10 de fevereiro de 2017 – Sexta-feira, 5ª semana

 

Leitura: Gn 3,1-8

Continua a narrativa que apresentou a criação do homem (adam) a partir do pó da terra (adamá) no jardim de Éden e da mulher a partir da costela de Adão (2,4b-25). Não é um relato científico, mas poesia, uma narrativa simbólica sobre origens (mito) na qual o autor se inspira em associações de palavras da sua língua hebraica.

Na leitura de hoje, a harmonia do paraíso acaba e aparecem as ambiguidades da vida. Ligada a 2,4b-25, esta é uma das narrativas criadas na antiguidade para explicar a origem do mal, do sofrimento e da morte.

A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “É verdade que Deus vos disse: “Não comereis de nenhuma das árvores do jardim?” E a mulher respondeu à serpente: “Do fruto das árvores do jardim, nós podemos comer. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus nos disse: ‘Não comais dele nem sequer o toqueis, do contrário, morrereis.’” A serpente disse à mulher: “Não, vós não morrereis. Mas Deus sabe que no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal” (vv. 1-5).

A serpente serve aqui de máscara para um ser hostil a Deus e inimigo do homem. Nela a Sabedoria, e depois o NT e toda a tradição cristã, reconheceram o Adversário, o Diabo, Satanás (cf. Jó 1-2). É uma personificação do mal ativo, sedutor ou agressor. Ben Sirac não a menciona (Eclo 15,11-20: origem do pecado); Sb 2,24 fala da “inveja do diabo”; Ap 12,8-9 acumula nomes, identificando e interpretando: “dragão, serpente primordial, satanás, diabo, acusador” (“acusador” traduz o grego diábolos, o qual traduz o hebraico satan).

No Novo Comentário Bíblico São Jerônimo, R. Clifford e R. Murphy comentam: A serpente não é Satanás, ainda que tradições tardias tenham interpretado desta forma (p. ex. Sb 2,24). Ela é simplesmente uma criatura travessa, criada por Deus, dramaticamente necessária para estimular na mulher, o desejo de comer do fruto proibido.

Pauline A. Viviano (Comentário Bíblico I, p. 61) comenta: O que então a serpente representa? Em Canaã, a serpente era associada aos cultos de fertilidade. Sabemos que esses cultos eram fonte constante de tentação para Israel, que sucumbiu muitas vezes a ela, como indica o Antigo Testamento. A escolha de uma serpente para representar o tentador da humanidade é a maneira de o autor dizer: “Não se envolva com serpentes (isto é, os cultos de fertilidade); eles são causarão problemas, como fizeram para o primeiro homem e a primeira mulher” … A narrativa de Gn 3 não diz nada sobre o motivos da serpente para tentar o homem e a mulher. Na verdade, a fonte do próprio mal permanece um mistério em Gn 3. O que a narrativa nos diz é que a presença do mal no mundo deve-se à decisão da humanidade de se opor à ordem de Deus.

Primeiramente, a serpente distorce a bondade de Deus apresentando-o como alguém que proíbe tudo e tira a liberdade e o prazer do homem. Ainda hoje é uma tentação de apresentar e entender Deus assim (cf. as lutas de Jesus e de Paulo contra a interpretação rígida da lei pelos fariseus). Gramaticalmente a frase da serpente fica suspensa. Ela é voluntariamente ambígua, podendo igualmente significar: “Não comereis de todas as árvores do jardim?”, o que a mulher vai logo retificar.

“Não morrereis”. Com astúcia, a serpente faz da morte inevitável (2,17) uma morte imediata (3,4). Há uma aproximação desejada pelo autor, entre os seres humanos pelados, “nus” (´arummim) de 2,25 e o animal mais “astuto” (´arum) de 3,1. Seduzidos pela astúcia da serpente (v. 4), o homem e a mulher vão adquirir um saber que efetivamente lhes revelará a sua nudez, isto é, a sua fraqueza (v. 7).

