08 de agosto de 2017 – Terça-feira, 18ª semana

Leitura: Nm 12,1-13

No judaísmo, Moisés é a figura mais importante. Ele liderou a saída da escravidão do Egito e a caminhada pelo deserto e, como intermediário entre Deus e o povo, deu a Torá (“Lei” de Moisés). Diferente dos patriarcas, sua descendência era insignificante, pois é uma figura de transição. Pela sua intermediação possibilitou a transição da religião tradicional de Judá e Israel centrada na pessoa do rei, para uma religião que pode existir também sem os reis e sem a pátria, porque na Lei (Torá) tem sua pátria portátil. Isso era importante para os autores do Pentateuco durante ou após o exílio babilônico. Os autores o idealizaram retratando-o com traços sacerdotais, proféticos e reais.

Mas como todas as figuras do AT, Moisés também tem suas fraquezas: duvida já na sua vocação (Ex 4,1.10; 6,12), reage com ira matando (Ex 2,12), cansa e fica desanimado precisando de ajuda (Nm 11,14; Ex 18,13-27); seu estilo de liderança é criticado várias vezes, principalmente no livro de Números (Nm 11-14; 16-17; Ex 15-17). Na leitura de hoje, sua posição é questionada pela própria família (cf. Jesus em Mc 3,20s.35p; 6,1-6p; Jo 7,3-5), por sua irmã mais velha, Maria (tradução grega do nome hebraico Miriam), e por Aarão seu irmão e porta-voz que se tornou sumo sacerdote.

A Bíblia do Peregrino (p. 249) comenta: Desde o começo se percebe uma incoerência no relato. Um verbo no singular, “falou”, e dois sujeitos, Maria e Aarão. A crítica é a propósito de uma mulher núbia que Moisés tomou, e o protesto é questão de autoridade. O castigo afeta só Maria. O autor combinou dois relatos “de família” unificados pelo tema comum da oposição a Moisés. Se este capitulo reflete tensões da época do autor, seria uma crítica contra excessivas pretensões dos sacerdotes e uma defesa da torah, atribuída a Moisés.

Maria e Aarão criticaram Moisés por causa de sua mulher etíope (v. 1).

Depois da sua fuga do Egito, Moisés casou com Séfora, filha do sacerdote de Madiã (cf. Ex 2,14-22; 4,25; 18,2). Aqui se trata de uma segunda mulher ou concubina “etíope” (lit. “cuchita”) ou da mesma mulher Zéfora? Segundo o sentido comum de Cuch (hebraico: “preto, negro”), ela seria da Etiópia (Núbia), ao sul do Egito (Ez 29,10; 30,4) no limite do mundo antigamente conhecido (Am 9,7), onde vivem os homens de pele negra (Jer 13,23), ou do sul da Arábia (2Cr 21,16; cf. Gn 2,13; 10,6-8). Mas em Hab 3,7 Cusã é nomeado com Madiã. O casamento cuchita de Moisés pode ser uma variante do casamento madianita, e esta mulher seria Séfora? O zelo do sacerdote Fineas se inflamou justamente porque um israelita trouxe uma mulher madianita no acampamento, e ele matou os dois (Nm 25).

A questão da mulher cuchita não está explicada. Nas tradições mais antigas, a poligamia era aceita, como também os matrimônios com estrangeiras (Gn 41,45; 48,5s; Rt 1,4; 2Sm 3,3). Foram proibidos na época de Josias (660-609) pelo Deuteronômio, para combater as idolatrias que as mulheres pagãs poderiam introduzir em seus lares (Dt 7,1-4; 23,4s; cf. Ex 34,15s; 1Rs 11,1-13; 16,31ss). Depois do exílio, Esdras os proibiu e ainda exigiu que os casamentos mistos fossem desfeitos (Esd 9-10; Ne 13,23-29; cf. Ml 2,10-16 contra o divórcio) para que os repatriados não se misturassem com os vizinhos.

