11 de Agosto 2019, Domingo: Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o Reino (v. 32).

19º Domingo do Tempo Comum – Ano C

 

1ª Leitura: Sb 18,6-9

A 1ª leitura nos apresenta uma noite na qual se decidiu a salvação para uns a perdição para outros (cf. evangelho de hoje). O livro de Sb é o mais novo do AT, foi escrito por um judeu anônimo em grego na cidade de Alexandria por volta de 30 a.C.. Nos caps. 10-19, aborda a ação da Sabedoria na história do Êxodo. Alexandria fica na foz do rio Nilo no Egito onde havia começado a história do Êxodo com Moisés (por volta de 1250 a.C.).

Na época do autor de Sb, cerca de 200.000 judeus moravam nesta cidade de cultura grega onde haviam feito uma tradução grega do AT hebraico (chamada LXX, “Setenta”, pela lenda por setenta sábios). No ano 30, Alexandria começou a ser administrada pelos romanos. Para sobreviver, muitos judeus eram obrigados a assumir a cultura greco-romana e não se preocupavam em preservar a religião de origem, tema centra deste livro.

A Bíblia de Jerusalém comenta nossa leitura (p. 1235): Alegando um outro exemplo de correspondência entre falta e castigo (cf. 11,16), o autor anuncia ao mesmo tempo a exterminação dos primogênitos e o desastre do mar Vermelho (v. 5). Mas, em seguida, sua atenção se fixa sobre o primeiro episódio.

A noite da libertação fora predita a nossos pais, para que, sabendo a que juramento tinham dado crédito, se conservassem intrépidos. Ela foi esperada por teu povo, como salvação para os justos e como perdição para os inimigos (vv. 6-7).

“A noite”, nossa liturgia acrescentou “da libertação” (cf. Ex 12,42); lit. “Aquela noite”, formula consagrada na lembrança hebraica (hallayla hazzé) e definida pela liturgia pascal com seu compromisso e pela ação da palavra vingadora. Esta noite de cantos hebreus em memória dos antepassados, foi ao mesmo tempo noite de lamento e terror para os egípcios

“Predita a nossos pais”, quer aos patriarcas, cujos descendentes de Deus prometera livrar da servidão do Egito (Gn 15,13s; 46,3-4), quer aos hebreus do Êxodo a quem Moisés instruiu, com antecedência, sobre a noite pascal (cf. Ex 12,21-28).

“Para que… se conservassem intrépidos”. Outras traduções possíveis: “pudessem recobrar coragem”, ou: “alegrar-se com toda segurança.”

Com efeito, aquilo com que puniste nossos adversários, serviu também para glorificar-nos, chamando-nos a ti (v. 8).

Menosprezando os egípcios e exaltando os hebreus, refere-se às pragas no Egito; a última foi a morte dos primogênitos, da qual o israelitas foram preservados (pelo sangue do cordeiro pascal). Essa ambivalência de castigo e proteção já foi registrado em Ex 12,12s.

“Chamando-nos a ti”; a Bíblia de Jerusalém comenta (p. 1235): O extermínio dos primogênitos do Egito, a celebração da Páscoa e o Êxodo designavam definitivamente Israel como o povo de Deus (cf. Dt 7,6).

Os piedosos filhos dos bons ofereceram sacrifícios secretamente e, de comum acordo, fizeram este pacto divino: que os santos participariam solidariamente dos mesmos bens e dos mesmos perigos. Isto, enquanto entoavam antecipadamente os cânticos de seus pais (v. 9).

“Os piedosos filhos dos bons”, isto é, os descendentes dos patriarcas, “ofereceram sacrifícios secretamente”. Enquanto em Jerusalém os cordeiros pascais foram imolados no templo pelos sacerdotes, em Alexandria, o sacrifício deve ter acontecido em cada casa, como no tempo de Moisés, quando os adversários eram os egípcios (cf. Ex 12). Na época de Sb são a cultura grega e a opressão romana que ameaçam a tradição judaica.

