10 de Março de 2019, Domingo: Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão,e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito.Ali foi tentado pelo diabo durante quarenta dias (vv. 1-2a).

1ª Leitura: Dt 26,4-10

Nas primeiras leituras dos próximos domingos da Quaresma percorremos a história da salvação. Hoje ouvimos um texto que já foi visto como profissão da fé (“credo”) do povo de Deus no AT (Antigo Testamento), como peça-chave para entender o Pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia, chamados também Torá, a Lei de Moisés) por conter o chamado credo histórico. Hoje está claro que o suposto credo não é uma peça antiquíssima, mas uma síntese tardia e madura com expressões típicas.

A cerimônia se compõe de um rito (vv. 1-4.10b), oferenda de primícias ao Senhor por meio do sacerdote, e de um texto recitado, que explica seu sentido (vv. 5-10a).

(Assim Moisés falou ao povo:) O sacerdote receberá de tuas mãos a cestae a colocará diante do altar do Senhor teu Deus (v. 4).

É uma festa anual, agraria;a oferta na cesta são as primícias da colheita. Antigamente, era celebrada nos santuários locais, seguindo o ritmo dos trabalhos no campo; o Dt introduz referências ao culto centralizado (cf. 12,2-12) pelo rei Josias (640-609 a.C.) em Jerusalém, “o lugar que o Senhor teu Deus houver escolhido escolheu para aí fazer habitar seu nome” (v. 2). Com isso, as primícias, antes ofertadas aos deuses e deusas da fertilidade em Canaã, são transferidas para Javé e agora ligadas ao êxodo e à história de Jacó/Israel (como outras festas também, cf.Ex 11,1-10; 12,15-20)

A Bíblia de Jerusalém (p.309) comenta: Assim como os primogênitos do homem e dos animais pertencem a Deus (Ex 13,11-16), as primícias dos produtos do solo também são consagradas a ele (Ex 22,28; 23,19; 34,26; Lv2,12.14; 23,10-17; Dt 18,4). Segundo Nm 18,12, elas voltam aos sacerdotes (cf. Ez 44,30). A oferta dos produtos da terra, que no antigo calendário religioso (cf. Ex23,16.19) está ligada às festas, de origem cananeia, da ceifa e da colheita, aqui está ligada a um acontecimento da história da salvação: a entrada na Terra Prometida (vv. 1.3.9-10). É ainda o tema do dom da Terra, que é central no Dt.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.303) comenta: Pelo título “o Senhor teu Deus”, o fiel reconhece a relação particular que Deus estabelece com o sacerdote, ao mesmo tempo que adere pessoalmente a este Deus (cf. 1Rs 17,12; 2Rs 2,14) … A cada ano, por ocasião da colheita, o cananeu celebrava uma festa em honra a Báal, divindade da fecundidade e da vegetação. Israel, porém, sabe que só deve dar graças a seu Senhor, de quem tudo recebeu, em particular esta “boa terra” (cf. 1,25…), ao longo de uma história na qual Deus manifestou seu poder. Por isto modifica o espírito dessa festa, e sua profissão de fé é então centrada sobre a ação de Deus nos acontecimentos, em especial durante o período privilegiado que é o tempo do Êxodo. Encontram-se outros resumos análogos em Js 24,2-13; Sl 105; 136, e, mais tardiamente, Jt 5,6-19 (cf. tb. as fórmulas ainda mais condensadas de Dt 6,21-23; 11,3-6 e 1Sm 12,8).

A Bíblia do Peregrino (p.340) comenta:Em outras culturas a oferenda das primícias, como festa agrária, incluiria a recitação de um mito de fecundidade, p. ex.: a descida do deus às profundezas da terra e seu retorno. Israel não recita um mito, mas uma história. O “credo” está elaborado num movimento alternado de aflição e salvação; errante – grande povo – oprimido – libertado.

Dirás, então, na presença do Senhor teu Deus: “Meu pai era um arameu errante,que desceu ao Egito com um punhado de gentee ali viveu como estrangeiro.Ali se tornou um povo grande, forte e numeroso (v. 5).

