09 de Fevereiro de 2021, Terça-feira: Jesus respondeu: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos”.

5ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Gn 1,20-2,4a

Continuamos na leitura do relato da criação em Gn 1, hoje a segunda parte, que tem seu ápice na criação do ser humano. Esta narrativa de origem (mito) é mais um poema (com sete dias = sete estrofes) do que uma teoria científica. Para ser entendida naquela época (durante o exílio na Babilônia, 586-538 a.C.), a Palavra de Deus não podia falar nem na língua dos anjos do céu nem nos conceitos científicos de hoje, mas precisava-se adaptar às limitações da época (inculturação/encarnação da Palavra). Portanto, hoje precisamos traduzir esta Palavra para nossa língua e também para nossos conceitos atuais e científicos, p. ex.: Deus criou o universo através do Big Bang, “grande explosão” primordial há 14 bilhões de anos (ideia primeiramente apresentada por um padre católico, Georges Lemaitre) e criou a vida através da “evolução das espécies” (Ch. Darwin). O físico W. Thirring afirmou em 2011: As leis que a física nos ensina são afinadas tal maravilhosamente que nós achamos de vez em quando que elas sejam a borda de uma veste e que haja uma inteligência todo-poderosa por trás.

Para evitar interpretações fundamentalistas (“criacionismo” que nega a ciência e lê a Bíblia ao pé da letra; cf. Verbum Domini n.º 44), é importante descobrir qual era a intenção do autor bíblico, e a partir dali entender seu significado para hoje. Não se entende um texto sem o contexto.

Nos primeiros quatro dias deste poema da criação (cf. leitura de ontem: vv. 1-19), Deus criou a luz, separou as águas de cima e de baixo (céu e mar), fez surgir a terra com as plantas e colocou “luzeiros” (sol, lua, estrelas) no firmamento. Com isso, o autor desmistificou os deuses pagãos identificados com as forças da natureza (cf. Sb 13,1-9) e os astros (astrologia na Assíria e Babilônia, cf. 2Rs 17,6; 21,3.5; 23,5; 2Cr 33,3; Sf 1,5; Sb 13,2). A intenção do autor bíblico era exatamente isso, não contrariar as evidências (ciência), mas dizer que tudo que existe é criação de um único Deus.

Deus disse: “Fervilhem as águas de seres animados de vida e voem pássaros sobre a terra, debaixo do firmamento do céu”. Deus criou os grandes monstros marinhos e todos os seres vivos que nadam, em multidão, nas águas, segundo as suas espécies, e todas as aves, segundo as suas espécies. E Deus viu que era bom. E Deus os abençoou, dizendo: “Sede fecundos e multiplicai-vos e enchei as águas do mar, e que as aves se multipliquem sobre a terra”. Houve uma tarde e uma manhã: quinto dia.

Deus disse: “Produza a terra seres vivos segundo as suas espécies, animais domésticos, répteis e animais selvagens, segundo as suas espécies”. E assim se fez. Deus fez os animais selvagens, segundo as suas espécies, os animais domésticos segundo as suas espécies e todos os répteis do solo segundo as suas espécies. E Deus viu que era bom (1,20-25).

Com o quinto e sexto dia aparece vida, “seres animados … segundo suas espécies” (v. 20) pela criação dos animais e dos seres humanos. Correspondem-se os dias: 1º e 4º (a luz, e os seres luzentes: as lâmpadas do céu), 2º e 5º (o mar e o ar, e os seres que os povoam: peixes e pássaros), 3º e 6º (a terra seca, e seres que a povoam: os animais na terra; e ainda à tarde do 6º dia, o ser humano). Deus “abençoou” animais e homens com as mesmas palavras: “Sede fecundos e multiplicais-vos e enchei … a terra (ou: as águas do mar)” (vv. 22.28).

Papa Francisco afirmou que, para Igreja Católica, não há contradição entre fé e razão, entre o relato poético de Gn e a teoria científica da evolução das espécies: Quando lemos a respeito da criação em Gênesis, corremos o risco de imaginar que Deus era um mágico, com uma varinha capaz de fazer tudo. Mas não é assim. Deus criou os seres humanos e os deixou livres para se desenvolver de acordo com as leis internas que deu a cada um. […] A evolução na natureza não é incompatível com a noção de criação, pois a evolução exige a criação de seres que evoluem.

Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e segundo a nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, e sobre todos os répteis que rastejam sobre a terra”. E Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou: homem e mulher os criou.

E Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, sobre os pássaros do céu e sobre todos os animais que se movem sobre a terra” (vv. 26-28).