A Bíblia do Peregrino (p. 1569) comenta: A homenagem a Deus e o vínculo com a comunidade vão unidos. “Solidários”: a frase poderia ter valor de admoestação aos judeus infiéis do tempo do autor.

“De comum acordo, fizeram este pacto divino” lit. “estabeleceram, em comum acordo, a lei da divindade”. A Tradução Ecumênica (p. 1707) comenta: O autor parece fazer remontar a esse momento do Êxodo as leis sobre a participação de todas as tribos na Conquista (Nm 32,16-24) e sobre a partilha dos despojos (Nm 31,27; Js 22,8).

2ª leitura: Hb 11,1-2.8-19 (ou 1-2.8-12)

 3ª semana sábado imp. Leitura: Hb 11,1-2.8-19

As 2ª leitura do domingo de hoje e dos próximos é tirada da parte final da carta aos hebreus. Não é propriamente uma carta (apenas tem recomendações no final e uma despedida, cf. 13,22-25), mas uma pregação, uma “palavra de exortação” (13,22). Imaginou-se que seria endereçado aos hebreus, por conta da abundante uso da Escritura (AT grego, a Tradução dos Setenta, LXX), mas falta as indicações de autor e saudação inicial comum a todas as cartas de Paulo. A autor é um anônimo que tem conhecimento amplo da Sagrada Escritura e escreve (talvez da Itália, cf. 13,24) no final do séc. I.; M. Lutero propôs Apollo como autor porque este judeu eloquente de Alexandria, instruído por Priscila e Aquila (companheiros de Paulo) se encaixaria no perfil do autor (At 18,24-28; 1Cor 1,12; 3,4-11.22; cf. Tt 3,13). É o único escrito no NT que apresenta Jesus como (sumo) sacerdote.

Hoje entramos no amplo capítulo 11 que contém uma definição da fé, uma série de personagens exemplares, com ou sem comentário, e uma série de situações genéricas ou concretas. A denominador comum é a fé, como a entende o autor anônimo de Hb. Esta fé assemelha e reúne a todos, supondo que o leitor conheça os relatos bíblicos correspondentes.

 Esta maneira de passar em revista os personagens do Antigo Testamento é comum na tradição judaica: em versão mais ampla o elogio dos antepassados para a glória de Deus em Eclo 44-50; em versão reduzida, Sb 10 emprega como denominador comum a “sabedoria”, omitindo os nomes como que desafiando o leitor (cf. ainda Jt 8,25-27; 1Mc 2,51-64).

A fé é um modo de já possuir o que ainda se espera, a convicção acerca de realidades que não se veem (v. 1).

Aos seus leitores, desanimados pelas perseguições (cf. 10,32-34), o autor explica que a fé é totalmente orientada para o futuro e liga-se somente ao invisível. Este v. 1 tornou-se uma espécie de definição teológica da fé, “posse antecipada e conhecimento seguro das realidades celestes” (cf. 6,5; Rm 5,2; Ef 1,13s). Mas esta definição da fé não é tão clara, contém dois substantivos que admitem interpretações objetiva ou subjetiva.

– “Hypóstasis”, aqui traduzido por “modo de já possuir”, é a garantia oferecida ou a confiança experimentada.

– “élegchos”, aqui traduzido por “convicção”, é a prova da promessa ou a esperança suscitada.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2361) prefere a interpretação objetiva desses dois termos:

O primeiro, pode significar “substância” (Crisóstomo, Agostinho, Tomás de Aquino: a fé confere existência em nós aos bens espirituais esperados), ou então “garantia, título de posse” (Gregório de Nissa, Calvino, alguns modernos); abundantemente atestado nos papiros, este segundo sentido parece ser aqui o mais provável. Todavia muitos preferem a ele o sentido subjetivo de “firme confiança” (Erasmo, Lutero, Zwínglio e numerosos modernos). Quanto ao segundo termo (“meio de conhecer”), também se propõe para ele um sentido subjetivo: “convicção íntima”, embora o sentido normal seja “argumento, prova, meio de saber”. Os padres gregos insistem na evidência que a fé nos dá, visão do invisível (cf. 11,27).