Distorcendo a declaração de Deus, a serpente transforma uma advertência salutar em uma mentira. “Sereis como Deus (ou: deuses), conhecendo o bem e o mal”. Este conhecimento (cf. 2,9; leitura de quarta-feira) é o privilégio dos elohim (deuses), seres mais inteligentes e mais poderosos que o homem (3,22). O Senhor é o Deus único, o Elohim por excelência. O que o relato condena não é a posse do conhecimento, pois Deus o outorgará ao homem, mas a maneira como ele foi adquirido, pela violação da prescrição divina (cf. Ez 28,2).

Além disso, o nome hebraico de “serpente” coincide com “vaticínio”. O falso oráculo é arma da serpente contra Eva: tira a base da proibição de Deus, dando-lhe intenções escusas, promete como bem o que é mal, pois conhecer o mal por experiência é um mal (sobre semelhantes oráculos: Sl 14; Hab 2,18: “mestre de mentiras”). Em Jo 8,44 o diabo é o “pai da mentira”, enquanto Jesus é “verdade e vida” (14,6; cf. 8,32; 18,37s).

No Antigo Oriente, a serpente simbolizava potência (Canaã) e força política (Egito, cf. a tiara do faraó). Na epopeia babilônica de Guilgamesh (que influenciou também a narrativa do dilúvio), a serpente roubava ao herói a planta da imortalidade. A Nova Bíblia Pastoral (p. 25) comenta o contexto: No Egito antigo, a serpente na tiara do faraó simbolizava o olho do deus Sol, que com seu hálito podia destruir os inimigos. Em Canaã e Israel, a serpente era símbolo de Baal, deus da fertilidade das plantas e animais. Na religião oficial, legitimava a concentração do poder nas mãos do rei. Conflitos, violência e opressão se aninham nas estruturas sociais dominadas pelo faraó e pelos reis de Israel, e na acumulação de poder e riqueza que os sustenta, interferindo duramente na vida do povo: a dignidade diminui (vv. 7-8); a solidariedade enfraquece (vv. 9-13); as relações entre pessoas e animais, o parto e o trabalho, podem incluir violência e dominação, trazendo sofrimento e morte (vv. 14-19.22).

Por trás dessa roupagem mítica, pode-se ouvir a voz das comunidades camponesas e o anúncio dos profetas que denunciam o poder da serpente nas monarquias de Israel (1Rs 9,16; 16,31-32; 2Rs 18,4; Os 2,10-15). Ainda hoje muitos seguem a lógica da serpente, gerando tantos males que atingem a nós e a todos as outras formas de vida no planeta. Mas a última palavra não é da serpente. Javé veste o homem e a mulher e os coloca novamente para cultivar o solo, de ontem tinham sido tirados, dando-lhes assim a chance de religar-se com o projeto centrado na vida digna para todos.

A mulher viu que seria bom comer da árvore, pois era atraente para os olhos e desejável para obter conhecimento. E colheu um fruto, comeu e deu também ao marido, que estava com ela, e ele comeu (v. 6).

A árvore proibida é tentação sensível e intelectual, “atraente para os olhos e desejável para obter conhecimento” Diferente das outras árvores do jardim, esta dá acesso a uma perspicácia extraordinária que garantiria o sucesso. Paulo se refere em 2Cor 11,3: “Receio, porém, que, como a serpente seduziu Eva por sua astúcia, vossos pensamentos se corrompam, desviando-se da simplicidade devida a Cristo”.

“Deu também ao marido, que estava com ela”; a união entre o homem e a mulher volta-se contra as intenções do Criador. A tradição machista culpou Eva e com ela as mulheres (cf. v. 12; 1Tm 2,14). Mas Adão cedeu igualmente à tentação.

