deus e com as pessoas (cf. Sl 24,4; Pr 12,11), não são corruptos. Esta pureza interior se opõe à pureza meramente externa e ritualista (23,25-28). “Verão a Deus”, ver a Deus é desejo e esperança suprema (Sl 11,7; 17,15; 63,3) que nem Moisés alcançou (Ex 33,20; cf. Jo 1,14.18; 14,9). Também em 1Jo 3,2s se relaciona a visão beatífica à pureza.

Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus (v. 9).

A “paz” e não a violência (cf. 5,38-48; 26,52) faz parte essencial das profecias sobre o messias (cf. Is 2,2-5; 9,5; 11,1-9; 42,1-4). Como o messias (“Cristo”) é o Filho de Deus com o Espírito de paz (cf. o símbolo da pomba em 3,16s), seus discípulos (“cristãos”, At 11,26) também “serão chamados filhos de Deus”.

Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus (vv. 10-12a).

Aos “perseguidos por causa da justiça” (v. 9), por serem justos ou vítimas inocentes (cf. Sb 2), pertence o reino como em v. 3.

Em v. 11, Mt passa para a segunda pessoa (“vós”), acrescentando uma ampliação à oitava bem-aventurança. A chave está na mudança da causa, agora “sois vós”, perseguidos “por causa de mim”, Jesus Cristo (vv. 11-12). Mas “alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois foi assim que perseguiram os profetas que vieram antes de vós” (a segunda parte deste v. 12 é omitida pela liturgia de hoje, talvez por querer um final positivo ou um final atualizado: antes de nós hoje não vieram os profetas do AT, mas 2000 anos de história da Igreja). Os discípulos de Jesus são sucessores dos profetas. No AT, os profetas foram perseguidos por cumprirem sua missão (11,47; 2Cr 36,16), desde Elias por Jezabel (1Rs 19) até a figura exemplar de Jeremias, “o profeta queimado”, passando por Amós (Am 7). A perseguição por causa de Jesus e seu evangelho é uma constante da Igreja desde a época dos Atos dos Apóstolos e tem lugar importante no Apocalipse (cf. 10,23; 23,34; 1Pd 4,4.12-19).

No estado laico de hoje, os cristãos não são perseguidos, mas às vezes discriminados quando querem se manifestar publicamente (alega-se que religião seja coisa apenas privada) ou por defender a ética frente à corrupção da maioria. Mas ainda existe perseguição de cristãos em alguns países (p. ex. islâmicos, comunistas).

O site da CNBB comenta: A partir de hoje, a Igreja nos propõe a leitura continuada do Evangelho de São Mateus nos dias de semana do Tempo Comum, omitindo o seu início porque é apresentado no ciclo litúrgico do Natal e o seu final, que nos é proposto para a reflexão no ciclo da Páscoa, de modo que iniciamos com o sermão da montanha (capítulos 5, 6 e 7). O sermão da montanha nos mostra a moral da Nova Aliança e começa com as bem-aventuranças, apresentadas no Evangelho de hoje, e que nos mostram as motivações e as virtudes que nos são necessárias para que assumamos os valores do Reino de Deus e possamos viver de forma madura o que nos é proposto por Jesus.

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