A Bíblia do Peregrino (p. 2885s) prefere a interpretação subjetiva:

Por todo o contexto, parece preferível a interpretação subjetiva, pois se trata de atitudes fundamentais, provocadas e sustentadas por algo objetivo, isto é, a promessa de Deus. Dessa forma, a fé da qual o autor fala, exceto no primeiro artigo, se parece mais com a esperança.

O processo é lógico: precede uma promessa de Deus, o homem confia nela (fé) e espera. Uma tradução um tanto livre pode ser: a posse do que se espera, a percepção do que não se vê. Não se vê, porque é futuro; e segundo os judeus, o futuro fica às costas (cf. 2Cor 4,18). O “invisível”, não manifesto, é aqui o que não existe ou o caos que não tem forma evidente (cf. v. 3).

O autor de Hb é feliz ao pôr em relevo o caráter paradoxal da fé, que possui sem apreender, que conhece sem ver (cf. Jo 20,29). Definindo a fé de forma impessoal, o autor a coloca em correlação com a esperança: anela o porvir e o invisível. Como o apóstolo Paulo, em Rm 8,24-25; 1Cor 13,12 e 2Cor 4,18, o autor de Hb opõe o que é atual, realizado, ao que ainda não o é. Em outros trechos do NT, encontramos pontos de vista diferentes que completam este sentido. Paulo apresenta a fé como relação pessoal entre os crentes e seu Senhor. Tiago afirma a insuficiência de uma fé puramente conceitual e insiste na vinculação necessária da fé com as obras (Tg 2,14.26).

Foi a fé que valeu aos antepassados um bom testemunho (v. 2).

O leitor moderno também tem de enriquecer a série de Hb 11 com a recordação ou repasse dos relatos bíblicos. Todos recebem um “testemunho” de aprovação. Um culto aos ancestrais ou elogios dos “antepassados” são comuns em quase todas as religiões e culturas. Os exemplos subsequentes mostrarão todo o poder de vida que a fé contém em si.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1477s) comenta: Fé não é simples repetição de uma doutrina, mas construção do presente, na certeza do que se espera. Fé indica a disposição de ir além daquilo que se vê e se toca. O que virá a seguir são exemplos de pessoas que agiram pela fé, lutaram pela justiça, não se acomodaram ao presente, certas de que a realidade podia ser mudada, e até passaram pela perda de honras e privilégios, prisões e martírio. Essas manifestações apontam para Jesus, que “iniciou e realizou a fé” (12,2). Cada personagem, por sua vida e destino, mostrou que a humanidade de seu tempo estava assumindo caminhos ilusórios e sem futuro. De alguma forma, todos andaram na contramão.

Foi pela fé que Abraão obedeceu à ordem de partir para uma terra que devia receber como herança, e partiu, sem saber para onde ia. Foi pela fé que ele residiu como estrangeiro na terra prometida, morando em tendas com Isaac e Jacó, os co-herdeiros da mesma promessa. Pois esperava a cidade alicerçada que tem Deus mesmo por arquiteto e construtor (vv. 8-10).

Dezessete vezes seguidas (a partir de v. 3), a expressão “Foi pela fé…” marca o início de cada frase (os vv. 3-7 foram omitidos pela nossa liturgia). A lista desses exemplos da fé começou pela criação (v. 3) e passou depois para “antepassados”, citando Abel (v. 4) e Enoc (vv. 5s). Em v. 7, Noé passou a ser o primeiro de quem age com esta fé que conhece o que não se vê.

Ao chegar a Abraão, o autor de Hb se detém mais (Abraão é personagem favorito também de Paulo, quando fala sobra a fé; cf. Rm 4; Gl 3-4). Apresentam-se vários episódios: o chamado para um destino desconhecido, abandonando a pátria (vv. 8-10; Gn 12); a confiança e esperança em Deus, que lhe prometia descendência numerosa (vv. 11-12; Gn 15 e 17); a grande prova do sacrifício deste filho único com Sara, Isaac (v. 17; Gn 22).