O v. 5 resume Ex 1,1-7 (cf. Gn 25-50): trata-se do patriarca Jacó (que ganhou o apelido Israel, o pai das dozes tribos,cf. Gn 32,29; 35,10; 35,32s; Ex 1,1-4) chamado aqui de “arameu”, como seus antepassados em Gn 25,20; 28,5; 31,20.24. A palavra traduzida por “errante” indica uma condição desamparo e risco, não evoca apenas o nômade, mas aquele que não encontra o seu caminho, como a ovelha “perdida” no deserto (mesma palavra em Jr 50,6; Ez34,4.16; Sl 119,176; cf. Lc 15,4-6). “Povo grande” é uma fórmula da promessa feita a Abraão (Gn 12,2).

Os egípcios nos maltrataram e oprimiram,impondo-nos uma dura escravidão.Clamamos, então, ao Senhor, o Deus de nossos pais,e o Senhor ouviu a nossa voz e viu a nossa opressão,a nossa miséria e a nossa angústia (vv. 6-7).

Os vv. 6-7 resumem Ex 1,8-14; 3,7. O “Deus de nosso pais” é o mesmo que escolheu os patriarcas; não é um deus novo (cf. Ex 3,16: “Javé/Senhor, o Deus de vossos pais”).

E o Senhor nos tirou do Egitocom mão poderosa e braço estendido,no meio de grande pavor, com sinais e prodígios.E conduziu-nos a este lugare nos deu esta terra, onde corre leite e mel (vv. 8-9).

Os vv. 8-9 resumem a libertação pelas pragas e pelo mar vermelho (Ex 7-15) e todo caminhada pelo deserto (Ex 16-Js) até a “terra, onde corre leite e mel” (3,8 etc.). Os verbos sair e entrar, tirar e conduzir (introduzir) articulam a libertação em seus dois momentos fundamentais.

A Bíblia de Jerusalém (p.310) comenta: A confissão de fé dos vv. 5-9 resume a história da salvação, centrada na libertação do Egito. Os mesmos elementos se encontram nas “confissões” de Dt 6,20-23 e, com desenvolvimentos, de Js 24,1-13 e Ne 9,7-25. A insistência no dom da terra onde mana leite e mel (v. 9) combina com esta declaração que está ligada à oferta das primícias. O silêncio sobre os acontecimentos do Sinai não significa que esta confissão remonte a uma tradição que os ignorasse. O texto não é muito antigo e a lembrança da promulgação da Lei não entrava em sua perspectiva.

Por isso, agora trago os primeiros frutos da terra que tu me deste, Senhor”.Depois de colocados os frutosdiante do Senhor teu Deus,tu te inclinarás em adoração diante dele (v. 10).

A Bíblia do Peregrino (p.340) comenta: A composição literária utiliza uma palavra ou raiz chave, que estabelece a unidade de sentido, articulando o todo e enlaçando as partes: é a raiz bw’ = entrar, chegar. O povo entra na terra prometida e faz entrar a colheita nos celeiros; entra processionalmente no santuário, reconhecendo que hoje entrou na terra; professa que o Senhor o fez entrar na terra e por isso faz entrar diante do Senhor as primícias. (A tradução brasileira não consegue reproduzir o processo literário original.).

Essas relações verbais significam: a entrada única e histórica na terra se atualiza cada ano na entrada da colheita; pela colheita, entra o homem cada ano na posse da terra. A liturgia repete em chave sagrada o movimento histórico: entrou na terra, entra no santuário. O homem responde a Deus, reconhece seu dom e dando o que recebeu.

 

2ª Leitura: Rm 10,8-13

A 2ª leitura enfatiza a Escritura (cf. evangelho de hoje) e a profissão da fé (cf. 1ª leitura) no único Deus. Dentro da carta aos Romanos, Paulo trata da eleição e do pecado de Israel. Judeus e pagãos tem o mesmo Senhor generoso que não rejeitou Israel (caps. 9-11). Com diversas citações bíblicas, Paulo continua argumentando sobre a importância da fé.

O que diz a Escritura?- “A palavra está perto de ti,em tua boca e em teu coração”.Essa palavra é a palavra da fé, que nós pregamos (v. 8).

A fé não pode ser apenas uma fachada. Deve haver coerência entre a fé confessada com boca e a vivida no coração. Na Bíblia, o coração não é apenas a sede das emoções, mas das decisões, quer dizer que a fé exige uma adesão total da pessoa. À adesão interior do “coração” corresponde a profissão de fé exterior, tal qual se realiza no Batismo.

