11 de agosto de 2018, sábado: Vou ocupar meu posto de guarda e estarei de atalaia, atento ao que me será dito e ao que será respondido à minha denúncia (2,1).

Leitura: Hab 1,12-2,4

Habacuc, contemporâneo de Jeremias, é um dos nabi (1,1). Este termo designa geralmente um profeta da instituição do templo, onde Habacuc tem seu “posto de guarda” como “atalaia” (2,1). Numa primeira fase critica duramente a injustiça social referindo-se talvez a exploração do rei Joaquim (cf. Jr 22,10-12; 2Rs 23,33-35). Nesta época surge o império caldeu (neobabilônico) que venceu Assíria em 612 a.C. (destruição de Nínive) e o Egito em 605. Como castigo da elite de Jerusalém, Habacuc anuncia a invasão babilônica, mas depois da destruição de Jerusalém (587/586) faz uma releitura durante o exílio, estendendo a queixa da violência ao exército caldeu (segunda fase). Provavelmente depois do exílio, acrescentou-se o salmo do cap. 3 que muda o tom rebelde do profeta.

A Bíblia Pastoral introduz este livrinho profético:

O profeta Habacuc inicia o livro interrogando a Deus e pedindo socorro, pois está cansado de ver o seu país sofrer opressão violenta, onde a Lei enfraquece e o direito está distorcido (1,2-4). A resposta de Deus é a intervenção de um grande império, que deveria corrigir os desmandos (1,5-10). Isso, porém, não satisfaz o profeta, pois o invasor não vem para fazer justiça, mas para substituir uma opressão por outra pior (1,12-17).

Acaso não existes desde o princípio, Senhor, meu Deus, meu Santo, que não haverás de morrer? Senhor, puseste essa gente como instrumento de tua justiça; criaste-a, ó meu rochedo, para exercer punição (1,12).

O debate com Deus soa quase como um interrogatório.  A resposta de Habacuc ocorre sem introdução, como de um ouvinte escandalizado. “Puseste essa gente como instrumento de tua justiça… para exercer punição”; o profeta toma a Deus como juiz contra o conquistador escolhido como instrumento de seu desígnio e que se excedeu em sua missão (seus abusos serão ainda abordados nos vv. 15-17).

O próprio Deus suscitou o flagelo caldeu (exército neobabilônico) para uma missão, que ele não devia ultrapassar (cf. 1,6-11). Esses pagãos são o instrumento de sua justiça, por algum tempo (cf. Am 3,11; Is 10,5-27; Jr 5,14-19; 25,1-13; 27,6-22; 51,20-23; Dt 28,47s; 2Rs 24,2-4; cf. o rei caldeu Nabucodonosor, “meu servo Jr 25,9; 27,6; 43,10). Para outros (trata-se de Israel, que devia ser o árbitro dos povos, ou o rei de Judá, Joaquim, infiel à sua missão), provoca a violência (1,2-4.12-17 e 2,6-19 seriam dirigidos contra ele).

O profeta acumula os títulos divinos para mostrar a contradição. “Meu Deus”, não o deles, que é sua força; “Santo”, não como a violência; “desde o princípio”, antes destes fatos históricos; é desde o tempo do Êxodo (cf. 3,15) em que Habacuc põe o motivo da esperança.

“Não haverás de morrer”, como morrerão os deuses injustos (cf. Sl 82). O texto hebraico tem: “Não morreremos”, mas uma tradição dos escribas que transmitiam o texto hebraico ensina que o texto primitivo bem poderia ser: “Tu não morrerás!” (cf. o texto aramaico: “Tua pessoa permanece pelo séculos”).

O “rochedo” dá estabilidade à existência, por isso é metáfora para Deus, o Rochedo (Dt 34,4.15.18.30.27; Sl 18,32 etc.). Também se poderia entender com outras traduções: “tu o firmaste como a rocha para…”

Teus olhos são puros para não veres o mal; não podes aceitar a visão da iniquidade. Por que, então, olhando para os malvados, e vendo-os devorar o justo, ficas calado? (1,13).

O profeta impotente olhava e gritava; Deus poderoso, porém, olha e se cala. Se o silêncio de Deus era insuportável no começo, agora chega a ser incompreensível. Pode Javé usar-se da violência do império para castigar seu povo? Para o profeta não, pois os “olhos” de Javé “são puros” demais para compactuar com o mal e contemplar a “iniquidade” (injustiça).

Tratas os homens como os peixes do mar, como os répteis, que não têm dono. O pescador pega tudo com o anzol, puxa os peixes com a rede varredoura e recolhe-os na outra rede; com isso, alegra-se e faz a festa. Faz imolação por causa da sua malha, oferece incenso por causa da sua rede, porque com elas cresceu a captura de peixes e sua comida aumentou (1,14-16).