Qual é o objetivo das críticas de Maria: o casamento de Moisés com uma estrangeira (já Séfora era), o fato de que tome uma segunda mulher, ou ainda (como pensa toda a tradição judaica) o fato de que se tenha separado de sua mulher “cushita”? A Bíblia do Peregrino (p. 249) comenta: São ciúmes de Maria? A propósito, esta Maria não coincide facilmente com a irmã mais velha de Moisés criança (Ex 2). Contudo, é interessante apreciar o papel de uma mulher na ação. Tal como se apresenta o relato atual, a questão da mulher cuchita é pretexto que provoca a descarga de ressentimentos acumulados.

E disseram: ”Acaso o Senhor falou só através de Moisés? Não falou, também, por meio de nós?” E o Senhor ouviu isto (v. 2). 

Ao formular o protesto (cf. 16,3), apelam a uma suposta atividade profética e questionam a autoridade suprema de Moisés.

A irmã mais velha de Moisés (Ex 2,4.7) ficou sem nome em Ex 2. No recenseamento de Nm 26,59 se menciona “Aarão, Moisés e Maria, irmã deles” (cf. Mq 6,4; na geneologia de Ex 6,20 só se fala de Moisés e Aarão). Ex 15,20 dá a “Maria, irmã de Aarão” o título de “profetisa” cantando a vitória no mar Vermelho e dançando como líder das mulheres. A função profética de Aarão só poderia apoiar-se em Ex 4,27 e 6,13. Mas ele era artesão hábil (Ex 32,4s), falava bem (porta-voz de Moisés, Ex 4,14-16; 7,1s) e foi ungido primeiro sumo sacerdote, dando início a um “sacerdócio perpetuo” da sua descendência (40,12-15; cf. caps. 28-29; 39).

A Bíblia do Peregrino (p. 249) comenta: Na intenção do narrador, Aarão e Maria poderiam dar voz a reclamações de círculos proféticos contra a autoridade superior atribuída a Moisés. Poderia no futuro um profeta abolir ou suspender um mandamento de Moisés? (cf. Is 56). Ninguém pode se colocar acima da Lei (representada por Moisés), nem os reis (Dt 17,14-20), nem os profetas (seriam falsos, cf. Dt 13), nem os sacerdotes (Nm 16; 1Sm 2,12-4,11; Ne 13,28; Ml 1,6-2,9).

Moisés era um homem muito humilde, mais do que qualquer outro sobre a terra (v. 3) 

Este juízo do narrador sobre Moisés não corresponde a outras atuações que conhecemos dele (talvez Ex 3,11; 4,10; cf. Eclo 45,4). Antigamente acreditava-se que Moisés seria o autor do Pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia), chamado de Torá, “Lei de Moisés” (Lc 24,,44; Jo 1,45; Rm 10,5 etc.). Se Moisés seria o autor desta frase, contraria-se a si mesmo! Com base nesta frase e na narração da morte de Moisés (Dt 34), os rabinos já começaram a atribuir estes textos a Josué. Desde Baruch Spinoza (1670) e Richard Simon (1678) ficou claro que o Pentateuco é uma composição de diversas redações. Jean Astruc (1753) sustentou a tese de duas fontes, cada uma usando um ou outro nome de Deus (Javé ou Elohim). No final do séc. 19, surgiu a teoria documentária, ou seja, de quatro redações (desde a corte de Salomão até o exílio): javista, eloísta, deuteronomista e sacerdotal. A pesquisa contemporânea, porém, sustenta apenas as duas últimas (com releituras posteriores e tradições anteriores mais ou menos indefinidas). No final do séc. IV a.C., o Pentateuco estava pronto, compilado e foi aceito também pelos samaritanos.