A Bíblia do Peregrino (p.2427) comenta:A citação (Dt 30,12-14) pertence ao discurso final de Moisés em Moab, no qual inculca a observância da lei, já acessível pela revelação de Deus. No lugar da lei, Paulo coloca o Messias, e substitui a observância pela fé. A revelação é agora o grande arco de descida e subida: encarnação – morte e ressureição – exaltação (cf. Fl 2,6-11).

Se, pois, com tua boca confessares Jesus como Senhore, no teu coração,creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo.É crendo no coração que se alcança a justiçae é confessando a fé com a bocaque se consegue a salvação (vv. 9-10).

A Bíblia do Peregrino (p.2427) comenta:O paralelismo é cumulativo: o acordo do coração e da boca (o contrário de Is 29,13) pode condensar uma profissão de fé: que Jesus é o Messias, que Deus o ressuscitou. Se não brota da fé interior, o que os lábios pronunciam não é uma profissão de fé.

Pois a Escritura diz: “Todo aquele que nele crer não ficará confundido” (v. 11).

A Bíblia do Peregrino (p.2427) comenta:A citação de Is 28,16 se refere a uma pedra de fundação que traz essa inscrição: “quem nele se apoia não vacila”. O verbo crer em hebraico é derivação metafórica de apoiar-se (veja-se em outra terminologia o Salmo 62).

Portanto, não importa a diferença entre judeu e grego;todos têm o mesmo Senhor,que é generoso para com todos os que o invocam.De fato,“todo aquele que invocar o Nome do Senhor será salvo” (vv. 12-13).

O texto de Jl 2,32 hebr. = 3,5 gr. (cf. Sl 86,5; At 2,21),“todo aquele que invocar o Nome do Senhor será salvo”, se refere apenas a um resto de Israel em Jerusalém. O apóstolo Paulo amplia seu alcance a todos sem distinção. “Não importa a diferença entre judeu e grego”(cf. 1,16; 3,29s; Gl 3,28), poisentre judeus e pagãos não há maior diferença na salvação do que na condenação (cf. Rm 3,22).

“Todos têm o mesmo Senhor, que é generoso” (ou: enriquecedor). Para Paulo, o “Nome do Senhor” não é apenas Deus, Javé (hebraico Yhwh, traduzido por “Senhor”), mas pode ser aplicado ao próprio Cristo (cf. Fl 2,9-11). No pensamento dos primeiros cristãos, a obra do Cristo é mesmo obra de Deus: “Essa unidade de vocabulário mostrava bem a continuidade da aliança” (Leenhardt).

A Tradução Ecumênica Bíblia (p.2190) comenta sobre a fé pregada por Paulo:

A “fé” é o ato pelo qual o homem se confia a Deus, único autor da salvação em Jesus Cristo.

  1. I) A fé é resposta à Boa Nova da salvação anunciada pelos pregadores (Rm 10,14-15). Estes nada mais fazem do que transmitir uma mensagem que vem de Deus (Gl 1,11-12) e como tal deve ser recebida (1Ts 2,13). A fé com efeito, não assenta nem na sabedoria humana, nem no prestigio dos apóstolos, mas no poder de Deus (1Cor 2,1-5; 1Ts 1,5).
  2. II) O objeto próprio da fé é o mistério de Cristo, que Deus ressuscitou dos mortos e fez Senhor e único Salvador de todos os homens (Rm 4,24; 10,9; 1Cor 12,3; 15,1-11; Fl 2,8-11; cf. At 2,32; 17,31. Não há salvação fora de Jesus Cristo (Rm 3,32-26; 1Cor 1,30-31; Gl 2,16; Ef 1,3-11; cf. At 4,12). Crer é responder ao Evangelho da salvação (Rm 1,16; 1Cor 15,1-2; Fl 27; Ef 1,13).

III) Adesão da inteligência ao Evangelho, a fé é, ao mesmo tempo, submissão do homem a Deus na obediência (Rm 6,17; 2Cor 10,4-5; 2Ts 1,8; cf. At 6,7); assim Paulo pode falar da “obediência da fé”, isto é, dessa obediência que é a fé (Rm 1,5; 16-26). Na fé o homem se confia a Deus por saber que ele é fiel às suas promessas (Rm 3,3-4; 1Cor 1,9; 2Cor 1,18; 1Ts 5,24) e capaz de cumpri-las (Rm 4,21).