Aqui a pesca não é uma metáfora positiva (como a dos apóstolos como “pescadores de homens”, Mc 1,17p), mas são os caldeus (neobabilônios) que oprimem as nações como se fizessem uma grande pescaria.

O conquistador é o “pescador” (caça e pesca são imagens de uma campanha militar em Jr 16,16; Ez 12,13; 17,20; 29,4; 32,3) com sua idolatria: sacraliza ou diviniza os instrumentos de seu poder e domínio: o critério supremo é a eficácia, porque com eles “cresceu a captura de peixes”, lit. porque dentro deles seu quinhão é gordo. Assim as redes simbolizam os deuses babilônios e os peixes apanhados são os cativos numerosos aos quais se juntam os deportados de Jerusalém (em 597 e 586 a.C.).

Podemos ler esta imagem da pesca sobre o pano de fundo do Sl 8: o ser humano (filho de Adão) é senhor dos animais, mas agora o senhor dos peixes é convertido em peixe que outro domina? É possível que o Deus santo tenha organizado semelhante pescaria?

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 956) lê o v. 14: “Fazes agora os homens à imagem dos peixes do mar, daquilo que fervilha sem chefe” e comenta: O vocabulário desta apóstrofe encontra-se também no texto do ato criador de Deus no sexto dia, segundo Gn 1,26.28, quando Deus decide “fazer os homens” (hebr.: ‘adâm) à sua “imagem”, para que “dominem sobre os peixes do mar e sobre o que fervilha” (os répteis). Suprindo a menção à imagem divina e notando a falta de senhor no interior da criação, parece que o profeta denuncia aqui a ação do conquistador na medida quem esta põe em xeque a própria obra da criação. É ao Deus Criador que ele apela, para que seu instrumento pervertido não continue sua obra de destruição.

Será por isso que ele sempre desembainhará a espada, para matar os povos, sem dó nem piedade? (1,17).

Nossa liturgia traduz segundo o Comentário de Qumran, o mais antigo testemunho do texto hebraico: “desembainhará a espada”. Outros traduzem: “esvaziará a sua rede” (texto masorético). “Sempre”, lit. “sem cessar”; 1Qp Hab: “sem cessar massacrando”.

Vou ocupar meu posto de guarda e estarei de atalaia, atento ao que me será dito e ao que será respondido à minha denúncia (2,1).

Com essa tensão, o profeta trata de sua nova função, que é ser sentinela (cf. Nm 23,3; Is 21.3.8.11; Jr 6,17; Ez 3,17; 33,1-9; Os 9,8; Sl 5,4). Põe-se a olhar, para ver se Deus vai agir de novo num momento imprevisível; a escutar, porque Deus deve uma resposta “à minha denúncia” (lit. a meu chamado à ordem). O profeta espera ser censurado pela sua audácia: interpelou a Deus sobre os motivos de sua ação (1,13-14). Outros traduzem: “sobre a muralha, eu responderei”. O profeta vela pelo seu povo como a sentinela nas muralhas.

Respondeu-me o Senhor, dizendo: “Escreve esta visão, estende seus dizeres sobre tábuas, para que possa ser lida com facilidade. A visão refere-se a um prazo definido, mas tende para um desfecho, e não falhará; se demorar, espera, pois ela virá com certeza, e não tardará (2,2-3). 

A Bíblia do Peregrino (p. 2261) comenta: A resposta de Deus abre uma nova etapa de expectativa. Quais são os prazos na cronologia de Deus? Recordemos o tempo vegetal de Is 18,4s e a pressa de Is 5,19; Ez 12,21-28. Escrever o oráculo acrescentará seu valor jurídico (Is 8,16). A escritura há de ser clara e duradoura, para que não seja preciso decifrá-la.

O v. 4 será o centro do livro, por isso deve ser escrito em “tábuas”, o material para a escrita em uso para textos que devem ser conservados (cf. Ex 24,12; 27,8 etc.; Dt 4,13; 5,19; Is 30,8 e simbolicamente Jr 17,1; Pr 3,3; 7,3); “para que possa ser lida com facilidade”, lit.: a fim de que corra aquele que a lê.

A revelação se realizará no “tempo determinado” (cf. Dn 8,19.26; 10,14; 11,27.35), e o documento escrito compromete para esse tempo a palavra do Senhor (cf. 2Pd 3,2), cuja veracidade ele provocará mais tarde (cf. Is 8,1.3; 30,8). Na realidade, se cumpriu, mas só em 539 a.C. quando os babilônios foram vencidos em 539 a.C. por Ciro II, o rei dos persas que libertou os judeus deportados no exílio.