Porque a serpente se aproximou da mulher e não do homem? Porque a mulher é mais fraca (na sociedade patriarcal), mais curiosa, ou mais forte porque influencia o homem? Porque ela não ouviu da boca de Deus a ordem de não comer (em 2,17 foi dirigida só a Adão)? Mas o marido “estava com ela”. A razão pode ser simples alteração literária: serpente-mulher-homem, depois (Deus se dirige a) homem-mulher-serpente (vv. 8-15) e pronuncia o castigo à serpente-mulher-homem (vv. 14-19)

Então, os olhos dos dois se abriram; e, vendo que estavam nus, teceram tangas para si com folhas de figueira. Quando ouviram a voz do Senhor Deus, que passeava pelo jardim à brisa da tarde, Adão e sua mulher esconderam-se do Senhor Deus no meio das árvores do jardim (vv. 7-8).

Parte da propaganda falsa da serpente se cumpriu: “os olhos dos dois se abriram”, mas não por serem “como Deus”, mas reconhecendo sua própria condição humana, a fraqueza que precisa de proteção, a nudez que não é mais inocência (2,25), precisa-se esconder com roupas (em 3,21, Deus faz para o casal túnicas de pele).

É o despertar da concupiscência (cf. Tg 1,13-15), primeira manifestação da desordem que o pecado causa na harmonia da criação. A relação mútua se turba com a vergonha, e surge o encobrimento. E a relação com Deus se turba com a cautela e o medo, e acontece outro encobrimento (cf. leitura de amanhã; Ap 3,17s; Eclo 23,18s).

No conjunto de 2,4b-3,24, Deus é apresentado de maneira mais rústica, como oleiro (2,7.19), agricultor (2,8), médico (2,21s) e alfaiate (3,21); aqui como se fosse homem, Deus “passeava pelo jardim à brisa da tarde”. A “brisa” (ou: sopro, vento, espirito; rúah em hebraico, cf. 2,7.19; 1,2) é o meio ambiente em que o Deus da vida encontra o ser humano.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 28) comenta: Com este relato bem antropomórfico, no qual todas as imagens se encaixam e equilibram, o autor mostra as consequências da infidelidade do homem à palavra de Deus. O que o homem e a mulher descobrem é apenas a sua fraqueza e, a partir de agora, escondem-se um do outro, como se esconderão de Deus.

Evangelho: Mc 7,31-37

Depois da cura da filha de uma mãe na região de Tiro na Sirofenícia (atual Líbano; cf. 7,24-30; evangelho de ontem), Jesus continua atuando em território pagão.

Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o mar da Galileia, atravessando a região da Decápole. Trouxeram então um homem surdo, que falava com dificuldade, e pediram que Jesus lhe impusesse a mão (vv. 31-32).

O itinerário que Marcos traça medianamente coloca Jesus outra vez no território pagão da Decápole (cf. 5,1-20) que são dez cidades helenistas (de cultura grega) a leste do lago de Genesaré (chamado “mar da Galileia”).

Não explica quem são “eles” que trouxeram o deficiente auditivo, nem quem é o “povo”: judeus ou pagãos? Hoje não se fala mais “surdo-mudo”, mas apenas “surdo”, porque a dificuldade de falar vem da deficiência auditiva, o homem falaria perfeitamente se ouvisse, aprenderia. “Falar com dificuldade”, esta expressão só se encontra em Is 35,5 grego.

Pediram a Jesus que impusesse “a mão” (só aqui e em Mt 9,18; a expressão costumeira no NT é no plural: impor as mãos; cf. 5,23)

Jesus afastou-se com o homem, para fora da multidão; em seguida colocou os dedos nos seus ouvidos, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele (v. 33).

O doente está incomunicável em grande parte. Ao surdo, Jesus fala primeiro com gestos corporais, comprometendo o tato. O dedo transmite poder e é sinal dele (Ex 8,15; Lc 11,20); penetra e abre o ouvido (cf. Sl 40,7, texto hebraico). Os antigos atribuíam à saliva virtudes terapêuticas: a de Jesus é milagrosa. De fato, a saliva tem certa qualidade anti-inflamatória como se pode observar em animais lambando suas feridas.

