08 de maio de 2016 – Tempo Pascal Ascensão do Senhor (Ano C)

1ª Leitura: At 1,1-11

A primeira leitura de hoje apresenta a ascensão do Senhor “quarenta dias” (At 1,3) após a Páscoa. Dessa apresentação procede nossa festa litúrgica da “Ascensão do Senhor”, mas a data certa seria a quinta-feira passada (40 dias após páscoa). No Brasil, porém, esta festa foi transferida para o domingo seguinte.

No meu primeiro livro, ó Teófilo, já tratei de tudo o que Jesus fez e ensinou, desde o começo, até ao dia em que foi levado para o céu, depois de ter dado instruções pelo Espírito Santo, aos apóstolos que tinha escolhido (vv. 1-2).

Os Atos se dirigem a mesma pessoa a quem o terceiro evangelho se dirigiu na introdução (Lc 1,1-4): “Teófilo”, talvez o patrocinador da obra dupla. Mas como o nome grego Teófilo significa literalmente “amigo de Deus”, pode ser um nome simbólico para qualquer leitor que procura a amizade com Deus.

O evangelista que chamamos de Lucas escreveu duas obras, o evangelho e em seguida os Atos dos apóstolos. O “primeiro livro” é o evangelho de Lc. Como todos os quatro evangelhos na Bíblia é uma obra anônima que posteriormente se atribuiu a uma pessoa do âmbito apostólico. A tradição cristã viu como autor dos Atos (e consequentemente do terceiro evangelho) um companheiro de Paulo, já que a segunda parte do Atos trata das viagens de Paulo, com trechos na primeira pessoa plural (“nós”). O autor escreveu no estilo e na língua grego mais sofisticados em todo Novo Testamento. Nas cartas de Paulo encontra-se entre os seus companheiros uma pessoa de boa formação: o médico Lucas (Cl 4,14, cf. Fm 24; 2Tm 4,10). Alguns, porém, pensam em Timóteo como autor dos At, porque os trechos escritos na primeira pessoa (nós) nos At começam depois da vocação de Timóteo em At 16.

O autor resume o conteúdo da sua primeira obra: o evangelho tratou de “tudo o que Jesus fez e ensinou, desde o começo, até ao dia em que foi levado para o céu”; desde o começo do ministério de Jesus, e mais precisamente desde o seu batismo (cf. 10,37; Lc 3,23). O evangelho iniciou com a infância de Jesus e terminou com sua ascensão em Lc 24,50-53. Os Atos a recontam no início. A ascensão de Jesus será designada pelos mesmos termos “arrebatado, (e)levado” em Lc 24,51 e At 1,11.22.

Não se mencionam aqui a paixão e a ressurreição que estão incluídas na ascensão. Esta se inicia já em Lc 9,51 com o início da viagem a Jerusalém. Esta viagem era parte central do evangelho e servia principalmente para o ensino dos discípulos que se destaca também aqui: “depois de ter dado instruções pelo Espírito Santo, aos apóstolos que tinha escolhido”.

Outras traduções possíveis: “que ele tinha escolhido pelo Espírito Santo” ou então: “ele foi arrebatado pelo Espírito Santo”. Já se menciona aqui o Espírito Santo, aqui relacionado ao ensino de Jesus (cf. Lc 4,14-30 etc.). Os Atos se destacarão pelo protagonismo do Espírito Santo na missão dos discípulos, por isso esta obra foi chamada o “Evangelho do Espírito Santo”.

Em Lc, os “apóstolos” são identificados com os Doze (Lc 6,13, cf. At 1,15-26) como em At 6,2.6. Esse modo de ver, próprio de Lucas, não é, sem dúvida o mais antigo (cf. a exceção em 14,4.14 e as cartas de Paulo que insiste em ser apóstolo também, cf. Rm 1,1; 1Cor 1,1; 2 Cor 1,1; 11,5 etc.).

Foi a eles que Jesus se mostrou vivo depois da sua paixão, com numerosas provas. Durante quarenta dias, apareceu-lhes falando do Reino de Deus. Durante uma refeição, deu-lhes esta ordem: “Não vos afasteis de Jerusalém, mas esperai a realização da promessa do Pai, da qual vós me ouvistes falar: ’João batizou com água; vós, porém, sereis batizados com o Espírito Santo, dentro de poucos dias’” (vv. 3-5).