A “visão” é dotada de energia própria, pois expressa uma palavra de Deus, que “tende para um desfecho”, à sua realização (cf. Is 55,10s); ou: a visão se exprime sobre o fim, diz respeito ao fim. A liturgia do Advento utiliza este v., em sua tradução grega divergente, para exprimir à espera do messias (cf. Hb 10,37).

Quem não é correto, vai morrer, mas o justo viverá por sua fé” (2,4).

Há diversos textos e traduções diferentes. Lit.: “Eis o inflado (orgulhoso, arrogante), sua alma (força da vida) não fica reta (salva). “Alma” pode indicar a pessoa inteira ou a garganta, a goela, como no v. seguinte (cf. Ct 1,7). Refere-se ao opressor, cujo comportamento os vv. seguintes vão descrever.

A Bíblia de Jerusalém (p. 1789) lê: “Sucumbe aquele, cuja alma não é reta, mas o justo viverá por sua fidelidade” e comenta: Esta sentença, formulada em termos universais (cf. Is 3,10-11), exprime o conteúdo da visão. A “fidelidade” (cf. Os 2,22; Jr 5,1.3; 7,28; 9,2 etc.) a Deus, isto é, à sua palavra e à sua vontade, caracterizada o “justo” e lhe garante segurança e vida (cf. Is 33,6; Sl 37,3; Pr 10,25 etc.). O império, a quem falta esta “retidão”, perder-se-á. Neste contexto (1,2-4.12-17; 2,5-18) trata-se respectivamente do caldeu e de Judá: a justa Judá viverá, o opressor perecerá. No texto da LXX, onde “fidelidade” se torna “fé”, são Paulo lerá a doutrina da justificação pela fé.

Nossa liturgia traduz o texto grego da LXX (“o justo viverá por sua fé”) que o apóstolo Paulo cita duas vezes para provar que não se obtém a salvação pelas obras da observância da lei, mas “pela fé”: Rm 1,17 e Gl 3,11; por sua vez, Hb 10,37s cita-o segundo a versão grega, exortando à paciência.

Na Bíblia hebraica, ‘muna pode significar “fé”, às vezes, mas aqui está em paralelo a “espera” pelo cumprimento do oráculo de v. 3. Não quer expressar um princípio teológico (como nas cartas de Paulo), mas a “confiança” numa situação histórica concreta (como Is 7,9). Mas já antes de Paulo, a comunidade de Qumran generalizou esta frase, exigindo “fidelidade” ao seu líder, o mestre da justiça.

A Bíblia do Peregrino (p. 2261) comenta: O problema é que, ao chegar a nós, o texto não pode ser lido correntemente; temos quase de decifrá-lo, o enunciado parece um enigma proposital. É claro que o princípio é uma antítese, com correspondência de membros; o segundo membro é unívoco, ao passo que o primeiro tem vários termos ambíguos. A antinomia orienta para defini-los; mas penso que o autor joga com polissemia. Suposto isso, e poupando a análise técnica, proponho uma leitura parafrástica ampla.

Há um homem movido pela cobiça e pela ambição (nfsh) que “se infla” (‘flh) com a arrogância e com o que traz, com seus êxitos; mas não triunfará (l’yshrh), porque “não é reto”, justo (idem). Há um homem “justo e inocente” (sdyq), que não recorre à força, porque confia (b’mwntw) em Deus, e por isso salvará a vida (yhyh). O versículo seguinte amplia e estende esse princípio, os cinco ais comentam o fracasso do arrogante.

O profeta fica vigilante à espera de Javé, que reponde em forma de visão, colocando o “orgulhoso” (lit. inchado, inflado; arrogante) e o “justo” em lados opostos. O orgulho tem uma fome de poder que não se sacia, assim como a morte, ao passo que “o justo viverá por sua fidelidade”. O v. 4 é o centro do livro e por isso deve ser escrito em tábuas (cf. v. 2).

 

Evangelho: Mt 17,14-20

O evangelho de hoje situa-se depois da transfiguração. Jesus desceu do monte e cura um rapaz que sofreu de epilepsia, uma doença cuja causa era atribuída ao demônio, segunda a medicina antiga. Mt copiou este texto de Mc 9,14-27, mas o reduziu a um terço. Ele não está interessado em detalhes da doença nem na descrição do exorcismo. Há outro trecho em Mc, que Mt reduziu tanto também, o exorcismo dos gerasenos (8,24-34). Obviamente, Mt não gostava de exorcismo (nem mencionou o da sinagoga em Cafarnaum, cf. Mc 1,23-27); o que interessa Mt aqui é a instrução sobre a fé no final do nosso texto.

