11 de Julho 2019, Quinta-feira: Em vosso caminho, anunciai: “O Reino dos Céus está próximo” (v. 7).

14ª semana comum

Leitura: Gn 44,18-21.23-29; 45,1-5

Nesta semana concluiremos a leitura de Gênesis, saltando por muitos capítulos. Para melhor entendimento da novela comovente de José, resumimos brevemente aqui: José, filho preferido de Jacó, foi vendido por seus irmãos ciumentos ao tráfico de escravos, mas mentiram para o pai dizendo que um animal feroz o devorou. José, porém, teve uma ascensão maravilhosa à condição de governador (vice-rei) no Egito (Gn 37-41). Por causa de uma seca prolongada, seus irmãos vieram ao Egito para comprar alimentos, mas não reconheceram José que falava com eles por intérprete.

José mandou prendê-los sob acusação de serem espiões. Segurou um deles, Simeão (o segundo mais velho dos irmãos), na prisão e mandou que os outros saíssem com alimentos para seu pai e depois voltassem ao Egito com seu irmão mais novo, Benjamim, para provar a verdade das suas palavras (e da sua fraternidade; cf. leitura de ontem).

Jacó não queria perder mais outro filho querido, achando que José estava morto e Simeão não podia ser mais resgatado. Mas como a fome se agravou, não houve outra saída do que ir de novo ao Egito; levaram então Benjamim, e Judá se responsabilizou em trazê-lo de volta (cf. Gn 43,9).

No Egito, os irmãos foram recebidos na casa de José que soltou Simeão e mandou servi-los um banquete, mas, enquanto isso, clandestinamente, mandou colocar sua taça de prata no meio dos mantimentos, no saco de Benjamin, criando assim um corpo de delito, uma prova falsa para provocar um pleito. Seus irmãos já tinham saído da cidade, quando foram presos de novo sob acusação de furto. Os egípcios revistaram toda a sua bagagem e encontraram a taça no saco de Benjamin. Então “rasgaram suas roupas” (44,13), e na casa de José, “prostraram-se por terra diante dele”, mas ele não queria castigá-los coletivamente, mas “o homem nas mãos de quem se encontrou a taca será meu escravo; mas vós, retornai em paz à casa de vosso pai” (44,17). A história parece se repetir. Os irmãos mais velhos vão entregar o mais novo à escravidão como antes fizeram com José? Não mais, porque aprenderam com a dor do pai pela perda de José e com as tribulações agora (cf. o remorso em 42,21s).

Na novela de José mesclam-se duas tradições: uma do sul (das tribos de Judá e Benjamim), na qual Judá tenta salvar José (37,26-27) e depois Benjamim (43,8s; 44,18-34; leitura de hoje). Outra tradição do norte de Israel menciona Rúben que salva José (37,21-22.29-30) e responsabiliza-se por Benjamim (42,22.36s; leitura de ontem).

Judá aproximou-se de José e, cheio de ânimo, disse: “Perdão, meu senhor, permite ao teu servo falar com toda a franqueza, sem que se acenda a tua cólera contra mim. Afinal, tu és como um faraó! Foi meu senhor quem perguntou a seus servos: ‘Ainda tendes pai ou algum outro irmão?’ E nós respondemos ao meu senhor: ‘Temos um pai já velho e um menino nascido em sua velhice, cujo irmão morreu; é o único filho de sua mãe que resta, e seu pai o ama com muita ternura’. E tu disseste a teus servos: ‘Trazei-o a mim, para que eu possa vê-lo. Se não vier convosco o vosso irmão mais novo, não vereis mais a minha face’. (44,18-21.23b).

Em nome de todos, Judá pronuncia um grande discurso (44,18-34), no qual exclui toda referência política, tudo o que poderia soar como insinuação contra o governador (vice-faraó, cf. v. 18), para concentrar-se na esfera familiar (cf. 42,13.26; 43,7) e acumular o que pode comovê-lo como ser humano e deixa o aspecto jurídico para o final.