Então o Senhor disse a Moisés, Aarão e Maria: ”Ide todos os três à Tenda da Reunião”. E eles foram. O Senhor desceu na coluna de nuvem, parou à entrada da Tenda, e chamou Aarão e Maria. Quando se aproximaram, ele lhes disse: (vv. 4-5)

O protesto se transforma em pleito, o qual chega sem mais, “de repente”, ao tribunal supremo, ao Senhor que ouviu (v. 2). Celebra-se um juízo estilizado: ordem de comparecer (vv. 4-5), o juiz vem “na nuvem” (cf. 9,15-23; 10,33s; Ex 13,21s etc.) e não precisa interrogar, porque já “ouviu” (v. 2); passa ao requisitório (6-8), à sentença (“indignado”, ira = condenação, v. 9) e à execução da pena (v. 10).

“Ide (lit. saiais) todos os três à Tenda da Reunião”. O texto fala de sair, subentende-se “do acampamento”. Numa tradição, a tenda é imaginada fora do acampamento (Ex 33,7) noutra dentro (Nm 2,2). Sua função é a revelação, a comunicação divina (como nestes vv. 4-8; 7,89; cf. Ex 29,42s).

”Escutai minhas palavras! Se houver entre vós um profeta do Senhor, eu me revelarei a ele em visões e falarei com ele em sonhos. O mesmo, porém, não acontece com o meu servo Moisés, que é o mais fiel em toda a minha casa! Porque a ele eu falo face a face; é às claras, e não por figuras, que ele vê o Senhor! Como, pois, vos atreveis a rebaixar o meu servo Moisés?” (vv. 6-8).

O requisitório está em verso. Moisés como “servo” (em que o povo deve acreditar, cf. 14,31), o mais “fiel” (cf. Hb 3,2), na “casa” do Senhor (casa no sentido de tenda/templo ou família/povo de Deus). “A ele eu falo face a face”, lit. “de boca a boca”, o que evoca um diálogo, um intercâmbio entre duas pessoas; cf. Ex 33,11: “o Senhor falava com Moisés face a face”; cf. Dt 34,10: “Nunca mais surgiu um profeta como Moisés – a quem o Senhor conhecia face a face”.

É duvidosa a tradução “às claras” (alguns vocalizam e leram “num espelho”, outros o consideram e presença, ou afetado pela negação “não em visão ou em enigma” (como o recolhe Paulo em 1Cor 13,12).

“Ele vê o Senhor” lit. “a forma do Senhor”. A palavra temuná, “forma, figura, silhueta”, poderia equivaler ao rosto (Sl 17,15; cf. Ex 33,11.20) ou designar em Ex 33,20-23, uma pessoa vista de costas. A “forma” distingue-se em todo o caso, da “face” do Senhor, que Moisés, como qualquer outro homem, não poderia ver sem morrer (Ex 33,20). Em lugar de “forma”, os textos grego e o siríaco têm “gloria” (cf. Ex 33,18.22).

A Bíblia do Peregrino (p. 249) comenta: Apesar das dúvidas, está muito clara no veredicto do Senhor a posição excepcional e única de Moisés, acima de qualquer profeta. É o administrador de plena confiança, tem acesso ao trato pessoal, “boca a boca” (expressão única); contempla e escuta sem mediadores (Dt 34,10). Em conclusão, não foi ele quem se arrogou a autoridade nem inventou sua missão.

A Bíblia de Jerusalém (p. 234) comenta: Isto responde à queixa de Aarão e de Maria (v. 2): ao modo comum do profetismo (v. 6: Maria é uma profetista, Ex 15,20) Deus opõe a intimidade que tem com Moisés (cf. Ex 33,11 e 33,20). Outros, como os juízes-anciãos receberam, por exceção, uma parte do seu Espírito (11,25). Sem dúvida, depois da morte de Moisés, Deus suscitará uma linhagem de profetas (Dt 18,15.18), porém Moisés permanecerá o maior (Dt 34,10), até João Batista, o Precursor da Nova Aliança (Mt 11,9-11p).

