07 de março de 2018 – Quarta-feira, Quaresma 3ª semana

Leitura: Dt 4,1.5-9

O autor sabe de uma segunda declaração da vontade de Javé-Deus que confirma e renova a aliança do Sinai/Horeb (cerca de 1200 a.C.). Esta segunda declaração se chama “Deuteronômio” (“segunda lei” em grego) e se situa na terra de Moab (Dt 28,69) ao lado oriental do Jordão, antes de “entrar na posse da terra prometida”. A conquista e a vida na terra (como também a volta após o exílio) dependem da atitude que o povo tem diante do projeto de Deus.

Ao núcleo de Dt 5-28 (corpo legal) acrescentou-se, numa segunda edição durante o exílio babilônico (séc. VI a.C.), uma introdução. É um sermão colocado na boca de Moisés que quer mostrar a excelência deste código de leis e decretos e motivar o cumprimento dos seus mandamentos.

Agora, Israel, ouve as leis e os decretos que eu vos ensino a cumprir, para que, fazendo-o, vivais e entreis na posse da terra prometida que o Senhor Deus de vossos pais vos vai dar. Eis que vos ensinei leis e decretos conforme o Senhor meu Deus me ordenou, para que os pratiqueis na terra em que ides entrar e da qual tomareis posse (vv. 1.5).

Na época desta redação, o povo judeu se encontrava longe da sua pátria, no exílio da Babilônia. Como chegou a esta situação tão precária? Resposta da redação: o povo com seus reis não guardou “as leis e os decretos” de Deus, praticava a injustiça imitando outros povos e adorando outros deuses (cf. a história deuteronomista, por ex. Jz 2; 2Rs 21). “Agora”, antes de poder voltar do exílio, o povo judeu se encontra de novo na mesma situação, no lugar, onde já se estava uma vez, a dizer, além do Jordão no tempo de Moisés, antes de “entrar na posse da terra prometida”.

O dom da Terra é relacionado ao dom da Lei. Faz parte da Lei de Deus, permanentemente “ouvir” (cf. 6,4) para entender, e “ensinar” para “cumprir” e “praticar”.

Vós os guardareis, pois, e os poreis em prática, porque neles está vossa sabedoria e inteligência perante os povos, para que, ouvindo todas estas leis, digam: “Na verdade, é sábia e inteligente esta grande nação! Pois, qual é a grande nação cujos deuses lhe são tão próximos como o Senhor nosso Deus, sempre que o invocamos? E que nação haverá tão grande que tenha leis e decretos tão justos, como esta lei que hoje vos ponho diante dos olhos? (vv. 6-8).

Com isso, as leis de Israel superam as dos outros povos, por ex. o Código do rei babilônico Hamurabi (cerca de 1.700 a.C.) que já continha a lei do Talião (“olho por olho, dente por dente”, cf. Ex 21,24; Dt 19,21). Comparado com outras nações (Egito, Assíria, Babilônia), Israel é uma anão, mas “qual é a grande nação cujos deuses lhe são tão próximos como o Senhor, nosso Deus, sempre que o invocamos? E que nação haverá tão grande que tenha leis decretos tão justos, como esta lei que hoje vos ponho diante dos olhos?” (vv. 7-8).

O Dt insiste na eleição do povo de Israel através da revelação e da experiência de que o Senhor e sua palavra são “próximos” de Israel (cf. 30,14; Rm 10,8) e Deus está “no meio” do seu povo (6,15; 7,21).

A grandeza e a sabedoria de Israel estão na lei de Deus que liberta seu povo sofrido e faz aliança com ele. A lei é o meio de instrução para formar uma sociedade justa e igualitária na qual cada membro do povo de Deus tem sua dignidade. É nesta lei que Deus está “tão próximo” do seu povo, mais do que num culto luxuoso no templo (que na época do exílio estava em ruínas). É esta “Lei” (a palavra hebraica torá quer dizer “orientação, instrução, lei”) que dá a Israel grandeza e fama maior que qualquer administração brilhante de uma corte ou uma máquina eficiente da burocracia do estado.

Mas toma cuidado! Procura com grande zelo não te esqueceres de tudo o que viste com os próprios olhos, e nada deixes escapar do teu coração por todos os dias de tua vida; antes, ensina-o a teus filhos e netos” (v. 9).

A leitura escolhida para hoje começou com a exortação, “ouve as leis e os decretos que eu vos ensino a cumprir” (v. 1) e termina com a ordem de transmitir às próximas gerações o que se ouviu, “antes, ensina-o a teus filhos e netos” (v. 9; cf. 6,4-7).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 274) comenta: Com insistência, o Dt adverte o povo contra o perigo de “esquecer” o seu Senhor (6,12; 8,11.14; 26,13; 32,18), os acontecimentos do Horeb (4,9.23) e do deserto (9,7). O povo deve se “lembrar” do seu Senhor (8,18), da servidão do Egito da qual foi libertado (5,15; 7,18.19; 15,15; 16,3; 24,18), e das experiências ricas em ensinamentos vividas no deserto (8,2; 9,7; 24,9; 25,17; cf. 32,7). Por estes dois temas paralelos, a pregação deuteronômica … visa, sobretudo, dirigir o seu povo conscientizando-o do alcance sempre atual do que o Senhor realizou no Êxodo uma vez por todas. Lembrar-se torna-se então considerar os acontecimentos desta época particular da história como a norma que é preciso seguir, sem nunca perdê-la de vista, em todos os âmbitos da vida.