Primeiro preciso dizer que a palavra hebraica adam (Adão) geralmente significa a “humanidade”, “ser humano”. Para se referir a um indivíduo de sexo masculino, o hebraico usava outra palavra (ish). A humanidade não foi criada como um tipo de ser andrógino, mas consiste de “homem e mulher”, macho e fêmea e recebe a mesma ordem de se procriar como já antes os animais (v. 22). A ciência diz que a diferença sexual surgiu na natureza para misturar melhor os genes e criar mais variedade biológica do que os seres assexuais que só fazem cópias de si (bactérias etc.).

Observa-se que o ser humano não tem um próprio dia! Este detalhe o liga com as outras criaturas que povoam a casa comum desta terra. Também a missão de ser fecundo e multiplicar-se sobre a terra já era a missão dos animais (vv. 22.28). O homem é o “animal racional” na filosofia (Aristóteles), é apenas “descendente de macaco” na ciência (segundo a teoria da evolução de Darwin, tem um ancestral comum com os macacos de hoje). Sua razão que reconhece sua semelhança com as outras criaturas (no DNA etc.) devia preservá-lo do orgulho de se achar como um deus (cf. Gn 3; Is 14; Ez 28).

Mas o ser humano recebe uma missão própria: ser “imagem de Deus” (v. 27: como “homem e mulher”), e “submeter e dominar” a criação, isto não quer dizer destruir, mas governar com inteligência, amor e “cuidado” (Gn 2,15), não como dono, mas como administrador e bom pastor, ou seja, à “imagem” de Deus.

Assim a Bíblia coloca o ser humano no topo da criação, mas não desligado das outras criaturas. A ciência moderna, desligando-se da religião e baseando-se em experimentos, queria “torturar a natureza para ela revelar seus segredos” (F. Bacon); ajudou no progresso, no domínio sobre a natureza, mas também na ganância do homem para explorar a terra causando a crise ecológica que vemos hoje. São Francisco (séc. XII) vê nas outras criaturas “irmãos” (cf. o Cântico das criaturas: “irmão sol, irmã lua…”), e é o padroeiro dos animais e da ecologia.

Com frequência encontra-se a interpretação: a humanidade é dotada de alma e que a alma é feita à imagem de Deus. Mas esta ideia vem da cultura grega (o hebraico não tem uma palavra própria para “alma”) e está longe da intenção do autor. No Antigo Oriente, o rei mandava sua “imagem” (estátua ou símbolo) a partes remotas do reino, onde não podia estar presente em pessoa. Assim, o v. 26 coloca ser humano como imagem, ou seja, representante de Deus para governar a terra, como fiel administrador prudente e com cuidado (cf. Lc 12,42).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 23) comenta: A base dessa narrativa provém da Assíria ou da Babilônia, regiões que cresceram controlando as enchentes periódicas e que apresentavam a criação como resultado de uma luta entre a divindades da luz e da vida contra as divindades da escuridão e do caos. Exaltavam o rei, que era a única pessoa criada à “imagem e semelhança” das divindades vencedoras, com poderes de “submeter” e “dominar” a terra e o que nela vive. Os vv. 26 e 28, especialmente o plural no v. 26 (e 3,5.22; 11,7) são rastros destas liturgias oficiais. Na luta contra a opressão. Israel reinterpretou estas liturgias, apresentando a criação a partir de dez palavras de Deus/Elohim: “E Deus disse”. Afirma-se a dignidade de todas as pessoas, gêneros e etnias com imagem e semelhança de Deus.

O plural nas palavras de Deus (“Façamos nós… à nossa imagem”, v. 26) pode ser interpretada de diversas maneiras: plural de majestade (reis costumavam falar no plural; aliás, a palavra Elohim “Deus” já é plural, mas na Bíblia com um verbo no singular), ou Deus falando aos anjos, seus colaboradores (interpretação judaica), ou rastro de mitos politeístas (crença em muitos deuses, elohim). No Novo Comentário Bíblico São Jerônimo (p. 63s), R. Clifford e R. Murphy comentam: Na literatura antiga do Oriente Médio, os deuses decidem a sina da raça humana. A Bíblia aceita a ideia da assembleia, mas Iahwhe é sozinho é quem toda a decisão (Gn 11,3-7; Dt 32,8-9; 1Rs 22,19-22; Is 6; 40,1-11; Jó 1,2).

A tradição cristã viu neste plural uma expressão velada da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espirito), como também nas três pessoas que visitam Abraão em Gn 18.