No ciclo de Abraão em Gn 12-25, o autor de Hb sublinha o sentido religioso da migração do patriarca. Sem narrar as etapas de sua vida nômade – Siquém, Betel, Hebron, Bersabeia, nem mesmo a estadia no Egito, – salienta o seu significado embora a promessa fosse estável, precário era o seu acampamento: “como estrangeiro… morando em tendas.”

“Pois esperava a cidade alicerçada que tem Deus mesmo por arquiteto e construtor” Esta cidade é Jerusalém celeste (cf. 11,16; 12,22; Ap 21,2.10-27), construída por Deus mais solidamente do que qualquer construção terrestre (cf. 12,27s). A cidade de Davi (2Sm 5-6) era a sua prefiguração (Sl 48,9; 87; Is 28,16; 54,11s; Tb 13,17).

Foi pela fé também que Sara, embora estéril e já de idade avançada, se tornou capaz de ter filhos, porque considerou fidedigno o autor da promessa. É por isso também que de um só homem, já marcado pela morte, nasceu a multidão “comparável às estrelas do céu e inumerável como a areia das praias do mar” (vv. 11-12).

Também a matriarca Sara é elogiada (cf. Is 51,1-2). O autor suprime o riso que, em Gn 17,17-19; 18,12-15; 21,1-7.9, tornou a aparecer por motivos diversos (o nome do filho “Isaac” significa: riso)

No texto grego, a expressão “capaz de ter filhos (posteridade)” aplicar-se-ia melhor a Abraão do que a Sara, “comparável às estrelas do céu e inumerável como a areia das praias do mar”. O autor emprega a citação de Gn 22,17, que junta os dois símbolos da multidão: a “areia” (Gn 13,16; 32,13; 41,19) e as “estrelas” (Gn 15,5; 26,4).

Todos estes morreram na fé. Não receberam a realização da promessa, mas a puderam ver e saudar de longe e se declararam estrangeiros e migrantes nesta terra. Os que falam assim demonstram que estão buscando uma pátria, e se se lembrassem daquela que deixaram, até teriam tempo de voltar para lá. Mas agora, eles desejam uma pátria melhor, isto é, a pátria celeste. Por isto, Deus não se envergonha deles, ao ser chamado o seu Deus. Pois preparou mesmo uma cidade para eles (vv. 13-16).

Aos episódios bíblicos de Gn, o autor de Hb acrescenta uma reflexão teológica, centrada na vitória sobre a morte. A fé (=esperança) de Abraão atinge mais além da morte (cf. v. 19). Sua capacidade generativa e a de Sara estão mortas, o herdeiro legítimo está condenado à morte. “Todos estes morreram” antes de alcançar o destino. A razão é que o destino é celeste e futuro, e todos eles caminham como “estrangeiros e migrantes (peregrinos e forasteiros)” rumo à pátria, que é uma cidade construída por Deus (vv. 10.16)

A fé (=esperança) permite “ver e saudar de longe”, como a uma cidade altaneira. Pode ressoar aqui a experiência de uma peregrinação a Jerusalém (cf. Sl 122).

  1. 15 se refere a Isaac, que não podia ir pessoalmente à terra dos parentes para buscar um noiva (Gn 24,6.8) e a Jacó que fugiu para lá (cf. o ciclo da sua peregrinação à casa do tio Labão e sua volta; Gn 27-33)

“Deus não se envergonha deles, ao ser chamado o seu Deus”. A Nova Bíblia Pastoral (p.1477s) comenta: Chama a atenção a vida itinerante dessas pessoas. Tal condição, com as dificuldades e conflitos que traz, possibilitou a eles servirem de exemplo: estavam em busca de uma pátria. A gente estrangeira e maltratada de Hebreus deverá compreender o que significa viver a fé em situações assim adversas. Seu testemunho é tão especial que, segundo o autor, o próprio Deus não se acanha de ser chamado o Deus dessa gente maltrapilha mas não acomodada, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó! 