E, indignado contra eles, o Senhor retirou-se. A nuvem que estava sobre a Tenda afastou-se, e no mesmo instante, Maria se achou coberta de lepra, branca como a neve. Quando Aarão olhou para ela e a viu toda coberta de lepra, disse a Moisés: “Rogo-te, meu Senhor! Não nos faças pagar pelo pecado que tivemos a insensatez de cometer. Que Maria não fique como morta, como um aborto que é lançado fora do ventre de sua mãe, já com metade da carne consumida pela lepra”. Então Moisés clamou ao Senhor, dizendo: ”Ó Deus, eu te suplico, dá-lhe a cura!” (vv. 9-13).

A pena é a doença que acomete apenas a Maria, não a Aarão. O conceito de pureza no judaísmo não admite imaginar o sumo sacerdote com lepra (cf. Lv 13-14; 2Rs 5; Mc 1,40-45p; Lc 17,11-19), mas considera a mulheres impuras, não por falha moral, mas por causa do sangue da menstruação e do parto (sobre as mulheres, cf. 25,1-8; Lv 12,1-8, 18,1-30). A tradução Ecumênica da Bíblia (p. 212s) comenta a lei de Nm 5,11-31: A situação jurídica da mulher é claramente inferior à do homem; neste ponto, a legislação israelita progrediu apenas lentamente.

A enfermidade “coberta de lepra” aqui pode ser apenas uma espécie de vitiligem (Lv 13): afeção cutânea, caracterizada por aparecimento de manchas brancas circundadas de pigmento cor de cinza. A Bíblia do Peregrino traduz: “tinha toda a pele descolorida” e comenta (p. 234): A culpa de Maria está patente na pena sofrida; Aarão se junta a ela na confissão do pecado, pedindo perdão a Moisés. Não se pedem milagres, mas uma reconciliação familiar como pressuposto para que Moisés interceda: ele não pode curar contra a pena imposta pelo Senhor, só pode interceder.

Aarão chama seu irmão agora de “meu Senhor”, reconhecendo a posição extraordinária de Moisés, identificando quase com Deus que o instituiu como intermediário (cf. Ex 4,16: “Tu serás para ele um deus; Ex 7,1: “Te fiz como um deus para o faraó, e Aarão, teu irmão será o teu profeta”). Moisés é o grande intercessor, roga por Maria, como já intercedeu pelo povo pecador (Ex 5,22s; 8,4; 9,28; 10,17; 32,11-14.30-32; Nm 11,2; 14,13-19; 16,22; 21,7; Dt 9,25-29). Esta função é lembrada por Jr 15,1; Sl 99,6; 16,23; Eclo 45,3.

Na sua resposta (vv. 14-15, omitidos na nossa liturgia), o Senhor respondeu que Miriam teria que ficar “excluída por sete dias”, depois podia “retornar ao acampamento”. Os comentadores judeus sublinham este fato de que todo mundo, inclusive o Senhor (na coluna de nuvem), deva esperar Miriam. A importância que os textos atribuem à irmã de Moisés relaciona-se com o papel que ela desempenhou junto a Moisés quando ele era criança.     

A Nova Bíblia Pastoral (p. 168) comenta: Narrando que só Miriam é castigada, a oficialidade pós-exílica visa restringir a função profética somente aos homens do Templo (cf. 7,89); até então ela podia ser exercida por mulheres (Ex 15,20; Jz 4,4; 2Rs 22,14; Is 8,3). A espera por Miriam é sinal do reconhecimento popular (v. 15; cf. Ne 6,14).

Evangelho: Mt 14,22-36

Nos evangelhos desses dias, Mt segue o roteiro e o contexto de Mc 6,14-52. Depois do banquete da morte (martírio de João Batista, cf. leitura de sábado passado e de 29 de agosto), Jesus organiza o banquete da vida, a multiplicação dos pães (evangelho de ontem). Hoje ouvimos da caminhada de Jesus sobre a água. O evangelista com investigação histórica, Lucas (cf. Lc 1,1-4), omitiu esta narrativa simbólica. Mt, porém, acrescentou mais ainda o simbolismo: a tentativa de Pedro de caminhar sobre as águas.