Na cultura grega imaginava-se apenas a sobrevivência da alma, não a do corpo (cf. At 17,18s.32). Para Lc é importante, descrever para seus leitores gregos a ressurreição como fato perceptível, não como fantasma ou delírio (Lc 24,11), por isso as “numerosas provas” de ver, tocar e comer com o Ressuscitado (Lc 24,39-43, cf. Jo 20,20.24-29, 1Jo 1,1-3).

No final do seu evangelho, Lc parece concentrar em um só dia (“o primeiro da semana”, cf. 24,1.13.33.50) a ressurreição e a ascensão de Jesus (Lc 24,51), que são separadas em At 1,3 por ”quarenta dias”. Esses quarenta dias podem ser compreendidos como uma duração-tipo de iniciação ao ensinamento do Ressuscitado ou como o tempo-limite para lançar distantemente as bases da autoridade das primeiríssimas testemunhas.

Os “quarenta dias” marcam a presença visível do Ressuscitado no meio dos discípulos. Este número pode significar o tempo de preparação, como eram os quarenta anos do povo no deserto do Sinai antes de entrar na terra da “promessa”. Após ser batizado por João Batista, cujas palavras são citadas e adaptadas aqui (cf. Lc 3,16p; At 11,16), Jesus ficou quarenta dias no deserto (Lc 4,1p) antes de iniciar sua pregação sobre o “Reino de Deus” (Lc 4,43p), será o tema também da pregação apostólica (At 8,12; 14,22; 19,8; 20,25; 28,23.31).

No dia de Pentecostes, os judeus celebram a “entrega da Lei” no monte Sinai/Horeb. Moisés ficou com Deus quarenta dias no monte Sinai/Horeb (Ex 24,18; 34,28) e Elias caminhava quarenta dias para lá (1Rs 19,8). A presença de Moisés diante do Senhor antes de entregar a Lei ao povo pode ter inspirado este tempo de convivência com o Ressuscitado antes da entrega do Espírito.

Os apóstolos devem se preparar para a vinda do Espírito “dentro de poucos dias”, ou seja no “dia de Pentecostes” (2,1), palavra grega que significa 50 dias após a Páscoa (Tb 2,1; cf. cf. Ex 19,1s; Lv 23,15-21). Depois da ascensão de Jesus, os discípulos vão ficar em Jerusalém junto com as mulheres, e rezar por nove dias (a primeira “novena”, cf. 1,12-14). Neste período escolherão um duodécimo apóstolo em substituição de Judas. Os doze simbolizam as doze tribos de Israel.

Então os que estavam reunidos perguntaram a Jesus: “Senhor, é agora que vais restaurar o Reino em Israel?” Jesus respondeu: “Não vos cabe saber os tempos e os momentos que o Pai determinou com a sua própria autoridade. Mas recebereis o poder do Espírito Santo que descerá sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, e até os confins da terra” (vv. 6-8).

A Bíblia do Peregrino (pág. 2625) comenta: O breve diálogo revela o horizonte mental dos discípulos, mesmo depois da ressurreição, mas antes de receber o Espírito: uma restauração política de Israel (cf. Mt 17,11; Ab 20-21; Sf 3,19-20). Jesus se nega a predizer datas (Mt 24,36-37; Mc 13,32).

Lc quer esclarecer um mal-entendido: Jesus não veio para “agora… restaurar o reino em Israel” (cf. a restauração nacional em Ml 3,23; Eclo 36,1-17; Mc 9,12, cf. Lc 19,11; 21,8; 24,21; At 15,16s). Seria realizar o sonho de muitos em Israel, a libertação de Jerusalém (cf. 2,25.38), mas este sonho foi perseguido por meio violentos, por ex. atentados terroristas contra os romanos pelos zelotas (partido radical ao qual um dos doze apóstolos pertencia: Simão Cananeu, o zelota, cf. Lc 6,15; At 1,13)

Jesus não era um messias como Davi (cf. 1Sm 18,7), não veio para libertar Israel do poder estrangeiro, mas o povo de Deus do poder do pecado e da morte. Não queria derramar o sangue dos outros, mas o próprio (cf. Hb 3-9). Veio para proclamar o evangelho da misericórdia, não da violência; não queria acabar com os inimigos, mas com a inimizade (Ef 2,14; cf. Lc 6,27s.36; 23,34; At 7,60). Agora precisa anunciar e praticar este evangelho para além de Israel.