E Deus disse: “Eis que vos entrego todas as plantas que dão semente sobre a terra, e todas as árvores que produzem fruto com sua semente, para vos servirem de alimento. E a todos os animais da terra, e a todas as aves do céu, e a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou todos os vegetais para alimento”. E assim se fez. E Deus viu tudo quanto havia feito, e eis que tudo era muito bom. Houve uma tarde e uma manhã: sexto dia (vv. 29-31).

Como alimento, homens e animais só recebem todas as plantas, sementes e frutas, “todos os vegetais” (não se menciona nem carne nem ovos nem leite). Não haverá derramamento de sangue. No paraíso, não se imagina violência ou derramamento de sangue, nem de animais (só haverá em cap. 4, depois da expulsão do paraíso). A carne de animais como cardápio é acrescentada depois de Noé salvar todas as espécies de animais na arca (Gn 9,3), mais uma afirmação da responsabilidade ecológica do ser humano.

Ao contrário de certas filosofias ou religiões que consideram o mundo material uma coisa má, “Deus viu que era bom”; esta avaliação da criação se repete nos vv. 10.12.18.21.25 e no resumo “viu tudo quanto havia… tudo era muito bom” (v. 31).

Neste cap. 1, a criação procede, sem esforço algum, da simples palavra de Deus (não pelos conflitos e batalhas de forças cósmicas divinizadas). Pelo fato de ser um relato do que Deus pretendia, ele é também um texto escatológico. Este universo sereno e belo, tudo subordinado aos seres humanos e estes, por sua vez, a Deus, é a forma que deverá existir no fim. A história do pecado, a partir do cap. 3, não pode desfigurar o intento original de Deus. A descrição do novo mundo de Deus em Ap 21-22 se baseia neste capítulo.

E assim foram concluídos o céu e a terra com todo o seu exército (2,1).

Como 1,1 era o título do capítulo sobre a criação, aqui se conclui. “O céu e a terra” já significava o universo, aqui acrescenta-se “com todo o seu exército”.

O “exército” pode se referir a tropas militares de Israel ou, como aqui, aos exércitos celestes, os astros numerosos e aos anjos, ou a todas as forças cósmicas (cf. Is 40,26; 45,12; 2Rs 17,16; 21,3.5; 23,5; 2Cr 33,3; Sf 1,5). Daí o título divino “Senhor (Javé) dos Exércitos” (hebr. Yhwh Sebaot), às vezes traduzido por “Senhor Todo-poderoso”; nossa liturgia missal traduz o de Is 6,3: “Senhor do universo” (no canto do Santo). Talvez a menção do “exército” seja uma transição à próxima narrativa que usa o nome de Javé (2,4b).

O título “Senhor (Javé) dos Exércitos” que aparece pela primeira vez em 1Sm 1,3.10 ligado ao ritual da arca da aliança em Silo (cf. 1Sm 4,4) e entra com ela em Jerusalém (no tempo de Davi: 2Sm 6,2.18; 7,8.27). É retomado pelos grandes profetas (salvo Ezequiel), pelos profetas pós-exílicos (principalmente Zacarias) e nos Salmos.

No sétimo dia, Deus considerou acabada toda a obra que tinha feito; e no sétimo dia descansou de toda a obra que fizera. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, porque nesse dia descansou de toda a obra da criação. Esta é a história do céu e da terra, quando foram criados (2,2-4a).

Para o autor de Gn 1 que faz parte da “tradição sacerdotal” (sacerdotes que escreveram durante o exílio), a ordem espacial corresponde à ordem temporal. O número “sete” já aparece na Babilônia como medida do tempo (sete dias correspondem a uma fase da lua; Israel e Babilônia tinham um calendário lunar). No exílio na Babilônia, o povo judeu estava privado do seu espaço sagrado (o templo de Jerusalém estava em ruínas), mas mantinha seu tempo sagrado (principalmente a celebração do sábado; cf. os escravos no Brasil, apesar de ter perdido seu chão africano, mantinham certas tradições para preservar sua identidade).

No mito babilônico Eluma Elish, que a autor bíblico conhecia no exílio, é narrada a criação de seis deuses e a escravização do homem, para que os deuses tenham um dia de descanso. O relato bíblico da criação é feita pela mesma ordem, começando na Luz e acabando no Homem, mas definindo o ser humano (não apenas o rei) como imagem de Deus e rejeitando a escravidão dos homens.