“Trazei-o a mim para que eu possa vê-lo” (44,21; lit. ponha meus olhos sobre ele; da parte de um poderoso, ou de Deus, é um sinal de benevolência (Jr 39,12; 40,4; Sl 33,18; 34,17). ”Se não vier convosco o vosso irmão mais novo, não vereis mais a minha face” (44,23), ou seja, não serão mais admitidos na minha presença, não poderão comprar outra vez alimentos no Egito.

Quando, pois, voltamos para junto de teu servo, nosso pai, contamos tudo o que o meu senhor tinha dito. Mais tarde disse-nos nosso pai: ‘Voltai e comprai para nós algum trigo’. E nós lhe respondemos: ‘Não podemos ir, a não ser que o nosso irmão mais novo vá conosco. De outra maneira, sem ele, não nos podemos apresentar àquele homem’. E o teu servo, nosso pai, respondeu: ‘Bem sabeis que minha mulher me deu apenas dois filhos. Um deles saiu de casa e eu disse: Um animal feroz o devorou! E até agora não apareceu. Se me levardes também este, e lhe acontecer alguma desgraça no caminho, fareis descer de desgosto meus cabelos brancos à morada dos mortos’“ (44,24-29).

Como personagens centrais, Judá seleciona Benjamim e o pai Jacó: é justa a crueldade contra um pai idoso, para defender um direito pessoal lesado? Jacó lhes tinha dito: “Se me levardes também este e lhe acontecer alguma desgraça no caminho, fareis descer de desgosto meus cabelos brancos à morada dos mortos” (v. 29; 37,33-35; 42,36-38).

A “morada dos mortos” (cf. 17,35; 44,29.31, em hebraico Sheol (Xeol), em grego Hades), é o mundo subterrâneo (Dt 32,22; Is 14,9) para onde os israelitas acreditavam que iam os mortos (cf. 1Sm 2,6). Descer vivo para este lugar é um fim terrível (Nm 16,1-35). A crença na ressurreição (2Mc 7,9.14.23; 12,44; Dn 12,2s) e na imortalidade (Sb 3,4) só aparecem a partir no séc. II a.C.

No final do discurso (omitido pela leitura de hoje), Judá ainda se oferece no lugar de Benjamin: “Que teu servo fique como escravo de meu senhor no lugar do rapaz, e que este volte com seus irmãos” (v. 33). É a primeira vez que aparece na Bíblia a ideia de alguém assumir o castigo por outro, como o fará o servo de Javé em Is 53 e depois o próprio Jesus (cf. Mc 10,45p; Mt 26,28; Rm 3,24 etc.).

Então José não pôde mais conter-se diante de todos os que o rodeavam, e gritou: “Mandai sair toda a gente!”. E, assim, não ficou mais ninguém com ele, quando se deu a conhecer aos irmãos. José rompeu num choro tão forte, que os egípcios ouviram e toda a casa do Faraó. E José disse a seus irmãos: “Eu sou José! Meu pai ainda vive?” Mas os irmãos não podiam responder-lhe nada, pois foram tomados de um enorme terror. Ele, porém, cheio de clemência, lhes disse: “Aproximai-vos de mim”. Tendo-se eles aproximado, disse: “Eu sou José, vosso irmão, a quem vendestes para o Egito. Entretanto, não vos aflijais, nem vos atormenteis, por me terdes vendido a este país. Porque foi para a vossa salvação que Deus me mandou adiante de vós, para o Egito” (45,1-5).

José ficou comovido com esta prova de fraternidade e mandou os egípcios saírem para ficar a sós com seus irmãos, chora pela terceira vez (cf. 42,24; 43,30): “José rompeu num choro tão forte, que os egípcios ouviram e toda a casa do faraó” (v. 2).

A Nova Bíblia Pastoral (p.66) comenta: O forte tom emocional realça José como modelo de sabedoria e bondade: frente aos irmãos prostrados, controla sua emoção (43,30; cf. 42,24), obtém a submissão deles (44,16), e não usa seu poder para vingar-se (44,17; 50,15-18).