Só o Pai sabe a hora (cf. Mc 13,32p) da parusia (volta triunfal do Cristo do céu). Mas os discípulos vão receber o ”poder do alto” (Lc 24,49), o dom e a realização da promessa do Pai (cf. v. 4; Lc 24,49), o Espírito Santo que deve capacitá-los a evangelizar (como o mesmo Espírito desceu a Jesus na hora do batismo para dar início a sua pregação, cf. Lc 3,32-22p, 4,1-2.14.18).

A Bíblia do Peregrino (pág. 2625s) comenta: O Espírito tradicionalmente comunica força física (Jz 14,6.19) ou espiritual (Is 11,2-3). Os apóstolos a receberão para uma missão particular: ser “testemunhas” de Jesus. A palavra é densa de conteúdo, por sua frequência em todo o NT, em suas variações verbais e nominais. As etapas estão marcadas: Jerusalém, centro; daí, em movimento centrífugo, a Judéia, a semipagã Samaria, os pagãos “até os confins do mundo” (Is 48,20; 49,6; 62,11). Essa consciência de universalidade se deve ao narrador inspirado. Os discípulos levarão tempo para compreendê-la.

Jerusalém permanece no início da evangelização como era no início e no fim do evangelho (Lc 1,9; 2,22.38; 9,51; 24,33.47). Mas os apóstolos serão as testemunhas de Jesus “em Jerusalém, em toda a Judéia e na Samaria, e até os confins da terra”. Esta frase indica o plano de narração dos Atos: os apóstolos Pedro e João e o diácono Estêvão testemunharão em Jerusalém (caps. 2-7). Pela perseguição, o evangelho começa a se espalhar ao redor (8,1: “Judeia e Samaria”). Finalmente o missionário Paulo leva o evangelho para Europa (cap. 16) e termina em Roma (cap. 28), que será o novo centro da cristandade de onde o evangelho se expandirá “até os confins da terra”.

O testemunho prestado a Cristo é antes de tudo testemunho da sua ressurreição (1,22). Nos Atos, as “testemunhas” são antes de tudo os Doze (1,22; 10,41), mas outros também são igualmente chamados testemunhas, em sentido um pouco diferente (13,31; 22,20).

Depois de dizer isto, Jesus foi levado ao céu, à vista deles. Uma nuvem o encobriu, de forma que seus olhos não mais podiam vê-lo. Os apóstolos continuavam olhando para o céu, enquanto Jesus subia. Apareceram então dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: “Homens da Galileia, por que ficais aqui, parados, olhando para o céu? Esse Jesus que vos foi levado para o céu, virá do mesmo modo como o vistes partir para o céu” (vv. 9-11).

Aqui o autor descreve a ascensão mais detalhada como no final do evangelho (cf. Lc 24,50-53). Para os outros evangelistas, a ressurreição é a “glorificação” ou exaltação de Jesus, para “sentar-se à direita de Deus” (cf. Sl 110,1). Esta ascensão (cf. Is 52,13) é um acontecimento transcendente, não acessível aos sentidos. Lucas dramatiza o fato, inspirando-se em antecedentes bíblicos, em lendas apócrifas e talvez em modelos helenísticos.

No AT, a “nuvem” é um elemento das manifestações de Deus (cf. Ex 13,21s; 14,20.24; 16,10; 19,16; 24,15-18 etc.; cf. a expressão em Lc 1,35 “cobrir com sua sombra”, e o final da transfiguração em Lc 9,34p). O “Filho do homem” em Dn 7,13s está numa nuvem do céu para receber do Ancião (Deus) o poder do reino (cf. Lc 21,27; Mc 14,62p). No mundo greco-romano contavam-se ascensões de heróis ou reis: Hercules, Alexandre Magno, César Augusto, também do taumaturgo Apolônio de Tiana (que realizava muitas curas parecidas às de Jesus).