(Depois que a multidão comera até saciar-se,) Jesus mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem, à sua frente, para o outro lado do mar, enquanto ele despediria as multidões. Depois de despedi-las, Jesus subiu ao monte, para orar a sós. A noite chegou, e Jesus continuava ali, sozinho (vv. 22-23).

Depois da multiplicação dos pães, Jesus queria estar só para rezar (cf. Jo 6,15) e “mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem, à sua frente, para o outro lado do mar” (cf. 8,18.23-28, onde “Jesus entrou no barco e os discípulos o seguiram”). Coloca-os no meio do mar e aí os deixa sós, enquanto ele sozinho “ subiu ao monte para orar a sós”. O monte é lugar próximo do céu, ou seja, de Deus (cf. 17,1-8p e os montes em 5,1; 24,3p; 26,30p; 28,16). Mt reforça a lembrança de Moisés e Elias no monte Sinai que assistiram uma teofania (Ex 19; 24; 33-34; 1Rs 19); Jesus fará sua manifestação (epifania, cristofania) em ação e palavra.

A barca, porém, já longe da terra, era agitada pelas ondas, pois o vento era contrário (v. 24).

Em 8,23-27p, Jesus estava com os discípulos no barco durante a tempestade e acalmou o mar e o vento. Outra vez, os discípulos têm que experimentar a oposição dos elementos, água e vento, e mais ainda a ausência do Senhor (cf. 1Rs 19,11). A palavra grega “agitada” é usada mais para pessoas, pode-se imaginar a comunidade (“barca”) dos discípulos como aflita, atormentada, perseguida. Água, vento tempestuoso e noite são metáforas por tribulações, medo e morte (água: Sl 18,16s; 32,6; 69,2s.15; noite: Sl 91,5; 107,10-12; tempestade: Sl 107,23-32; Jn 1s).

Pelas três horas da manhã, Jesus veio até os discípulos, andando sobre o mar (v. 25).

Aproxima-se a aurora, hora do auxílio divino (cf. Ex 14,24.27; 2Rs 19,35; Sl. 90,14) por volta da quarta vigília da noite entre 03 e 06h da manhã (cf. 13,35); para os cristãos é a hora da ressurreição de Jesus (28,1).

Nesta hora, Jesus foi até eles “andando sobre o mar”. Em Mc 6,48, Jesus queria “passar na frente deles” (cf. Lc 24,28), oferecendo as costas ao olhar (cf. a passagem da glória de Deus diante de Moises e Elias no monte Sinai/Horeb em Ex 33,18-23; 34,6; 1Rs 19,11). Conforme seu costume, Mt resumiu mais e tirou este detalhe.

Não se trata de uma passagem pelo mar a pé enxuto (Ex 14), nem pelos fundos do mar (Jó 38,16; Eclo 24,5), mas é um andar “sobre as águas”. Um sonho da antiguidade, não só dos judeus, mas de muitas culturas (cf. a epopéia mesopotâmica de Gilgamesh 10,71-77: o deus solar pode correr sobre as águas). É próprio de Deus caminhar sobre as alturas do mar (Jó 9,8; cf. Sl 77,20) e dominá-lo (cf. 4,41; Sl 65,8; 77,17; 89,10; 107,29; Eclo 24,5s).

Quando os discípulos o avistaram, andando sobre o mar, ficaram apavorados, e disseram: “É um fantasma”. E gritaram de medo. Jesus, porém, logo lhes disse: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!” (vv. 26-27).