Foi pela fé que Abraão, posto à prova, ofereceu Isaac; ele, o depositário da promessa, sacrificava o seu filho único, do qual havia sido dito: “É em Isaac que uma descendência levará o teu nome”. Ele estava convencido de que Deus tem poder até de ressuscitar os mortos, e assim recuperou o filho – o que é também um símbolo (vv. 17-19).

A grande “prova” do sacrifício do “seu filho único” com Sara (Gn 22) consistiu em Abraão obedecer sem perder a fé e a esperança de que Deus cumpriria o que já disse antes da prova em Gn 21,22: “É em Isaac (e não em outro) que uma descendência levará o teu nome” (Gn 21,12). Então, se Isaac morresse no sacrifício, Deus teria que trazê-lo de volta para dar descendência como prometeu.

O autor de Hb vê nisso “um símbolo”, lit. “uma parábola”: A salvação de Isaac figura a ressurreição geral e mesmo, segundo uma constante tradição exegética, a paixão e ressurreição de Cristo (filho único, lenha da cruz).  Isaac se converte em símbolo de todos os que serão ressuscitados pelo poder de Jesus Cristo. Em Rm 4,17, o apóstolo Paulo recorda a fé de Abraão no Deus que “faz viver os mortos e chama à existência o que não existe.”

No AT, a história do sacrifício de Isaac, que Deus parece exigir, mas não deixa executar (o substitui pelo sacrifício de um cordeiro, Gn 22), é uma “parábola” de que Deus não aprova sacrifícios humanos como aqueles que os povos vizinhos de Israel praticavam (cf. 2Rs 3,27; Jz 11,30-40; Mq 6,7 etc.).

Evangelho: Lc 12,32-48 (versão breve: Lc 12,35-40)

No Ev de Lc, a caminho a Jerusalém (caps. 9-19), Jesus ensina seus discípulos diversas coisas: por ex. sobre o amor a Deus e ao próximo, a oração e o desapega aos bens materiais (cf. os evangelhos do domingos passados). Depois da parábola do rico insensato (12,13-21) e das palavras sobre a providência divina (preocupar-se nem tanto sobre roupa e comida, buscar em primeiro lugar o reino de Deus, 12,22-31p), mais um apelo à confiança e dar esmolas (vv. 32-34), depois Lc e exorta à vigilância (v. 35) com três parábolas: servo e patrão (vv. 3-36), dono e ladrão (vv. 37-40), administrador (vv. 41-48).

O horizonte se alarga para a Igreja que espera a parusia (retorno do Senhor). Jesus ainda fala aos discípulos (v. 22); a exortação vale para todos, mas há diversos graus de responsabilidade. Pode se presumir uma contraposição: Ao rico insensato que foi surpreendido pela morte (vv. 13-21, evangelho de domingo passado), se opõem os discípulos que esperam pelo seu Senhor.

(Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos:) Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o Reino (v. 32).

Esta frase é próprio de Lc. O medo é obstáculo para permanecer no egoísmo e não partilhar com os outros, mas o Pai quer dar mais do que bens materiais, o Reino do Pai será para esse pequeno rebanho. Pode-se perguntar se o dom do Reino já está presente, ou se ele é prometido com certeza.

“Pequenino rebanho” pelo número dos discípulos durante a vida de Jesus; mais tarde, pequeno pela humildade. Por mais que cresça o número ou idade, sempre será filho de Deus. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2004) comenta o “rebanho”: Esta imagem pastoril é clássica no AT para representar o povo de Deus (Gn 48,15; Os 4,16; 13,4-6; Mq 2,12-13; 4,6-7; 7,14; Sf 3,19; Jr 31,10; 50,19; sobretudo Ez 34; Is 40,11; 49,9-10; Ps 23,1…; 95,7). Jesus aplicou a Israel (Mt 9,36; Mc 6,34), aos judeus pecadores (Mt 10,6; 15,24; Lc 15,4-6; 19,10), ou, como aqui, ao grupo dos discípulos (Mt 26,31; Mc 14,27; cf. Jo 10,1-16.27; 21,15-17; At 20,28-29; 1Pd 5,2-3).