Diferente de uma viagem ao céu que atinge apenas a alma (ex. Maomé, num sonho subiu de Jerusalém para ver os sete céus e acordou depois), numa ascensão, a pessoa é “arrebatada/levada” com seu corpo todo, que some, carregado por um ventaval, por uma nuvem ou por anjos. Do AT se conhece a referência concisa a Henoc (Gn 5,24; Eclo 44,16) e o relato misterioso, quase litúrgico do rapto do profeta Elias na presença do seu discípulo Eliseu num carro de fogo (2Rs 2,1-13; Eclo 48,9.12; 1Mc 2,58).

Para Lc e seus leitores greco-romanos era importante quem foi elevado ao único Deus: é o messias Jesus; e os At explicam o porquê. A morte de Jesus foi um escândalo difícil de superar e recuperar fé e esperança (cf. Lc 24,19-21; cf. 1Cor 1,22-24). É de dentro da nuvem, ou seja, de dentro de Deus, o ressuscitado queria derramar o Espírito a seu povo em Pentecostes.

A Bíblia do Peregrino (pág. 2625) comenta: Lucas adora o esquema vertical, que coloca a divindade na altura celeste (Sl 123,1). Usa o verbo “elevar-se” (“epairo”, raro com este fim) e o corrente “levantar, elevar” (que corresponde ao hebraico “lqh”). Convoca dois personagens masculinos celestes e prefere a nuvem ao carro de fogo (“tomando as nuvens como teu carro”, cf. Sl 104,3). A cena visual se anima com diálogos e instruções… Anjos em figura humana são companhia costumeira em momentos solenes: o nascimento (Lc 2,9), a ressurreição (Mc 16,5).

Os apóstolos não devem “parados, olhando para o céu”, mas se colocar em movimento, assumir a missão para os diversos cantos da terra. Como designação de origem, “Galileia” não se aplica a todos; sim, como designação dos seguidores de Jesus.

O anúncio da volta é conciso, sem indicação alguma temporal. “Virá do mesmo modo”; pura afirmação do fato, garantida por duas testemunhas celestes (cf. Dt 19,15). Jesus, que doravante estará ausente, não cessará no entanto de estar presente à vida da Igreja: sua vinda (parusia) será, portanto, menos uma “volta” do que a manifestação final dessa presença permanente (cf. Mt 28,20).

 

2ª Leitura: Ef 1,17-23 (facultativas: Ef 4,1-13 ou Ef 4,1-7.11-13)

A segunda leitura apresenta um trecho da carta aos efésios que muitos exegetas consideram uma carta deuteropaulina, ou seja, escrita por um discípulo de Paulo em nome dele, porque difere do estilo do apóstolo que se conhece nas cartas autênticas (Rm, 1-2Cor, Gl, Fl, 1 Ts, Fm). Era comum na época, discípulos escrevendo em nome do mestre para dar continuidade no espírito.

O endereço “aos efésios” falta nos manuscritos mais antigos, e talvez esta carta tenha sida uma carta circular para várias comunidades. A carta aos colossenses (Cl) é parecida com Ef e talvez ambas tenham como autor (ou pelo menos referência) um certo “Epafras, servo de Cristo Jesus que sempre luta por vós na oração…” (Cl 4,21, cf. Cl 1,7). Nos vv. anteriores à nossa leitura de hoje diz, “não paro de agradecer por vós quando penso em vós nas minhas orações…”. Em seguida pronuncia três pedidos.

O Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai a quem pertence a glória, vos dê um espírito de sabedoria que vo-lo revele e faça verdadeiramente conhecer (v. 17).

Primeiro pedido: o carisma da sabedoria revelada (cf. Is 11,2s) é um dom do Espírito, não aquisição humana; revelação do mistério ou sensibilidade para “conhecê-lo”: a Deus Pai ou a Jesus Cristo? Pelos vv. que se seguem, pelo teor da carta e textos semelhantes (2Cor 5,16; Fl 3,10), podemos pensar no segundo: conhecer e reconhecer Jesus como Messias, como Filho de Deus Pai (Lc 10,21-22p).

