10 de outubro de 2016 – Segunda-feira, 28ª semana

Leitura: Gl 4,22-24.26-27.31-5,1

Depois de Paulo ter apelado aos cristãos da Galácia para viverem na liberdade de filhos e filhas de Deus pela fé em Cristo e não mais voltar ao jugo da lei judaica (3,22-4,6: cf. Rm 8,14-17), ele continua argumentando com a Escritura, ou seja, o Antigo Testamento que seus adversários também reconhecem. Já se referiu à promessa e à fé de Abraão (3,6-18) que precedeu à circuncisão e à Lei de Moisés, agora trata dos dois filhos do patriarca como dois tipos diferentes da aliança (cf. 2Cor 3).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2193) comenta: Para herdar a promessa não é suficiente ser filho de Abraão (cf. Mt 3,9): é preciso sê-lo não como Ismael, mas como Isaac, isto é, em virtude da promessa (v. 23) de uma descendência que tem mais a ver com o espírito do que com a carne (v. 29) e, por esta característica, prefigura a descendência dos cristãos (v. 28; cf. Rm 9,6s). Este argumento básico é ilustrado por outras correspondências bíblicas, porém mais artificiais.

Com efeito, está escrito que Abraão teve dois filhos, um da escrava e outro da livre. Mas o filho da escrava nasceu segundo a carne, e o filho da livre nasceu em virtude da promessa (4,22-23).

Ponto de partida é o relato sobre os filhos de Abraão (cf. Gn 16 e 21). Paulo explora as oposições e relações. Sara, esposa legítima e livre, estéril, milagrosamente deu à luz um filho livre, Isaac. Já antes, Agar, concubina escrava, tinha dado à luz um filho escravo, Ismael, que é excluído da herança e expulso.

Ismael nasceu “segundo a carne”, segundo as leis ordinárias da natureza (cf. Rm 7,5 e o comentário de quinta-feira passada de Gl 3,3), sem uma intervenção especial de Deus em vista da realização da sua promessa. Isaac nasceu “em virtude da promessa”, a partir da palavra de Deus apesar da velhice de Abraão e da esterilidade de Sara, mas “para Deus nada é impossível” (a mesma resposta do anjo dado a Abraão e a Maria: Gn 18,14; Lc 1,37).

Esses fatos têm um sentido alegórico, pois essas mulheres representam as duas alianças: a primeira, Hagar, vem do monte Sinai; ela gera filhos para a escravidão (4,24).

Esta palavra “alegoria” indica bem a intenção do comentário de Paulo: não é uma demonstração lógica, é uma parábola; ser filho de Abraão segundo a carne, como o filho de Hagar, deixa o homem na servidão que caracteriza a antiga Aliança; ser filho de Abraão segundo o Espírito, como Isaac, liberta o homem e lhe dá acesso à Jerusalém que vem do alto, ao Reino que é a herança prometida (cf. 3,18.29; 5,21; 6,8).

Este argumento é quase desconcertante para nós, embora fosse válido para intérpretes da lei da sua época. Para os judeus e adversários judaizantes de Paulo, porém, era uma ofensa associar o monte Sinai e a cidade santa de Jerusalém “de agora” (v. 25) com a escrava Hagar. Talvez por isso, nossa liturgia tenha omitido o v. 25.

Os judeus se consideram descendentes de Isaac, filhos legítimos de Abraão, enquanto os árabes se consideram descendentes de Ismael (cf. Gn 16,11s; 17,20; 21,21; 37,25 etc.) que, segundo eles, foi o primeiro filho de Abraão nascido da sua segunda esposa Hagar, foi circuncidado junto com Abraão (17,23), quase sacrificado (não o Isaac de Gn 22) e construiu com seu pai a caba (um cubo preto com um meteorito dentro) como centro da romaria do islamismo em Meca.

Porém, a Jerusalém celeste é livre, e é a nossa mãe. Pois está escrito: “Rejubila, estéril, que não dás à luz, prorrompe em gritos de alegria, tu que não sentes as dores do parto, porque os filhos da mulher abandonada são mais numerosos do que os da mulher preferida. Portanto, irmãos, não somos filhos de uma escrava; somos filhos da mulher livre” (4,26-27.31).