Vendei vossos bens e dai esmola. Fazei bolsas que não se estraguem, um tesouro no céu que não se acabe; ali o ladrão não chega nem a traça corrói. Porque onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração (vv. 33-34).

Lc volta copiar da fonte Q (coleção de palavras de Jesus comum com Mt, cf. Mt 6,19-21). O Eclesiástico recomenda com certa agudeza: “Guarda esmolas em tua despensa”. Dar é guardar? (Eclo 29,12; cf. Sl 62,11; Jó 31,24-25).

A Bíblia do Jerusalém (p. 1955) comenta: O perigo das riquezas, unido ao conselho de se desfazer delas e de dar esmolas, é um traço característico da religião de Lc: cf. 3,11; 5,11.28; 6,30; 7,5; 11,41; 12,33-34; 14,13.33; 16,9; 18,22; 19,8; At 9,36; 10,2.4.31.

O mesmo convite a ajuntar para si um tesouro no céu se acha em 12,21.33; 18,22; cf. 16,9. Lc insiste na “esmola”, tema particularmente caro a ele que o acrescenta em 11,41; 12,33; 16,9; 19,8; At 9,36; 10,2.4.31; 11,29; 24,17) e em paralelo com Mt e Mc e 6,30; 18,2; 21,1-4. A palavra grega eleimosyne (esmola, ato de benefício) vem de éleos (compaixão, misericórdia; cf. a aclamação litúrgica: kyrie eleison)

A Bíblia do Peregrino (p. 2500) comenta v. 34: O proverbio passou para nossa língua. O coração na Bíblia é visto como o centro da vida consciente e livre: aquilo que alguém declara seu tesouro polariza seu interesse e alimenta sua atividade. Jesus convida a pôr nosso tesouro num lugar que transcenda o limite desta vida.

Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas (v. 35).

Esta frase introduz a mudança de tema do desapego à vigilância na parusia (vinda do Senhor). Estar cingido quer dizer estar disponível. O israelita se cinge e prende a túnica para caminhar, trabalhar ou lutar (1Rs 20,11; cf. Ef 6,14; Is 59,17). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2005) comenta: Como no v. 37 e em 17,8 é preciso arregaçar a aba da vestimenta no cinto para estar pronto para o trabalho. É também o modo de trajar o viajante, que os judeus adotam para celebrar a Páscoa (Ex 12,11) na qual esperam a vinda do Messias.

As lamparinas indicam que a cena acontece de noite (cf. Pr 31,17-18; Mt 25,1-13).

Sede como homens que estão esperando seu senhor voltar de uma festa de casamento, para lhe abrir em, imediatamente, a porta, logo que ele chegar e bater (v. 36).

Lucas não apresenta o patrão como noivo (cf. 5,34s e a parábola das dez virgens em Mt 25,1-13), mas como convidado a um casamento anônimo que pode chegar tarde. Abri-lo ao primeiro bater na porta expressa a vigilância extrema (cf. Ap 3,20).

Felizes os empregados que o senhor encontrar acordados quando chegar. Em verdade eu vos digo: Ele mesmo vai cingir-se, fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá. E caso ele chegue à meia-noite ou às três da madrugada, felizes serão, se assim os encontrar! (vv. 37-38).

A reação do patrão é inverossímil (cf. 17,7s), exorbitante, e nisso está a graça: o patrão age como servo (22,27; Mc 10,45p; cf. o lava-pés em Jo 13,1-17). Ele convida os criados a um banquete (Ap 3,20). É o banquete do céu, que só com exageros se pode esboçar (Mt 26,29; Is 25,6).