Que ele abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos, e que imenso poder ele exerceu em favor de nós que cremos, de acordo com a sua ação e força onipotente (vv. 18-19).

Segundo pedido: iluminação (Cl 1,12). A “herança” só podemos ter em “esperança”; sendo futura, não vemos (cf. Hb 11,1). Mas uma luz celeste nos permite contemplá-la à distância (cf. Hb 11,9-13): Que ele abra o vosso coração à sua luz” (lit.: que ilumine os olhos do vosso coração), é expressão bíblica (cf. Sl 13,4; 19,9, cf. “na tua luz vemos a luz” em Sl 36,10; sobre o sentido da palavra “esperança”, cf. Cl 1,5).

O termo “santos” designa os membros do povo de Deus, os batizados (cf. 1,1). Mas a perspectiva celeste da carta e suas afinidades com a literatura do judaísmo tardio (ex. Qumran), podem evocar os anjos, a comunidade do céu (cf. Cl 1,12). Pensou-se ainda nos judeu-cristãos, representando o resto santo de Israel, ao qual os pagão-cristãos são associados (cf. Ef 1,12; Rm 15,25). O termo “santos” se generaliza para designar os cristãos em Ef e Cl suplantando o termo “irmãos”.

Ele manifestou sua força em Cristo, quando o ressuscitou dos mortos e o fez sentar-se à sua direita nos céus, bem acima de toda a autoridade, poder, potência, soberania ou qualquer título que se possa mencionar não somente neste mundo, mas ainda no mundo futuro (vv. 20-21).

O terceiro pedido (vv. 19-21) tem a ver com a festa de hoje e faz a transição para a cristologia. Compreender o “poder” extraordinário de Deus, com o qual realiza em Cristo seu projeto admirável (cf. Is 52,13-53,12): a ressurreição como vitória definitiva sobre a morte (1Cor 15,14); a exaltação “à sua direita” (Sl 110,1) como instauração do Reino de Deus (sentar no trono). “Acima de”: as quatro categorias “autoridade, poder, potência, soberania” (cf. Cl 1,16) representam a totalidade cósmica, que pode incluir anjos e exércitos celestes. Seu “título” supremo é “Senhor” (em grego Kyrios, como equivalente do hebraico Yhwh, cf. Fl 2,9-11).

Sim, ele pôs tudo sob os seus pés e fez dele, que está acima de tudo, a Cabeça da Igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que possui a plenitude universal (vv. 22-23).

“Ele pôs tudo sob os seus pés” alude a Sl 8,6s que o atribui simplesmente ao “filho do homem”, ao ser humano. Esse texto e Hb 2,6-8 estreitam a aplicação ao Homem por excelência, Jesus Cristo. Nas cartas paulinas, a Igreja é o corpo de Cristo (Rm 12,5; 1Cor 12,12), nas deuteropaulinas, Cristo é a “Cabeça da Igreja” (Cl 1,18; 2,9.19; Ef 2,22; 4,12-15).

A Bíblia do Peregrina comenta: A frase é densa e ambígua, por isso as interpretações diferem: a) A igreja sujeito plenifica, completa a Cristo, como o corpo completa a cabeça; Cristo plenifica tudo. b) A igreja está cheia de Cristo, o qual… c) A Igreja está cheia daquele que Deus plenificou com sua plenitude (Jo 1,14.16; Cl 1,18-19).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (pág. 2267) comenta:

Lit. “a plenitude (pleroma) daquele que é repleto totalmente em todas as coisas”. Como em Ef 3,19 e 4,13, a Igreja é chamada de plenitude de Cristo (cf. Cl 1,19…). Ela é repleta das riquezas da vida divina por Cristo, que se acha, ele mesmo, repleto por Deus, segundo a afirmação de Cl 2,9-10. Aproximamo-nos das expressões joânicas: o Pai está no Filho, nos discípulos; os discípulos, no mundo (Jo 17,11.20-26; cf. Jo 1,16).