Os discípulos não são capazes ainda de reconhecê-lo (detalhe comum nas aparições do ressuscitado, cf. Lc 24,16.31; Jo 20,15). Então Jesus se identifica: “Sou eu”. Refere-se, à primeira vista, ao lado humano de Jesus que os discípulos já conhecem. Mas é também a clássica frase da auto-apresentação de Deus (Ex 3,14s: Yhwh=“Javé” em grego: “Eu sou aquele que sou”; cf. Dt 32,39; Is 41,4; 43,10.13; 45,18s; 48,12; 51,12). Jesus a aplica a si mesmo em Jo 8,24.28.58 (cf. Jo 18,5-6). Mt (como já Mc) compreende esta narrativa como manifestação do ser secreto de Jesus, “Filho de Deus” (cf. 2,15; 3,17p; 4,3.5p; 8,29p; 11,27p; 14,33; 16,16; 17,5p; 21,37-39p; 22,2; 26,63; 27,40.43.53p; 28,19), daí a costumeira recomendação nos relatos de revelação sobrenatural: “Não tenhais medo” (cf. 1,20; 17,7; 28,5.10; Mc 16,6p; Lc 1,13.30; 2,10; Gn 15,1; 21,17; 26,14; 38,13; 46,3; Is 41,13; cf. 10; 43,1.3).

Então Pedro lhe disse: “Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água.” E Jesus respondeu: “Vem!” Pedro desceu da barca e começou a andar sobre a água, em direção a Jesus. Mas, quando sentiu o vento, ficou com medo e começando a afundar, gritou: “Senhor, salva-me!” Jesus logo estendeu a mão, segurou Pedro, e lhe disse: “Homem fraco na fé, por que duvidaste?” (vv. 28-31).

Jesus ainda não acalma a tempestade, mas Pedro lhe responde. Para os leitores, ele é o primeiro dos que foram chamados por Jesus (4,18; 10,2). Agora o homem quer fazer o que Deus faz; coisa tal impossível como transportar montanhas (21,21p). Mas o pedido de Pedro mostra sua fé no impossível, a sua confiança naquele que tem toda autoridade (todo poder) sobre o céu e a terra (cf. 28,18). Mas Pedro não age por impulso próprio nem tenta fazer o papel de mágico, mas age apenas por ordem do Senhor: “Vem”. Mas depois teve medo, não mais o medo de um fantasma sobrenatural, mas o medo de afundar. Como em Sl 69,2s.15, ele pede socorro: “Senhor, salve-me” (cf. o grito dos discípulos em 8,25). Nele, o leitor reconhece seu próprio medo diante das ameaças: morte, insegurança, descrença, inimizade, doença, culpa. Mas Jesus “estendeu a mão” (como já o fez em 12,49 sobre seus discípulos, sua nova família), se aproxima e salva no meio das dúvidas e fraquezas na fé (cf. 8,26; 16,8; 17,19s; 28,17).

Estes vv. 28-31 são próprios de Mt, mas podem se basear numa tradição como a aparição do ressuscitado diante de Pedro no mar (cf. Jo 21,7s, onde Pedro se atira no mar enquanto os outros discípulos ficam no barco). Nesta cena de coragem e fracasso em seguida, o narrador antecipa o comportamento de Pedro na paixão de Cristo (26,33-35.69-75). Mt destaca o papel de Pedro também em 16,17-19; 17,24-27. O evangelista já sabe do martírio de Pedro que se arriscou em Roma, seguindo Jesus no perigo e na morte da cruz, em 65 ou 67 d.C.

Assim que subiram na barca, o vento se acalmou. Os que estavam no barco, prostraram-se diante dele, dizendo: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!” (vv. 32-33).

Jesus subiu com Pedro na barca e “o vento se acalmou” (cf. 8,26). Em Mc, apesar da manifestação procedente dos pães, os discípulos continuam sem entender (Mc 6,52, cf. 8,17-21). Mas em Mt, eles “prostraram-se diante dele”. Este gesto, os judeus devem fazer diante de Deus (cf. os magos em 2,11), não diante de homens (cf. Est 3,1-6). Antecipando as profissões de Pedro em 16,16 e do centurião em 27,54, os discípulos o confessam “Filho de Deus”.