Paulo sobrepõe às figuras femininas de Hagar e Sara a personificação clássica de Jerusalém como matriarca e esposa de Deus. Só que distingue uma Jerusalém empírica “de agora, atual” (v. 25), submetida à escravidão (ou vassalagem política?) e uma Jerusalém transcendente, “celeste” (v. 26; cf. Hb 12,22; Ap 21,2.10), destinatária da promessa de Is 54,1-3 (v. 27). Uma longa e rica tradição cristã proclama e canta a “Mãe Igreja”. Também o Papa Francisco usa com frequência este termo.

Os cristãos (“nos”) representam o filho da mulher livre, herdeiro da promessa de Abraão. Nossa liturgia omitiu os vv. 28-29 em que Paulo compara ainda: como o filho da livre foi perseguido pelo da escrava, assim também os gálatas são ameaçados pelos falsos irmãos (cf. 1Ts 2,14; Jo 8,33-37).

É para a liberdade que Cristo nos libertou. Ficai, pois, firmes e não vos deixeis amarrar de novo ao jugo da escravidão (5,1).

 “Libertou para a liberdade”, expressão no estilo hebraico para dar ao verbo libertar um sentido mais intenso; quer dizer que o Cristo nos libertou totalmente; não devemos nos deixar despojar deste dom (cf. 4,9), mas valorizá-lo (cf. 5,13). .

A Bíblia do Peregrino comenta: Como conclusão do que precede e introdução ao que se segue, ressoa essa frase lapidar, um dos grandes aforismos cristãos de Paulo (Jo 8,32.36). O escravo de alguém pode ser comprado por outro para ser guardado – mudança de amo, não de condição –, ou pode ser resgatado e posto em liberdade. Tal é a ação de Cristo.

Cristo nos comprou pelo preço do seu sangue na cruz (1Cor 6,20; 7,23; Rm 3,24s). Se alguém voltasse à circuncisão como exigem os adversários judaizantes de Paulo (cf. At 15,2) renunciaria à liberdade dada pela fé em Cristo (cf. Rm 6,15-18). Nisto a Lei e a fé não se podem conciliar (5,2-6). Os termos “escravidão” e “liberdade” continuam conduzindo todo o assunto do capítulo 5 (cf. leituras dos próximos dias)

“É para a liberdade que Cristo nos libertou”; esta frase foi escolhida como lema da CF 2014 contra tráfico humano.

 

Evangelho: Lc 11,29-32

Os ouvintes de Jesus lhe pediram um “sinal de céu” (v. 16). O “céu” é para os judeus contemporâneos uma maneira de designar Deus sem pronunciar o seu nome inefável (Dn 4,23; 1Mc 3,18 etc; cf. Lc 15,18.21; 20,4; Mt 3,2 etc.). “Os judeus pedem sinais” (1Cor 1,22), prodígios que exprimam e justifiquem a autoridade que Jesus reivindica (cf. Is 7,11-12; Lc 1,18; Jo 2,11). Os milagres que Jesus realizou não bastam, alguns atribuem suas curas até ao chefe dos demônios (v. 15), querem um sinal do céu à semelhança dos prodígios do êxodo ou de Elias.

Os incrédulos aqui não são os adversários (fariseus, saduceus ou escribas que querem tentá-lo, cf. Mc 8,11; Mt 12,38; 16,1), mas “outros” (v. 16) ou o povo (as multidões reunidas, cf. vv. 24.27; 8,4.40; 9,11.37 etc.).

Quando as multidões se reuniram em grande quantidade, Jesus começou a dizer: ”Esta geração é uma geração má. Ela busca um sinal, mas nenhum sinal lhe será dado, a não ser o sinal de Jonas (v. 29).

Jesus se queixa de seus contemporâneos que são “uma geração má” (e adúltera, cf. Mt 12,39), que reclama sinais, mas recusa os que lhe são dados. Já em Mc 8,12, Jesus afirma que esta geração não terá “nenhum sinal”, após ter realizado milagres que já apresentou como sinais (Lc 7,22; 11,20). Outra fonte (além de Mc) que Mt e Lc têm em comum (a chamada fonte Q), acrescenta “a não ser o sinal de Jonas” e em seguida a “rainha do sul” (v. 31; Mt 12,39-42). Aos seus contemporâneos que não querem acolhê-lo, Jesus opõe os pagãos de outrora que aceitaram a palavra de Salomão e de Jonas.