  1. IV) É pela fé que Deus justifica o homem (Rm 1,17; 3,21-26). A verdadeira justiça é aquele que vem “da fé” (Rm 10,6); que é dada “pela fé” (Rm 3,25), que proveniente de Deus, apoia-se “sobre” a fé (Fl 3,9) e não a que o homem pretenderia encontrar nas próprias obras (Rm 3,20-28; 9,32; Gl 2,16; 3,6-9; Fl 3,9). A justiça recebida pela fé é um dom gratuito do qual o homem não se pode orgulhar (Rm 3,27; 4,2-5; 5,17; Ef 2,8-9; At 15,11). E não é só na justificação que é um dom de Deus: a própria fé, pela qual se chega à salvação em virtude da livre eleição de Deus, é uma graça (2Ts 2,13). O ato de fé por excelência, a confissão do senhorio de Jesus (Rm 10,9), só são possíveis ao homem “no Espírito Santo” (1Cor 12,3).
  2. V) Não justificação pela fé, cumprem-se as promessas feitas a Abraão (Rm 4,1-25; Gl 3,6-18). A verdadeiro descendência de Abraão é o povo dos crentes, seja qual for sua origem, judaica ou pagã. Os pagãos são chamados agora à salvação com o mesmo título que Israel (Rm 1,16; 3,29, 9,30; 16,26; Gl 3,8; cf. At 15,11). Com isso, realiza-se a promessa de Gn 17,5: “Eu fiz de ti o pai de um grande número de povos” (Rm 4,17; Gl 3,8).
  3. VI) A justiça recebida pela fé é perdão dos pecados (Rm 6,11-14, Gl 5,24; Cl 2,12-13), reconciliação com Deus (2Cor 5,18-21; Ef 3,12; Cl 1,22-23), união com Jesus Cristo (Ef 3,17). Ela inaugura a vida do Espírito (Gl 3,2-5; 5,5-6; Ef 1,13-14). Paulo une a fé ao batismo, os crentes exprimem solenemente a sua fé, decisão do coração e confissão oral (Rm 10,10).

VII) Verdadeiro conhecimento (FL 3,8-10), a fé no entanto, não é, neste mundo, a luz perfeita (1Cor 13,12), só mais tarde ela desabrocha na visão clara (2Cor 5,7). Daqui até lá, ela está ligada à esperança (Rm 5,1-2; 1Cor 13,13; Gl 5,5); age por meio do amor (Gl 5,6). Fé, esperança e amor são muitas vezes mencionados juntos (Rm 5,1-5; 1Cor 13,13; Ef 1,15-18; 4,2-5; Cl 1,4-5; 1Ts 1,3; 5,8). Nesta vida, a fé é vivida nas provações (Fl 1,29; Ef 6,16; 1Ts 3,2-3; 2Ts 1,4) em meio as quais o crente deve permanecer firme (1Cor 16,13; Cl 1,23; 2,5-7). Ela não é um tesouro inerte, mas uma vida (Rm 1,17), que sem cessar deve-se desenvolver (2Cor 10,15; 1Ts 3,10; 2Ts 1,3).

 

Evangelho: Lc 4,1-13

No primeiro domingo da Quaresma ouvimos a tentação de Jesus no deserto na versão do evangelista do ano litúrgico. O evangelho mais velho, Marcos apresentou esta tentação em apenas dois versículos (Mc 1,12-13), mostrando que o messias Jesus, com o Espírito Santo recebido pelo batismo, é impelido para o desertoonde esteve por “quarenta dias sendo tentado por Satanás”. Mc não falou de jejum nem do conteúdo das tentações, mas indiretamente da vitória de Jesus trazendo de volta a situação do paraíso perdido por Adão (“vivia entre feras e os anjos o serviam”).

Mt e Lc que escrevem independentemente um do outro usam como fonte o evangelho mais velho, Mc, e mais uma fonte de palavras chamada Q (do alemão Quelle = fonte) que se perdeu na história, mas pode ser reconstruída através deste dois evangelhos. Esta fonte Q continha as três tentações (fome, segurança religiosa, poder) em forma de diálogo entre mestres da Escritura. Assim Mt e Lc unem os dados de Mc 1,12-13 com as três tentações.