Este versículo difícil é suscetível de receber várias interpretações. É preferível evitar a tradução de “pleroma” por “complemento” (a Igreja, complemento de Cristo). Além da nossa tradução, propõe-se ainda: “a plenitude daquele que repleta tudo em todos” (isto é, a Igreja, plenitude de Cristo que a anima e conduz à sua plenitude, cf. 4,13). Ou ainda: “a plenitude daquele que repleta tudo em todas as coisas” (isto é, a Igreja, plenitude de Cristo que, ele próprio, penetra o universo sob todos os aspectos, cf. 4,10).

 

Evangelho: Lc 24,46-53

Ouvimos hoje o final do evangelho de Lc. Neste último cap. 24, Lc parece concentrar em um só dia (“o primeiro da semana”, cf. 24,1) a ressurreição e a ascensão de Jesus (Lc 24,51), que são separadas em At 1,3 por ”quarenta dias”. Pela manhã, as mulheres encontraram o túmulo vazio (vv. 1-12), a tarde “nesse mesmo dia”, dois discípulos encontraram Jesus no caminho para a roça de Emaus e voltaram no início da noite a Jerusalém (vv. 13-35), onde Jesus aparece agora aos apóstolos reunidos (v. 36).

Em Lc, Jesus precisa convencê-los, que ele não é um “fantasma” ou apenas espírito, assim mostra suas chagas e come um pedaço de peixe para demonstrar que ressuscitou corporalmente (vv. 37-42, cf. Jo 20,19-29). Os leitores de Lc eram gregos e estavam costumadas em acreditar que apenas a alma após a morte continuava vivendo num submundo (hades); para eles era difícil de aceitar uma ressurreição da carne (cf. a reação dos filósofos em Atenas em At 17,32).

(Naquele tempo), disse (Jesus a seus discípulos:) “Assim está escrito: O Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia e no seu nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sereis testemunhas de tudo isso” (vv. 45-48).

Jesus se referiu novamente às Escrituras (AT) que falavam a respeito dele e abriu e “abriu a inteligência” dos discípulos para entenderem que tudo aconteceu segundo o plano de Deus: “Era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na lei de Moisés, nos profetas e nos salmos” (vv. 44-45). O evangelista Lc resume como nos vv. 25-27, mas não cita quais os textos da Bíblia Hebraica falam que “o Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia” (vv. 26.44; 9,22; 17,25). Só podemos pensar numa síntese de Dt 18,15.18 (cf. At 3,22); Is 42,1-4; 49,4.6; 50,4-9; 52,13-53,12 (citado em At 8,32-33); Dn 12,2s; Os 6,2; Zc 12,10; 13,7; Sl 22,30; 73,17.24s (cf. LXX: Sb 2; 2Mc 7).

A Bíblia do Peregrino (pág. 2542) comenta: Explica outra vez a Escritura, desta vez acrescentando à morte e ressurreição um dado: a pregação. Ou seja: a paixão e a ressurreição desembocam na pregação apostólica, universal, a partir de Jerusalém… Como um dia os enviou numa primeira expedição limitada (9,1-6), agora os chama de “testemunhas” (Is 43,10.12; 44,8). E nós falamos de “testemunho apostólico”.

Os discípulos que compreenderam as Escrituras (cf. v. 27) são agora constituídos “testemunhas” do Ressuscitado (v. 48). Em Jesus, todas as pessoas poderão ser refeitas. No “nome” de Jesus “serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sereis testemunhas de tudo isso” (vv. 47-48; Lc já pensa no roteiro do seu segundo volume, os Atos dos Apóstolos, cf. At 1,8).

No Credo, afirmamos que a Igreja é “católica” (= para todos, não só para judeus, mas para “todas as nações”, classes, idades, categorias etc.) e “apostólica” (nossa fé baseia-se no testemunho dos apóstolos) e transmite a “remissão dos pecados” (no batismo, cf. At 2,28; Jo 20,23).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (pág. 2035) comenta: Os vv. 46-48 apresentam todos os temas da pregação apostólica tal qual aparece no livro dos Atos: o emprego das escrituras (At 2,23-32; 4,10-11; 13,28-29.33-37; 26,22-23), a pregação da conversa e do perdão (2,38; 3,19; 5,31; 10,43; 13,38-39; 26,18), o papel de testemunhas conferido aos Doze (1,8; 2,32; 3,15; 5,32; 10,41; 13,31) … “Jerusalém” tem sido em Lc o ponto de partida da mensagem da salvação (1,5-25), a meta da missão de Jesus (9,51). Ela será o centro de irradiação da missa apostólica (At 1,8).