Duas vezes “felizes” (bem-aventurados; cf. 6,20-23) são chamados os criados que vigiam. No final do tempo apostólico, os cristãos estão sendo provados pela demora da volta de Cristo (cf. Mc 13,30), mas se perseverarem, estarão de parabéns (felizes).

O site da CNBB comenta: O verdadeiro discípulo de Jesus procura viver sempre um dos valores mais importantes que aparecem no Evangelho: o serviço. Ele sempre está pronto para servir o seu senhor que chega, pois vê o próprio Jesus que vem até ele na pessoa do pobre, do nu, do faminto, do injustiçado, do doente, do abandonado, do carente, enfim, de todos os que precisam de amor, de ajuda material, psicológica, afetiva ou espiritual. Esse discípulo não fala muito de amor e de Evangelho, porque sua vida é o grande discurso da vivência do amor evangélico. Este é o que está de rins cingidos e abre a porta do seu coração sempre que o Senhor chega e este é o feliz que será eternamente servido pelo Senhor.

Ficai certos: se o dono da casa soubesse a hora em que o ladrão iria chegar, não deixaria que arrombasse a sua casa. Vós também ficai preparados! Porque o Filho do Homem vai chegar na hora em que menos o esperardes (vv. 39-40).

Depois da parábola dos empregados que esperam pela vinda do seu senhor, agora a comparação do Filho do Homem com um ladrão que arromba com surpresa. Esta quer destacar o julgamento associado à sua vinda (parusia) e tem longa tradição (1Ts 5,2.4; Mt 6,19; 2Pd 3,10; Ap 3,3; 16,5). Os ladrões preferem a noite: “de noite ronda o ladrão, penetra às escuras nas casas” (Jó 24,14.16); utilizam procedimento de entrar, “arrombar (lit. furar) a sua casa”: abrir um buraco, mas a surpresa é seu principal recurso (Ex 22,1). Embora a vigilância seja coletiva, aplica-se a cada pessoa. Como a vinda de um ladrão é surpresa, também não é possível calcular o dia ou a hora da chegada do Senhor (cf. Mc 13,32p).

Então Pedro disse: “Senhor, tu contas esta parábola para nós ou para todos?” E o Senhor respondeu: “Quem é o administrador fiel e prudente que o senhor vai colocar à frente do pessoal de sua casa para dar comida a todos na hora certa?” (vv. 41-42)

Antes Jesus falava de “servos, empregados” (v. 37) designando o grupo dos discípulos (“vós”, v. 40). Agora o acento se desloca (cf. Mc 13,37); a pergunta de Pedro interrompe o fluxo do sermão (cf. Mt 24,44s). Jesus responde com uma pergunta retórica sobre um servo que tem autoridade sobre os demais, em resposta exata a pergunta de Pedro, na qual “nós” se refere aos apóstolos. Pedro representa as autoridades da Igreja, os líderes da comunidade que têm uma responsabilidade especial no tempo da ausência do Senhor (1Cor 4,1-2.5). Diferente do paralelo de Mt 24,45, Lc não fala de servo, mas do “administrador fiel e prudente” que tem responsabilidade sobre a casa toda (cf. Mt 24,45-51; 10,25; 1Tm 3,15; 2Tm 2,19s; Tt 1,7; 1Cor 9,17). O termo “administrador” (intendente) é próprio de Lc entre os evangelistas (cf. 16,1.3.8) e designa um personagem importante.

Em Antioquia, cidade mencionada bastante nos At, esta ideia possa ter influído no desenvolvimento do ministério do bispo monárquico (cf. as cartas de Stº. Inácio de Antioquia, na Liturgia da Horas, Ofício das Leituras na 27ª semana).

Feliz o empregado que o patrão, ao chegar, encontrar agindo assim! Em verdade eu vos digo: o senhor lhe confiará a administração de todos os seus bens (vv. 43-44).