Lc, porém, modificou a ordem (cf. Mt 4,1-11)de maneira que a terceira tentação termine por Jerusalém, no templo onde começa e termina seu evangelho (cf. 1,5-22; 24,53). Para ele, Jerusalém é o centro predestinado da obra da salvação (cf. 2,22-50; 9,31.51.53; 13,22s; 17,11; 18,31; 19,11; 24,47-49.52; At 1,8).

Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão,e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito.Ali foi tentado pelo diabo durante quarenta dias (vv. 1-2a).

Mencionando Adão (na genealogia 3,23-38) imediatamente antes deste episódio, Lcpode sugerir que o combate de Jesus com o diabo seja a réplica daquele do Gênesis (já insinuado por Mc 11,13). Como em Mt e Mc, Jesus é “guiado” pelo Espirito que recebeu no batismo (3,22p), mas Lc insiste ainda que Jesus possui o Espírito em toda a sua plenitude (“cheio”) para realizar a sua missão (cf. 4,14.18) e, antes do mais, para enfrentar o diabo num combate inicial.

A Bíblia de Jerusalém (p.1935) comenta: O particular interesse de Lc pelo Espírito Santo manifesta-se não só nos dois primeiros capítulos (1,15.35.41.67.80; 2,25.26.27), mas ainda no resto do evangelho, onde ele acrescenta diversas vezes, em relação ao texto dos outros sinóticos, a menção ao Espírito Santo (4,1.14.18; 10,21;11,13). Também se refere a ele amiúde nos Atos (At 1,8; cf. Mt 4,1).

Ao introduzir no mundo o pecado e a morte, sua consequência (Sb 2,24; Rm 5,12), Satanás tornou o homem cativo da sua tirania (Mt 8,29; Gl 4,3; Cl 2,8); estendeu ao mundo, do qual se tornou o “príncipe” (Jo 12,31), um domínio que Jesus veio suprir pela “redenção” (Mt 20,28; Rm 3,24; 6,15s; Cl 1,13-14; 2,15; ver ainda: Ef 2,1-6; 6,12+; Jo3,35+; 1Jo 2,14; Ap 13,1-18; 19,19-21).

A Bíblia do Peregrino (p.2462s) comenta:Antes de começar seu ministério, Jesus é submetido a prova (cf. Eclo 2,1-3; Tg 1,2-4). Cheio do Espirito e movido por ele (Rm 8,13), vai repetir a experiência de Moisés e do povo no deserto (Ex 16,35; 24,18; Nm 14,33), e de certa forma a de Adão no paraíso. Nem Adão nem o povo superaram a prova, pois não estavam repletos do Espírito Santo. É posto à prova pelo “Diabo” – que não figura no Êxodo – (compara-se 2Sm 24,1 com a versão do mesmo fato em 1Cr 21,1 e veja-se Jó 1-2). O Diabo apresenta e representa um projeto de ação oposto ao do Pai… A cena representa em forma dramática, um cenário despojado, a oposição dos planos humanos, “diabólicos” ao plano divino de salvação; encerram uma “sensatez terrena, animal, demoníaca” (Tg 3,15). Paulo descreverá a luta no interior do homem (Rm 7,15-22).

Não comeu nada naqueles diase depois disso, sentiu fome.O diabo disse, então, a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão.” Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem’” (vv. 2b-4).

A tentação da fome é mencionada e explicada em Dt 8,2s.O povo de Deus no deserto sofreu fome “durante quarenta anos” (Dt 8,2) e comer apenas o maná para aprender que “o homem não vive só de pão”. No original continua (e Mt 4,4 completou): “mas de tudo o que sai da boca de Deus” (Dt 8,3). O diabo argumentou com a palavra divina pronunciada no batismo (3,22)! Quer dizer: “Visto que tu és o Filho de Deus”.

A Bíblia do Peregrino (p.2462s) comenta: O jejum de quarenta dias é como o de Moisés (Ex 34,28) ou de Elias (1Rs 19,8). O Diabo apela ao título proclamado no batismo: “se és Filho de Deus”; supondo que esse título outorgue autoridade e poder para transmutar os elementos em proveito próprio (cf.Sb 19,18-22). Precisamente enquanto Filho, Jesus deve depender confiadamente do Pai (Lc 12,22-31).