A “clemência” é ideal de um monarca justo. José disse a seus irmãos: “Aproximai-vos de mim … Eu sou José, vosso irmão, a quem vendestes para o Egito. Entretanto não vos aflijais nem vos atormenteis por me terdes vendido a este país. Porque foi para a vossa salvação que Deus me mandou adiante de vós, para o Egito” (vv. 3-5).

Os vv. 45,5-8 dão, com 50,20, uma chave da narrativa de José (cf. 37,20). José foi hostilizado por seus irmãos e vendido como escravo, realidade dura e crua, mas Deus aproveitou dessa maldade para fazer algo positivo. José reconhece que foi vítima de uma maldade terrível, mas percebe que Deus foi providente, usou o mal para o bem da família. Mesmo os acontecimentos negativos são conduzidos pela mão de Deus. “Ele mandou-me adiante de vós”, disse José. Chegado primeiro, agora em excelentes condições, pode servir a todos, inclusive a quem lhe fez o mal.

Neste sentido, José prefigura o servo de Javé (Is 53) e também Jesus que foi vendido pelo o preço de um escravo por “trinta moedas de prata (Mt 26, 15; cf. Ex 21,32), foi preso, condenado e crucificado, mas ascendeu ao céu para salvar todas as pessoas humildes, os pecadores arrependidos e os que tem “fome e sede de justiça” (Mt 5,6). Deus é tão bom que se pode servir do mal para fazer o bem. Isto não nos deve instigar a fazer o mal, ao contrário, deve nos animar para praticarmos mais a justiça, a fraternidade e o amor, mas é uma grande esperança para o conjunto, porque Deus escreve reto até por nossas linhas tortas.

Evangelho: Mt 10,7-15

No evangelho de hoje, ouvimos Jesus continuando o segundo grande discurso em Mt. Envia os apóstolos para falarem e atuarem como o mestre.

Em vosso caminho, anunciai: “O Reino dos Céus está próximo” (v. 7).

É o mesmo anúncio de João Batista e de Jesus (3,2; 4,17). Conforme o costume dos seus leitores judeu-cristãos, Mt evita pronunciar o nome de Deus e prefere a expressão “Reino dos Céus” (em vez de Reino de Deus); não designa um reino celeste, mas que Aquele que está no céu (5,48; 6,9; 7,21) reina sobre o mundo.  O reino sempre pertence ao Senhor (Sl 22,29; 103,19; 145,11-13;…), mas este reinado de sempre “se aproximou” dos seres humanos na pessoa de Jesus.

Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios (v. 8a).

Estas quatro ações abraçam toda atividade de Jesus na série dos capítulos anteriores (Mt 8-9), até o poder sobre a morte. A lepra é mencionada à parte, porque contamina (os envios paralelos de Mc 6,7.13 e Lc 9,1-2.6; 10,9 só falam da cura de doentes e espíritos maus).

De graça recebestes, de graça deveis dar! (v. 8b).

Parece que muitos curandeiros da época cobravam caro por seus serviços. Mas o poder dos discípulos vem de Deus, então devem fazer diferença, imitando a atitude de Jesus que é gratuidade (cf. Pedro em At 3,6); para Paulo (e Lutero), somos salvos pela graça, não pelas obras (da lei, cf. Rm 5,15-20 etc.).

Não leveis ouro, nem prata, nem dinheiro nos vossos cintos; nem sacola para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem bastão, porque o operário tem direito ao seu sustento (vv. 9-10).

As recomendações de não levar quase nada pelo caminho (levar duas túnicas já era considerado certo luxo, cf. Lc 3,10) já estavam em Mc 6,8s (lá, pelo menos sandálias e um cajado são permitidos) e na fonte de palavras Q (Lc 9,3; 10,3). Mas Q afirmou também a razão: “porque o operário tem direito a seu sustento” (lit. alimentação; Lc 10,7b: digno do seu “salário”), ou seja, o missionário pode contar com o sustento pela comunidade. 1Tm 5,17s estabelece dois salários para presbíteros. Em 1Cor 9,14, Paulo afirma estas palavras de Jesus, mas não se vale deste direito (1Cor 9,15-18) para não ser confundido com missionários exploradores (cf. os “superapóstolos” em 2Cor 11,5-7.20). Confiando em Deus, o missionário não tem preocupações materiais (cf. 6,11.25-33).