Mc assimilou a epifania dos pães à do mar porque em Jesus se manifesta o poder libertador de Deus, que já no êxodo saciou seu povo no deserto (Ex 16) e dominou o vento e o mar (Ex 14). A barca simboliza a Igreja, a comunidade. Mt, porém, destaca o papel de Pedro e convida o leitor para “transcendência”, superar seus limites, seus medos e sair do barco, arriscando-se ao seguir “em direção de Jesus”, com “fé” no poder salvador do “Filho de Deus”. Apesar de dificuldades, ventos e ondas contrários e da aparente ausência do Senhor, ele continua, como ressuscitado, presente no meio de nós e nos salva (Jesus é o “Deus conosco”, Emanuel, cf. 1,23; 18,20; 28,20).

Obs.: O paralelo mais próximo é uma história budista (Jataka 190): um irmão leigo queria visitar um mestre e chegou à beira de um rio; mas não havia balsa nem barca. “Impulsionado por pensamentos alegres em Buda”, o irmão andou sobre a água. “Mas no meio do rio, reparou as ondas; seus pensamentos em Buda se enfraqueceram e seus pés começaram afundar. Mas ele reforçou seu pensamento em Buda e continuou andando na superfície d’água”. As religiões hinduísta e budista têm uma tradição rica que fala em levitação na meditação ou voar sobre rios. É possível uma influência indireta desta tradição pré-cristã ao nosso texto bíblico, ou é uma simples convergência de experiências transcendentais. O diferencial cristão, porém, é o contexto: Para Mt, Jesus é o Filho de Deus que caminha em obediência ao Pai “à outra margem do rio” (para o “além”; cf. Elias e Eliseu em 2Rs 2). Não é qualquer caminho, mas o do amor e da obediência. O que segura na água, é a madeira da cruz.

Após a travessia desembarcaram em Genesaré. Os habitantes daquele lugar, reconheceram Jesus e espalharam a notícia por toda a região. Então levaram a ele todos os doentes; e pediam que pudessem, ao menos, tocar a barra de sua veste. E todos os que a tocaram, ficaram curados (vv. 34-36).

O evangelho de hoje termina com um resumo que serve de transição e ignora os conflitos anteriores. O judeu Jesus está no meio do seu povo simpatizante. Os sumários de curas são frequentes em Mt (4,24; 8,16; 9,35; 12,15; 14,14; 15,29-31; 21,14): assim o evangelista quer apresentar Jesus não só como um judeu fiel à lei e aos mandamentos, mas também o seu carinho e seu contato com o povo sofrido.

Mt retoma expressões de 4,24; 8,16; 9,20s, resumindo o relato de Mc 6,53-56. Os discípulos desembarcam em “Genesaré”; não se sabe se muito bem, onde fica este lugar que deu nome ao lago de Genesaré, chamado também de mar da Galileia ou de Tiberíades (cf. Jo 6,1 etc.); provavelmente está na margem oeste do lago perto de Magdala.

Como em 4,24, a notícia de Jesus se espalha para longe. Os homens da região levam a ele “todos os doentes”. Cheios de expectativa, estes querem “tocar a barra da sua veste”, como já fez a mulher hemorrissa em 9,20s, onde Mt especificou a roupa de Jesus: um manto com “barra” ou orla como judeus piedosos costumam vestir (cf. Nm 15,38-40; Dt 22,12). Tocar esta orla é um gesto de petição (Zc 8,23; 1Sm 15,27). Através do contato mediato do manto, acontece o contato profundo com Jesus pela fé. Esse é o contato que cura também aqui.

O site da CNBB resume: O fato de Jesus caminhar sobre as águas é causa de assombro para os seus discípulos, principalmente porque, segundo o livro de Jó, somente Deus caminha sobre o mar, de modo que este fato revela aos discípulos que estão diante do verdadeiro Deus que se fez homem e está no meio de nós, mas inicialmente a surpresa é tão grande que gera dúvida em seus corações que, depois de serem iluminados pela fé, os levam ao reconhecimento da pessoa divina que está diante dele. Assim também nós, que recebemos muitas graças de Deus, só o reconheceremos quando nossos corações forem iluminados pela fé, de modo que possamos superar o nosso assombro inicial.

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