O diabo levou Jesus para o alto,mostrou-lhe por um instante todos os reinos do mundoe lhe disse: “Eu te darei todo este poder e toda a sua glória,porque tudo isso foi entregue a mime posso dá-lo a quem eu quiser.Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração,tudo isso será teu.” Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás.’”(vv. 5-8).

“O diabo levou Jesus para o alto”; talvez uma elevação acima da terra, como se depara nas visões dos apocalipses judaicos. Em Mt 4,8 é um monte muito alto (Mt prefere montes; cf. Mt 5,1; 28,16).

A Bíblia do Peregrino (p.2462s) comenta: Olhar mais amplo que a visão de Abraão (Gn 13,14-15) ou de Moisés (Dt 34,1-4). O Diabo pretendo ser senhor do mundo e dispor dele à vontade (ver 2Cr 4,4), talvez alusão ao culto imperial. É um poder que compete só a Deus: “O Altíssimo é dono dos reinos humanos e dá o poder a quem ele quiser” (Dn 4,22; Jr 27,7). A condição do Diabo é prostrar-se (como em Dn 3,5), reconhecendo seu domínio e suas leis para triunfar. Na proposta, descobrimos o diabólico da ambição, do poder irresistível. Jesus responde concisamente, citando um texto fundamental e conhecido (Dt 6,13). Ele recebera o poder do Pai (Lc 10,22), não do Diabo, executando o plano do Pai; e não pretenderá a “gloria” mundana, e sim a do Pai.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.1977) comenta: Em Lc, o diabo se gaba e dispor do “poder” político sobre o mundo e propõem a Jesus, para que ele seja o messias temporal esperado pelos seus contemporâneos: mas o poder de Satanás está ameaçado (10,8) e a sua duração é breve (22,53): e Jesus não espera o seu poder a não ser de seu Pai (cf. 10,22; 22,29).

Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo,e lhe disse: “Se és Filho de Deus,atira-te daqui abaixo! Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito,que te guardem com cuidado!’ E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos,para que não tropeces em alguma pedra’”.Jesus, porém, respondeu: “A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’” (vv. 9-12).

Esta é terceira tentação em Lc (Mta apresenta como segunda). Em Lc, as tentações terminam em Jerusalém, onde a Paixão será a investida suprema do diabo (v. 13). Em todas as três tentações, Jesus responde com a “Escritura” (na época só o Antigo Testamento, o Novo ainda não existia). O diabo, porém, também usa a Bíblia, mas a distorce, querendo entender ao pé da letra sem contexto, querendo a morte em vez da vida (cf. o radicalismo de certos fundamentalismos).

A Bíblia do Peregrino (p.2462s) comenta:A terceira prova evolui a golpes de “argumentos da Escritura”. O Diabo apela de novo ao título de Filho de Deus, em virtude do qual e com um gesto inútil e suicida poderá provocar a intervenção divina prometida. Como confirmação, cita um grande salmo de confiança (91,11); é irônico que esse salmo canto o poder sobre as forças demoníacas. Jesus cita Dt 6,16. Pôr Deus à prova é pedir-lhe ou exigir dele milagres injustificados; como no exemplo clássico de Massa e Meriba (Ex 17,1-7; Nm 20,12-13; Sl 95,8).

Terminada toda a tentação,o diabo afastou-se de Jesus,para retornar no tempo oportuno (v. 13).

Foi uma prova no início da missão do messias (Cristo). A reação de Jesus o mostra em sintonia com a vontade de Deus e contra soluções simples e enganadores (expectativas do povo judeu da época mas também do homem contemporâneo), que ao final produzem dominação e violência. Mas Jesus não tenta manipular a Deus nem age no sentido de conseguir privilégios.

“No tempo oportuno”: ou “até uma ocasião”.Termina a prova (Hb 4,15), até outra ocasião no início da paixão: o “poder das trevas” (22,53) ou quando o “Satanás entrou em Judas” (22,3).A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.1977) comenta: Lc, que vai relatar numerosas vitórias de Jesus sobre os demônios, nas curas e nos exorcismos (4,41; 6,18;7,21;8,2;10,18;11,14-22…), não apresenta nenhum novo ataque de Satanás contra Jesus antes da Paixão.

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