 

Evangelho: Mt 5,17-19

Muitos cristãos de hoje veem Jesus em oposição ao Antigo Testamento (AT). Mas o evangelho de hoje nos mostra, como Jesus e também os primeiros cristãos viviam bem ligados ao AT.

O Evangelho de Mt que se dirige a leitores judeu-cristãos que estavam ainda no meio de outros judeus, mas fora de Israel, talvez em Antioquia na Síria ou em Alexandria no Egito (já na época de Jesus, mais judeus viviam nos países vizinhos do que em Israel). Esta visão se caracteriza pelo “melhor cumprimento” da Lei, não pela ruptura. Mt não era fariseu que rompeu com a tradição judaica como Saulo-Paulo, mas um coletor de impostos (9,9; 10,3) e um escriba que sabe, “semelhante a um pai de família tirar do seu tesouro coisas velhas e novas” (13,52).

Depois de propor “felicidades” (bem-aventuranças, vv. 1-12) em lugar de “mandamentos”, Jesus expõe sua posição diante da “lei” tradicional, a Torá (a Lei de Moisés que contém os primeiros cinco livros da Bíblia, chamados também de Pentateuco); primeiro em termos genéricos (vv. 17-20), incluindo toda escritura (AT) na fórmula consagrada “a lei e os profetas”, depois numa série de antíteses (vv. 21-48).

Não penseis que vim abolir a lei e os profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhe pleno cumprimento (v. 17).

A expressão “a lei e os profetas” é frequente (Mt 5,17; 7,12; 11,13; 22,40; Lc 16,16.29.31; 24,27.44; cf. Mc 9,4p); no culto da sinagoga tem uma leitura da Lei, outra dos Profetas (cf. At 13,15). Esta expressão designa a parte da Bíblia que chamamos de Antigo Testamento e que era a única Escritura sagrada dos judeus. Eles dividem a Bíblia hebraica em três partes (T-N-Q): Torá (a “lei” de Moises; Pentateuco em grego, os primeiros “cinco” livros: Gn, Ex, Lv, Nm, Dt ), Nebiim (os “profetas”: 1-2Sm; 1-2Rs; Is; Jr; Ez e os 12 profetas menores) e Quetubim (os “escritos” sapiências: Sl, Jó, Pr…; cf. Lc 24,44). A tradução grega do AT do séc. III-I a.C. (que acrescentou outros livros: Tb, Jdt, 1-2Mc; Sb, Eclo, Br) não foi aceita como escritura sagrada pelos judeus em 90 d.C., mas citada no NT (cf. Mt 1,23 cita Is 7,14 em grego “virgem”; em hebraico é “jovem mulher”).

Contra conclusões precipitadas (talvez derivadas da teologia de Paulo que substituiu a importância da lei pela fé, a circuncisão pelo batismo, etc.), Mt quer apresentar Jesus como mestre que aperfeiçoa a lei de Moisés em vez de aboli-la.

Em verdade, eu vos digo: antes que o céu e a terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo se cumpra (v. 18)

Esta frase, Mt já encontrou numa fonte comum (chamada Q) com Lc 16,17. “Nem uma só letra ou vírgula” lit.: “nem um iota nem o mínimo traço”. O iota é a letra menor do alfabeto hebraico; os traços talvez designem a ponta ou a barra que distinguem as letras (ex. entre G e C); num tempo posterior, traços e pontos indicavam os vocais (cf. o ponto do i), já que o alfabeto hebraico só contém consoantes. O sentido de v. 18 é que nenhum pormenor da lei deve ser menosprezado. A lei se cumpre quando seus múltiplos preceitos são postos em prática. As profecias, como predições, se cumprem quando o anunciado acontece. Mt não se cansa em salientar as profecias cumpridas durante a vida de Jesus (cf. 1,22; 2,7.15.23; 4,14; 8,17; 13,35; 21,4; 27,9).

Portanto, quem desobedecer a um só desses mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros a fazer o mesmo, será considerado o menor no Reino do Céu. Por outro lado, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino do Céu (v. 19).

Não se deve pensar, porém, que Jesus ensina cumprir a lei como ensinavam os fariseus (cf. 7,28-29p). Cumprir a lei fielmente não significa subdividi-la em observâncias minuciosas, criando uma burocracia escravizante. Jesus revela o sentido mais profundo da lei, a vontade de Deus, buscar nela inspiração para a justiça e a misericórdia, a fim de que o homem tenha vida e relações mais fraternas. Jesus resume toda lei (e os profetas) na regra de ouro (7,12p) e no mandamento do amor a Deus e ao próximo (22,34-40p; cf. Jo 13,34; Rm 13,8-10; Gl 5,14; Cl 3,14).