Em qualquer cidade ou povoado onde entrardes, informai-vos para saber quem ali seja digno. Hospedai-vos com ele até a vossa partida (v. 11).

“Informai-vos para saber quem ali seja digno”. Além da prudência, esta recomendação pode se referir à precaução dos judeus que não entram em casa de pagãos, publicanos ou pecadores (cf. 8,8; Jo 18,28; mas 5,46-47; 9,10-13; 21,32; cf. At 11,2s).

“Hospedai-vos com ele até vossa partida” (já Mc 6,10 o recomendou). Havia missionários ociosos vivendo à custa do povo mudando de casa em casa (cf. 2Ts 3,6-11). No século VI, contra monges vagabundos, S. Bento afirmou a “estabilidade do local” (mosteiro) e o trabalho além da oração como eixo da vida religiosa (ora et labora, “reze e trabalhe”).

Ao entrardes numa casa, saudai-a. Se a casa for digna, desça sobre ela a vossa paz; se ela não for digna, volte para vós a vossa paz. Se alguém não vos receber, nem escutar vossa palavra, saí daquela casa ou daquela cidade, e sacudi a poeira dos vossos pés. Em verdade vos digo, as cidades de Sodoma e Gomorra serão tratadas com menos dureza do que aquela cidade, no dia do juízo (vv. 12-15).

 Shalom (“Paz” em hebraico) é a saudação comum em Israel, até hoje, e significa não só o silêncio das armas, mas a plenitude dos bens (saúde, educação, trabalho, prosperidade; cf. Jo 20,19.21.26; Nm 6,26).  A fonte Q também transmitiu a ordem de desejar a paz, que voltaria se não for um amigo da paz (vv. 12-13; Lc 10,5-6). Os apóstolos levam a paz do messias que os amantes da paz saberão reconhecer (cf. 5,9; Sl 120; 122).

Mas a rejeição será fatal (cf. Lc 19,42-44), acarretará um o castigo pior do que o das cidades Sodoma e Gomorra que violaram a hospitalidade (v. 15; cf. Gn 18-19; Sb 19,13-17). “Sacudir a poeira dos pés” (v.14) é um gesto simbólico que toma o pó como sinal (2Rs 5,17): nada do território ignorante e culpado se apegue aos apóstolos (At 13,51). A palavra da boa notícia se torna “juízo” e condenação para quem a rejeita.

Os discípulos-missionários devem seguir o exemplo de Cristo, levar uma vida simples junto ao povo sofrido, confiando em Deus e não nas coisas materiais nem na violência; ao final, devem anunciar a paz e o reino de Deus e não o estilo de vida consumista. Por isso precisa de simplicidade, desapego, coerência material com a mensagem espiritual: fé em Deus, confiança na sua providência (cf. 6,19-34; crer-crédito em Deus). Uma atualização interessante deste evangelho foi o “Pacto das catacumbas” de vários bispos em Roma no final do Vaticano II (1965), entre eles D. Hélder Câmara.

O site da CNBB comenta: A vida de quem é discípulo de Jesus consiste em fazer as obras do reino de Deus para manifestar a sua presença no meio dos homens. É deixar de lado as suas próprias obras para que, como enviado por Jesus, realize as obras de Deus. Para que isso seja possível, o discípulo de Jesus não deve colocar a sua confiança nos bens materiais, mas em Deus, que tudo proverá para que a sua obra seja coroada de êxito. Com essa confiança em Deus, o discípulo de Jesus deve procurar estar atento a tudo o que acontece ao seu redor, para que não perca nenhuma chance de fazer o bem aos que necessitam dele e possa ser, também, um promotor da paz.

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