Outra vez, o autor bíblico toma posição contra a opressão do cativeiro, falando do “descanso no sétimo dia (sábado)” de Deus, sem escravizar os homens que são suas imagens. Só no outro livro de Êxodo o sábado reaparece: No deserto, já depois da libertação da escravidão doe Egito, Deus institui o sábado como dia de descanso contra toda escravidão (primeira lei trabalhista: Ex 16,23-30; 20,8-11; Dt 5,12-15). Aqui em Gn, Deus mesmo descansa e abençoa toda criação. O sábado é o dia da presença de Deus com suas criaturas, o dia que não declina (cf. Ap 22,5 e Lc 24,29), o dia do paraíso. A tradição sacerdotal continua depois com a genealogia em Gn 5, e com a narração do diluvio (6,9ss) que narrará como o comportamento do homem leva a criação, “tudo que era muito bom” (1,31), à quase completa destruição.

No Novo Testamento, Jesus não guarda o sábado da mesma maneira como era prescrita pelos fariseus que transformaram este dia, um sinal de libertação e bem-estar, num sinal de domínio e opressão proibindo a cura (cf. Mc 2-3: Jo 5; 9). Jesus responde: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc 2,27); “Meu Pai trabalha até agora e eu também trabalho” (Jo 5,17). Esta última frase, que se refere as curas de Jesus no sábado, pode-se interpretar também em vista da evolução das espécies: O mundo não está pronto ainda, Deus ainda está trabalhando. O mundo está em obras, em continua evolução.

Para os cristãos, o dia sagrado passa para o “primeiro dia da semana”, porque neste dia Jesus ressuscitou e se fazia presente na reunião dos discípulos (Jo 20; At 20,7). O primeiro dia é o “Domingo” (Dies Domini = Dia do Senhor) e significa a nova criação, pela qual “o Pai ainda trabalha e Eu também“ (Jo 5,17). Os relatos da ressurreição fazem alusão à criação da luz em Gn 1,3 (cf. Mt 28,1p; 2Cor 4,4-6; Ef 5,14).

 

Evangelho: Mc 7,1-13

Este é um dos capítulos centrais do presente evangelho. A longa discussão com os fariseus sobre as tradições e sobre o que é puro e impuro (vv. 1-23) contrasta com o sucesso de Jesus Cristo junto à multidão (cf. 6,53-56, evangelho de ontem; o mesmo contraste em 2,1-3,6; 3,20-35) e intercala-se, antes da partida de Jesus para terras pagãs (v. 24). Enquanto Mt copiou esta discussão, Lc a omitiu (ou porque mudou seu itinerário das viagens de Jesus ou porque queria apresentar a cultura judaica com mais simpatia aos seus leitores gregos, cf. Lc 1-2; 11,38)

Os fariseus e alguns mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus. Eles viam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado. Com efeito, os fariseus e todos os judeus só comem depois de lavar bem as mãos, seguindo a tradição recebida dos antigos. Ao voltar da praça, eles não comem sem tomar banho. E seguem muitos outros costumes que receberam por tradição: a maneira certa de lavar copos, jarras e vasilhas de cobre (vv. 1-4).

Mc também escreve para leitores greco-romanos, como se pode deduzir através desta longa explicação de costumes judaicos (vv. 3-4), dirigida obviamente a não-judeus. Os que se reúnem são “fariseus e alguns mestre da lei”, ou seja, doutores intérpretes oficiais da lei que “vieram de Jerusalém” com a auréola e autoridade que a capital acrescenta (cf. 3,22; Jo 1,19.24). Os doutores preservam a doutrina, os fariseus promovem a pratica, não só da lei de Moises, mas especialmente da muralha de interpretações e observâncias que concretizam esta lei e a defendem (no século II, os “rabinos”, mestres da lei, escrevem uma coleção destas prescrições chamada “mishna”, considerada uma cerca ao redor da lei). Com o propósito de formar um povo observante à lei e santo e consagrado ao Senhor (Lv 20,7; 19,1), os mestres da lei e fariseus tinham acumulado prescrições vinculantes, mas com isso impunham ao povo uma carga insuportável na vida cotidiana, apelando ilegitimamente para a vontade de Deus, em alguns casos anulando o sentido da lei. O exercício da religião tornou-se ritualista e externa e favorecia o orgulho dos observantes que desprezavam os demais (cf. Mt 23; Jo 7,49).

Entre as muitas observâncias, algumas se referem a lavatórios e abluções cotidianas (cf. Jt 12,7-9); baseiam-se em leis do culto para sacerdotes, mas os fariseus as levaram ao extremo tentando impô-las ao povo todo (Ex 30,18-21; 40,12.31-32; Lv 15; Nm 19; Dt 21,6; Eclo 34,25; Hb 9,10). Não se trata de higiene, mas de pureza ritual, diferente de uma purificação do coração (conversão; cf. Is 1,16; 4,4; Ez 36,25; Mc 1,4; Hb 6,2; 1Pd 3,21).