Pela terceira vez, a vigilância de um servo, agora do administrador, é parabenizada (“feliz”; bem-aventurança). Já em vv. 37s, Jesus felicitou os empregados que ficam atentos vigiando e esperando pelo Senhor que irá servi-los um banquete. O salário é recompensa escatológica (cf. 1Cor 3,14s), mas agora não é descanso, sim atividades e responsabilidades maiores. Agora “o senhor lhe confiará a administração de todos os seus bens”, cf. a figura de José a quem o Faraó confia a administração de todo o Egito por causa da sua sabedoria (Gn 41,37-44).

Porém, se aquele empregado pensar: “Meu patrão está demorando”, e começar a espancar os criados e as criadas, e a comer, a beber e a embriagar-se, o senhor daquele empregado chegará num dia inesperado e numa hora imprevista, ele o partirá ao meio e o fará participar do destino dos infiéis (vv. 45-46).

A Bíblia do Peregrino (p. 2501) comenta: O administrador desta parábola é encarregado de outros criados; ocupa um posto intermédio, ocupa-se de pessoas, não de bens. A aplicação imediata aponta para os discípulos que recebem cargo mediador. As condutas opostas são: um serviço organizado para os outros servos ou um aproveitar-se licenciosamente da situação.

No abuso de poder, o infiel se esquece de que sua posição superior é temporária (cf. Mt 24,49). Logo vem o castigo em termos do julgamento: “O senhor o partirá ao meio e o fará participar do destino dos infiéis” (cf. a excomunhão em Mt 18, 17; 1Cor 5,4s, além de perder o cargo).

A demora do patrão a chegar corresponde à geração de Lucas, que já não espera uma parusia iminente (como Paulo nas sete cartas atribuídas a ele pela maioria dos exegetas, cf. 1Ts 4,15-17; 1Cor 15,51s). Contudo, o espírito de vigilância deve permanecer, porque a demora não desmente o fato (Ez 7,1-12; 12,21-28; cf. 2Pd 3). E como o fato é certo, a incerteza da hora incita à vigilância. Sem cessar é iminente o que pode acontecer a qualquer momento.

Aquele empregado que, conhecendo a vontade do senhor, nada preparou, nem agiu conforme a sua vontade, será chicoteado muitas vezes. Porém, o empregado que não conhecia essa vontade e fez coisas que merecem castigo, será chicoteado poucas vezes (vv. 47-48a).

Até agora, Lc tem se servido da sua fonte comum com Mt (“Q”; cf. Mt 24,42-51). Agora, novamente, apresenta material próprio (vv. 47-48) referindo-se à relação ética entre conhecer e agir. A Bíblia do Peregrino (p. 2501) comenta: A ignorância de ordens concretas do patrão é atenuante, mas não exime da responsabilidade genérica. O conhecimento é agravante; e os discípulos as conhecem.

A quem muito foi dado, muito será pedido; a quem muito foi confiado, muito mais será exigido! (v. 48b).

Lc conclui esta sequência com uma sentença sapiencial (cf. Sb 6,1-8 referindo-se aos governantes: “Os elevados serão julgados implacavelmente… os fortes sofrerão dura pena”). No contexto da parábola anterior podemos pensar em carismas da Igreja, confiados não a vantagens pessoais, mas como capacitação para servir (cf. 1Cor 12,7 etc.). Mais uma vez se alude ao julgamento presidido por Deus (os verbos na forma passiva indicam a ação divina).

O site da CNBB comenta: O Filho do Homem vai chegar na hora em que menos esperamos, pois ele está sempre chegando até nós nos pobres e necessitados. Os que esperam a vinda de Jesus somente no último dia tornam-se pregadores do fim do mundo e vivem uma fé ritual, são incapazes de amar verdadeiramente e, na verdade, não conhecem Jesus presente em suas vidas, possuem uma fé egoísta, pois a espera de Jesus não é para o encontro com ele, mas para ganhar o prêmio eterno. A longa espera e a falta de vivência concreta do amor faz com que essas pessoas desanimem e maltratem seus irmãos e irmãs, fazendo-se merecedores da sorte dos infiéis.

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