O site da CNBB comenta: Esta experiência comunitária da presença do Ressuscitado faz com que a comunidade se torne evangelizadora, testemunha de todos os valores pelos quais Jesus morreu e ressuscitou, se torne testemunha de que de fato Jesus é o Filho do Deus vivo, que cumpriu plenamente a vontade do Pai.

Eu enviarei sobre vós aquele que meu Pai prometeu. Por isso, permanecei na cidade, até que sejais revestidos da força do alto” (v. 49).

A promessa do Espírito (cf. At 1,4s; 2,33; Gl 3,14.22; Ef 1,13; Jo 1,33) é um anúncio de Pentecostes (cf. At 1,8; 2,33) preparando o relato de At 2. O Espírito é a “força” (poder) de Deus prometida, a mesma “força” (poder) de encarnação (Lc 1,35; cf. 4,14).

Então Jesus levou-os para fora, até perto de Betânia. Ali ergueu as mãos e abençoou-os. Enquanto os abençoava, afastou-se deles e foi levado para o céu. Eles o adoraram. Em seguida voltaram para Jerusalém, com grande alegria. E estavam sempre no Templo, bendizendo a Deus (vv. 50-53).

A Bíblia do Peregrino (pág. 2542) comenta: A glorificação de Jesus se expressa no símbolo espacial de ser levado ao céu. Como ele se concluiu o ciclo das “aparições”. O passivo (teológico) “ser levado, levantado” indica que o agente é Deus. É o Pai quem toma e o leva ao seu lado. Embora o verbo grego seja diferente, com ele se completa a “subida” iniciada em 9,51. A “benção” é sacerdotal (Nm 6,23) e real (2Sm 6,18; 1Rs 8,14.55).

Alguns manuscritos antigos omitem a menção à ascensão “e foi levado para o céu”, sem dúvidas por causa da dificuldade que há para conciliar esse dado em At 1,3.9 (onde Lc situa a ascensão quarenta dias mais tarde). Aqui, Lc quer exprimir que a exaltação/ascensão de Jesus é inseparável da sua ressurreição. A narração nos Atos faz da ascensão a conclusão das aparições pascais e o ponto de partida da missão apostólica.

Nesta conclusão do evangelho, o Ressuscitado abençoa os discípulos (cf. At 3,26), estes o adoram como o seu Senhor “bendizendo a Deus”. No v. 53, o evangelho termina no Templo, onde havia começado (1,8), com a alegria e o louvor divinos. O Templo, como casa de oração será por algum tempo vínculo de união com o AT e o judaísmo (At 2,46; 3,1 etc.). Chamar Jesus de “Senhor” (Kyrios) e render-lhe homenagem não contradiz o Deus do Templo. “Eles o adoraram (lit. prostraram)”; este gesto de homenagem régia e religiosa (cf. Mt 2,11; 14,32; 28,17) falta em alguns manuscritos importantes, mas um bom número deles sublinha o caráter litúrgico do texto, acrescentando “Amém”.

A Nova Bíblia Pastoral (pág. 1290) comenta: A ressurreição não é algo que tenha a ver com apenas com a dimensão espiritual, nem resulta de um delírio do grupo. Ele alcança o ser humano em sua totalidade, e o reconstrói na dignidade. Por meio das Escrituras, os discípulos compreenderão a radicalidade do compromisso de Deus com a vida humana, manifestado na ressurreição de Jesus. A missão se desenvolverá a partir desta certeza, com a força do Espírito (a “força do alto”) … A elevação de Jesus ao céu confirma definitivamente a fidelidade que ele manteve, ao longo de toda a sua trajetória, à unção recebida do Espírito para levar a Boa Notícia aos pobres (4,18). Os discípulos têm agora a missão de espalhá-la, começando por Jerusalém, a cidade cujos poderes Jesus enfrentou e venceu. Esse testemunho será descrito na continuação da obra, os Atos dos Apóstolos.

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