Os fariseus e os mestres da Lei perguntaram então a Jesus: “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?” Jesus respondeu: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos”. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens.” E dizia-lhes: “Vós sabeis muito bem como anular o mandamento de Deus, a fim de guardar as vossas tradições (vv. 5-9).

Os fariseus questionam Jesus a respeito da conduta dos seus discípulos (cf. 2,18.24). Não apelam à lei de Moises, mas à “tradição dos antigos”. Jesus responde com a profecia de Is 29,13 que denuncia duas coisas: o desacordo entre o interior e o exterior (“coração” e “lábios”) e a preferência de “preceitos humanos… vossas tradições” aos mandamentos divinos.

Com efeito, Moisés ordenou: “Honra teu pai e tua mãe”. E ainda: “Quem amaldiçoa o pai ou a mãe, deve morrer”. Mas vós ensinais que é lícito alguém dizer a seu pai e à sua mãe: “O sustento que vós poderíeis receber de mim é Corban, isto é, Consagrado a Deus”. E essa pessoa fica dispensada de ajudar seu pai ou sua mãe. Assim vós esvaziais a Palavra de Deus com a tradição que vós transmitis. E vós fazeis muitas outras coisas como estas” (vv. 10-13).

Jesus escolheu um exemplo que serve bem para os que vieram de Jerusalém, onde se encontra o Templo; refere-se ao quarto mandamento (Ex 20,12; 21,17; Dt 5,16; Lv 20,9; Pr 20,20; Eclo 3,1-16): “Honra (ou: sustenta) teu pai e tua mãe”. Mas os fariseus ensinam a prática do “corban”, o voto pelo qual uma pessoa consagrava a Deus os próprios bens, tornando-os intocáveis (“consagrado a Deus”) e reservados ao tesouro do templo (cf. Mt 15,6; 27,6). Aparentemente, Deus era louvado, mas na realidade, os pais idosos ficam privados de sustento necessário, enquanto o templo e os sacerdotes ficavam mais ricos. Esta prática já era criticada no próprio judaísmo antes de Cristo, tal vivo era o sentimento de solidariedade familiar. Os rabinos, embora reconhecendo o caráter imoral, consideravam válidos tais votos.

A crítica de Jesus, “assim vós esvaziais a palavra de Deus com a tradição que vós transmitis” (v. 13), não se dirige somente aos fariseus de então, mas também a nós. A Igreja Católica considera como revelação divina não só a “Bíblia”, mas também a “Tradição” (os dogmas, a lei canônica, as liturgias, os documentos dos papas e dos concílios, etc.). Em 1517, Martin Lutero criticou a “tradição” das indulgências e desencadeou a reforma protestante, aceitando “só a Bíblia, não a tradição (da Igreja)”. Sabe-se hoje, justamente pelas pesquisas começadas pelos luteranas e depois seguidos pelos católicos, que a Bíblia é também parte da tradição: é a parte escrita da tradição, aceita pela Igreja como inspirada do Espírito Santo. Então, não é tal fácil separar a tradição da Igreja da própria palavra de Jesus. Por isso é sempre preciso um estudo da Bíblia no contexto histórico para não cair num fundamentalismo (interpretação ao pé da letra) que desconhece e distorce a intenção do autor bíblico e pode levar ao fanatismo. Mas a advertência de Jesus permanece sempre atual: não esvaziar a palavra de Deus por tradições humanas, por ex. as normas eclesiais e devoções populares não devem esvaziar, mas corresponder às palavras profundas da Bíblia, atualizando e concretizando.

O site da CNBB resume: Jesus, citando o profeta Isaías, diz: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim”. Precisamos saber se somos cristãos de palavras ou de coração. O cristão de palavras é aquele que vive uma religiosidade de cumprimento de preceitos, normas e rituais, que em nada difere dos rituais de alquimia e bruxaria que existem por aí; o que muda é que no lugar de abracadabra, fala frases bonitas com efeitos especiais. O cristão de coração é aquele que ama a Deus, ama os seus irmãos que são templos dele e procura servir a Deus no serviço aos irmãos e irmãs, na valorização da pessoa humana e promoção da sua dignidade. O cristão de coração fala pouco e nem sempre sabe falar bonito, mas ama muito, é solidário, generoso e fraterno.

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