O amor e a misericórdia são a perfeição na Lei (cf. v. 48) e a justiça maior: “Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus” (v. 20, omitido pela leitura de hoje).

A maneira como Jesus dá pleno cumprimento às leis do AT é diferente do legalismo dos hipócritas, fariseus e mestres da lei que “só falam e não praticam” (23,3). Para Jesus em Mt, é importante a ética, ou seja, “praticar a vontade do meu Pai que está nos céus” (cf. 7,21).

A justiça dos cristãos que deve superar a dos doutores da lei e dos fariseus (v. 20), não consiste em cumprir ao pé da letra os mínimos detalhes da lei, mas na criatividade do coração que ama: “Tudo o que vocês desejam que as outras façam a vocês, façam vocês também a eles. Pois nisso consiste a Lei e os Profetas” (Regra de Ouro em 7,12). A interpretação de Jesus (seu “jugo leve”, cf. 11,30) a respeito da Lei é o mandamento maior do amor: “Amarás ao Senhor teu Deus com todo o teu coração, … amarás teu próximo como a ti mesmo. Toda lei e os profetas dependem desses dois mandamentos” (22,34-40; cf. Dt 6,5; Lv 19,18).

Com esta interpretação, o evangelista Mateus ainda se encontra com os pensamentos do apóstolo Paulo que costumava polemizar contra a lei judaica. “Cristo é o fim da lei” (Rm 10,4) ou a “finalidade da lei”? A palavra grega pode exprimir ao mesmo tempo a idéia de meta, de termo e de realização.

Enquanto era fariseu e mestre da lei, Saulo de Tarso considerava a Lei o meio de salvação (cf. At 22,3; Fl 3,5s); mas depois da sua conversão, Saulo-Paulo reconheceu, que “ninguém se tornará justo diante de Deus através da observância da Lei, pois a função da lei é a consciência do pecado. Agora, porém, independentemente da lei, manifestou-se a justiça de Deus, testemunhada pela lei e pelos profetas. É a justiça de Deus que se realiza através da fé em Jesus Cristo, para todos aqueles que acreditam” (Rm 3,20-22). Paulo sabe que “a Lei é santa e o mandamento é santo, justo e bom” (Rm 7,12), mas a Lei não salva, sim conscientiza e condena. O Tribunal Supremo dos Judeus (Sinédrio) condenou Jesus por sua interpretação diferente da Lei. Não só a Lei, antes é a promessa, a graça e a fé que importam. “Não torno inútil a graça de Deus, porque se a justiça vem através da lei, então Cristo morreu em vão” (Gl 2,21). “Sabemos, entretanto, que o homem não se torna justo pelas obras da lei, mas somente pela fé em Jesus Cristo” (Gn 2,16). “A lei do Espírito que dá a vida em Jesus Cristo, nos libertou da lei do pecado e da morte” (Rm 8,2). Paulo escreveu contra aqueles que queriam obrigar pela Lei de Moisés a circuncisão dos cristãos que vieram do paganismo, enquanto para Paulo bastava batizá-los como sinal da fé em Jesus Cristo (cf. At 15). Por isso ele opôs a Lei (a circuncisão, a carne, as obras) à fé (à graça, à promessa, ao Espírito). Mas ele reconhece também que a liberdade da Lei (da circuncisão etc.) não dispensa do amor ao próximo: “Pois toda lei encontra sua plenitude num só mandamento: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,14; cf. Gl 6,2: “Carregai os fardos uns dos outros, assim cumprireis a lei de Cristo”).

A oposição de Paulo (só a fé salva, não as obras da lei) de um lado, e as de Mateus (não abolir, mas cumprir a lei) e Tiago (a fé sem obra é morta; cf. Tg 3,14-26) do outro lado, explicam-se pelo público diferente. Paulo escreveu cartas para cristãos que eram pagãos; ele queria poupá-los das exigências da lei cultual dos judeus, mas não da ética (amor ao próximo). Tg e Mt escreveram para judeu-cristãos que viviam dentro da lei judaica e valorizavam a sabedoria da Lei de Moisés e dos profetas, mas agora são convidados a interpretá-los conforme a lei máxima do amor a Deus e ao próximo.

Sem normas, regras e leis, uma sociedade não pode existir, também a Igreja tem seu Código Canônico com 1752 leis (cânones)! São Filipe Neri, porém, disse: “Para ser obedecido, precisa de poucas normas. Eu escolhi a caridade.”

No site da CNBB comenta: Todos nós estamos de acordo que devemos obedecer a Deus, mas não estamos muito de acordo se perguntarmos por que devemos obedecer a Deus. Isto porque existem duas formas de obediência. A primeira é a obediência de quem reconhece o poder de quem manda e se submete a este poder por causa das vantagens da obediência ou das consequências da desobediência. É aquele que diz que manda quem pode e obedece quem tem juízo. A segunda é de quem reconhece os valores que motivam a autoridade e assume esses valores como próprios, vendo na obediência a grande forma de concretização desses valores. Jesus não veio mudar a lei, mas mostrar as suas motivações, os seus valores, a fim de que a sua observância não seja um jugo, mas uma forma de realização pessoal.

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