Olhando para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abre-te!” Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade (vv. 34-35).

Erguendo os olhos ao céu indica “de onde vem o auxílio” (Sl 121,1 e 123,1). Este gesto é comum para oração (cf. 6,41). Agora significa abastecer-se da força divina, assim como o “suspiro” (cf. Rm 8,22-27). Este gemido funciona como súplica (cf. Rm 8,26).

A palavra aramaica Efatá pode indicar que a o relato nasceu num âmbito da Palestina. Mas no gênero literário da época greco-romana, fazia parte em relatos de curas que o protagonista curandeiro usava gestos estranhos e falava em línguas exóticas. Jesus fala uma palavra de sua língua materna (aramaica), “Efatá”, que o evangelista traduz para que seus leitores greco-romanos não a confundam com magia (cf. “Talita cum” em 5,41; “Hosana” em 11,9; ”Abba” – Pai em 14,36; “Eloi…” em 15,34). A fórmula “Efatá – Abre-te” entrou na liturgia antiga do batismo simbolizando a abertura da fé (cf. Rm 10,14s: a fé vem do ouvido; cf. o shema – “ouça Israel” em Dt 6,4).

Jesus pronuncia o mandato peremptório que “abre” e “desata, solta” (talvez a palavra alude a amarração por um demônio de doença, cf. Lc 13,16; o amarrado será solto, liberto). A cura é constatada logo, “imediatamente” (palavra preferida de Mc).

Jesus recomendou com insistência que não contassem a ninguém. Mas, quanto mais ele recomendava, mais eles divulgavam. Muito impressionados, diziam: “Ele tem feito bem todas as coisas: Aos surdos faz ouvir e aos mudos falar” (vv. 36-37).

Como em outras ocasiões, Jesus não quer a divulgação da cura. É o chamado “segredo do messias”, uma característica no Evangelho de Mc (1,24s.34.44; 3,12; 5,43; 7,36; 8,25.30; 9,9). Jesus não quer ser confundido com um messias guerreiro igual a Davi ou com um médico famoso que prolonga a vida dos doentes. A sua missão de messias é salvar o povo através da doação de sua própria vida, e isso só se revelará na cruz (cf. 10,45; 15,39).

Mas as pessoas “muito impressionadas” não conseguem guardar o segredo (cf. 1,45; 4,22) e prorrompem numa exclamação que recorda a ação criadora de Gn 1,31 e a profecia de Is 35,5-6: o criador ”tem feito bem todas as coisas”, o redentor restaura a bondade. Por Jesus, a criação caída será renovada inteiramente (cf. Ap 21,5 e o significado simbólico do primeiro dia da semana em Gn 1,3-5 e Mt 28,1p).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1939) observa certas semelhanças da cura do surdo em vv. 32-37 com a do cego em 8,22-26: Esses dois relatos, próprios de Mc e situados cada uma ao termo de uma série de episódios ligados a uma multiplicação dos pães, parecem tomar em Mc o valor de sinais de apoio para uma catequese inspirada em Is 35,5-6, aqui citada em v. 37. O texto de Is, citada em Mt 11,5p fala não só da cura dos surdos e mudos, ilustrada pela primeira narrativa, mas também da dos cegos, ilustrada pela segunda.

O site da CNBB resume: A comunicação é fundamental para que a pessoa possa viver em sociedade, e quem tem dificuldades para se comunicar pode facilmente ser excluído da comunidade à qual pertence. Quando vemos Jesus curar o surdo-mudo, ele não está simplesmente resolvendo o problema de saúde de alguém, mas está criando condições para que essa pessoa possa ser integrada na comunidade em que vive, possa também discutir os seus valores e deixar de ser uma pessoa com dependência, mas ser protagonista da sua história e da sua própria vida, portanto os benefícios que Jesus propicia ao surdo mudo vão muito além da simples cura.

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