Chegando Jesus e seus discípulos junto da multidão, um homem aproximou-se de Jesus, ajoelhou-se e disse: ”Senhor, tem piedade do meu filho. Ele é epilético, e sofre ataques tão fortes que muitas vezes cai no fogo ou na água. Levei-o aos teus discípulos, mas eles não conseguiram curá-lo!” Jesus respondeu: “Ó gente sem fé e perversa! Até quando deverei ficar convosco? Até quando vos suportarei? Trazei aqui o menino.” Então Jesus o ameaçou e o demônio saiu dele. Na mesma hora o menino ficou curado (vv. 14-18).

Do relato colorido de Mc, rico em detalhes, só resta praticamente o esqueleto. Um homem traz seu filho doente, “epilético” (lit. “lunático”, porque os gregos antigos achavam que a deusa da lua causa a epilepsia). Mt descreve brevemente os sintomas da doença e a incapacidade dos discípulos (preparando os vv. 19s). A multidão só é necessária por causa da lamentação profética de Jesus: “Ó gente sem fé e perversa” (v. 17; lit. “geração”; cf. Dt 32,5). A quem se refere? Não aos discípulos, porque eles têm fé, embora pequena (v. 20). Como a multidão está presente, pode-se referir ao povo contemporâneo de Jesus.

No evangelho de hoje, este povo não merece repreensão alguma, mas como em 13,10-15 se trata da falta de fé em Israel em geral. Em 23,34-36, Jesus lamenta que Israel sempre tenha agido sem fé e matado os profetas. As duas perguntas “até quando” (v. 17) ganham significado nesse contexto, porque em 23,36-24,2 Jesus anuncia à “esta geração” que ele irá abandonar a cidade, e o templo será destruído (o que aconteceu em 70 d.C.). “Até quando deverei ficar convosco?” O Emanuel (Deus conosco; cf. 1,23; 28,20) anuncia sua ausência a seu povo.

Só em v. 18, Mt menciona o “demônio” que saiu pela ameaça de Jesus, e o menino ficou curado.

Então, os discípulos aproximaram-se de Jesus e lhe perguntaram em particular: “Por que nós não conseguimos expulsar o demônio?” Jesus respondeu: “Porque a vossa fé é demasiado pequena. Em verdade vos digo, se vós tiverdes fé do tamanho de uma semente de mostarda, direis a esta montanha: ‘Vai daqui para lá’, e ela irá. E nada vos será impossível” (vv. 19-20).

A pergunta dos discípulos incapazes é a mesma de Mc 9,28, mas no lugar da receita exorcista de Mc 9,29 (“essa espécie não pode sair a não ser com oração”), Mt traz a palavra sobre a fé que move montanhas (22,21; cf. Lc 17,6; Mc 11,23), num estilo profético (condição e anúncio, cf. Is 1,19). Os profetas falaram que Deus nivela montanhas (Is 40,3-5; 49,11; Zc 14,10), mas aqui é uma metáfora para coisa impossível. Como pano de fundo, podemos supor que as expectativas de cura nem sempre se cumpriram na comunidade cristã (já em Mc, por isso recomenda muita oração, cf. Tg 5,13-16). Mt explica: a causa disso é a pequenez da fé (cf. 6,30; 8,26; 14,31; 16,8).

Fé em Mt é acreditar que Jesus “pode fazer isso” (9,28) e “nada vos será impossível” (17,20). Coragem, oração e obediência de um lado e o poder ilimitado do Emanuel ressuscitado do outro lado constituem a fé. Assim os milagres podem acontecer e não são sem importância em Mt (apesar da sua redução da narrativa). E quem não realiza curas, não tem fé? Paulo entende o poder de fazer curas como carisma que Deus concede livremente a alguns e não a todos (1Cor 12,9.28). Mt entende os milagres e as experiências carismáticas não apenas como acréscimo (brinde) da fé, mas como motivo para solicitar de Deus coisas difíceis (impossíveis). Se não tivesse isso, nossa fé não mudaria nada, e Deus seria apenas uma autoridade que sanciona o status quo (a situação como está) e dá força para aceitá-lo.

O site da CNBB comenta: A fé abre todas as portas para a pessoa humana e lhe possibilita a superação de todos os problemas e dificuldades, mas a fé não é mágica ou bruxaria que, através de rituais, possibilita a todas as pessoas que os utilizem a manipulação de Deus ou da natureza. A força da fé está na parceria com Deus e na adesão ao seu plano de amor. Quando nós fazemos isso, o sucesso das nossas atividades não está nas atividades em si, mas no próprio Deus que, conosco, realiza as suas obras. Logo, o poder da fé está na adesão e não no rito e a fé verdadeira é, antes de tudo, compromisso com Deus.

Voltar