Com efeito, assim como Jonas foi um sinal para os ninivitas, assim também será o Filho do Homem para esta geração (v. 30).

O profeta israelita Jonas não fez milagres em Nínive, mas suas poucas palavras converteram esta grande cidade pagã (cf. Jn 3). Seu anúncio do juízo provocou o arrependimento dos pagãos e o perdão de Deus. É da mesma maneira que deve ser concebida a função e o sinal quanto ao “Filho do Homem”. Ora, o sinal é esse: a própria pessoa de Jesus, seus ensinamentos e milagres, mas como esta geração não quer acolhê-lo, em lugar de sinal se convocarão duas testemunhas de acusação que no final das contas deporão num juízo de comparativo de agravantes (cf. Ez 16,46-52).

Jesus ressuscitado é o “Filho do Homem” que virá para julgar as nações (cf. 17,22-29; 21,27; Mt 25,31s). Antes da ressurreição, os ensinamentos e curas de Jesus devem ser sinais suficientes para crer. Mas quando Lc escreve, depois da ressurreição, percebe-se nesta o sinal de Jesus por excelência (cf. o futuro: “será um sinal”). Mt 12,40 avançou ainda mais, explicando que Jonas foi sinal pelos três dias passados escondido no ventre da baleia (Jn 2,1), “assim ficará o Filho do Homem três dias e três noites no seio da terra.”

No dia do julgamento, a rainha do Sul se levantará juntamente com os homens desta geração, e os condenará. Porque ela veio de uma terra distante para ouvir a sabedoria de Salomão. E aqui está quem é maior do que Salomão (v. 31).

A rainha do Sul veio de Sabá (provavelmente da Etiópia ou do sul da Arábia, no atual Yêmen) para admirar a sabedoria do rei Salomão (1Rs 10,1-10), na Bíblia o sábio por excelência (1Rs 3; 5,9-14). Mas Jesus é mais sábio do que ele. Lc gosta de notar esta sabedoria de Jesus (2,40.52; 21,15) e evoca a sagração de Salomão na entrada messiânica de Jesus em Jerusalém (19,35-38; cf. 1Rs 1,38-40). Lc escreve para leitores do mundo greco-romano, onde a sabedoria é um valor supremo (filosofia).

No dia do julgamento, os ninivitas se levantarão juntamente com esta geração e a condenarão. Porque eles se converteram quando ouviram a pregação de Jonas. E aqui está quem é maior do que Jonas” (v. 32).

Em Mt, este v. vem antes daquele da rainha do sul, mas Lc quer terminar com a conversão dos pagãos, grande meta das viagens de Paulo no segundo volume de Lucas, os Atos dos Apóstolos. Os pagãos são representados pela “cidade muito grande” de Nínive (Jn 3,3b), mas Lc pode sonhar com a conversão de outra grande cidade, Roma, onde terminam os Atos (cf. 23,11; 28,16-31).

Se os pagãos em Nínive se converteram a partir de um dos “profetas menores”, quanto mais Israel devia se converter, pois Jesus é “maior do que Jonas”, ele é o “Filho do Homem”, o futuro juiz do mundo. Já João Batista era “mais que um profeta”, pelo seu papel escatológico (7,22-26p); Jesus mais ainda.

Ele supera a profecia e a sabedoria dos antigos (o AT e a filosofia; cf. 1Cor 1,22s: “Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em procura de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo e para os gentios é loucura”). Jesus é mais do que um rei, até o mais sábio, é mais do que o profeta Jonas; ele (presente na Igreja) converterá mais povos pagãos através da sua palavra e do seu exemplo (morte e ressurreição).

O site da CNBB comenta: Ainda hoje, para muitas pessoas, Deus deve manifestar-se constantemente para todos, pois somente assim o mundo poderá crer. Na verdade, essas pessoas querem uma demonstração evidente da existência de Deus e da sua presença no nosso dia a dia, porém, o Evangelho de hoje nos mostra que assim como Jonas foi um sinal para os ninivitas, Jesus é um sinal para nós por sua palavra e é nela que devemos crer e não ficar exigindo que ele fique realizando “milagres” para que fundamentemos a nossa fé.

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