13 de Novembro de 2020, Sexta-feira: “Senhor, onde acontecerá isso?” Jesus respondeu: “Onde estiver o cadáver, aí se reunirão os abutres”(v. 37).

32ª Semana do Tempo Comum  

Leitura: 2Jo 4-9

Ouvimos hoje e amanhã da segunda e terceira carta de João (1Jo se lê no tempo de Natal). Sem dúvida são do mesmo autor do quarto evangelho, mas em nenhum momento o autor revela seu nome. Na tradição foi identificado com o apóstolo João, filho de Zebedeu (Jo 21,2) e suas comunidades com aquelas do Apocalipse na Ásia menor (cf. Ap1,1.4.9; cap. 2-3; 22,8). Mas o estilo do Ap é totalmente diferente das cartas e do Evangelho. Por isso muitos exegetas consideram o João do Ap uma outra pessoa do que o autor anônimo do quarto Evangelho e das cartas. O evangelho tem como autor o “discípulo amado”, mas sua versão final (redação eclesial) com os acréscimos (Jo 15-17; 21) foi escrita pelos discípulos do discípulo amado (cf. Jo 21,20-24), por volta de 100 d.C.

Na segunda e terceira carta, o autor se apresenta como “o Ancião” (presbítero, v. 1) que pode significar a idade e/ou a função de dirigente (1Pd 5,1).Esta carta se dirige à uma comunidade personificada, aliás não identificada: “à Senhora eleita e a seus filhos”. Trata-se de uma comunidade exposta à ameaça de perder o próprio coração da fé e da vida cristã.

Muito me alegrei, Senhora, por ter encontrado alguns dos teus filhos que caminham conforme a verdade, segundo o mandamento que recebemos do Pai (v. 4).

A “alegria” expressa depois da saudação é como em Fl 1,3-4.

O título “Senhoradesigna uma Igreja local,. Ela é “eleita” (v. 1 cf. também sua comunidade “irmã eleita” em v. 13), enquanto composta de crentes (cf. 2Tm 2,10; Tt 1,1), herdeiros do povo eleito (1Pd 2,9). Pode ser que que o título “Senhora” tenha conotação de símbolo matrimonial, ou seja, a igreja local realizando o “mistério” (sacramento) atribuído à Igreja universal como esposa do Cristo (Ef 5,22-32; cf. “mulher” em Jo 2,1-11; 19,25-27).

Seguindo a tradição do AT, os “filhos” são os membros da comunidade (cf. Ap 12,17), que “caminham na verdade”, isto é, que vivem na luz do mandamento do amor, vindo do Pai (cf. v. 6d). A “verdade”não é simplesmente falar com sinceridade, mas a mensagem evangélica, a revelação de Deus em Jesus Cristo (Jo 8,32; 14,6).

E agora, Senhora, eu te peço – não que te esteja escrevendo a respeito de um novo mandamento, pois trata-se daquele que temos desde o princípio -: amemo-nos uns aos outros.E amar consiste no seguinte: em viver conforme os seus mandamentos. Este é o mandamento que ouvistes desde o início para guiar o vosso proceder (vv. 5-6).

O centro da vida cristã é a prática do amor. Este preceito é“novo” (em relação ao AT, “amar o próximo como a si mesmo”, Lv 19,18), mas “desde o princípio”como Jesus (palavra preexistente do Pai, Jo 1,1-18; cf. 8,57) ensinou em 1Jo 2,7-11; Jo 13,34 (“amar como eu vos amei”); outra tradução possível: “Este mandamento, deveis observá-lo tal como aprendestes no início”.

Amor a Deus é obediência aos mandamentos (como em 1Jo 5,3; Jo 14,15).Apesar das dificuldades apresentadas logo a seguir, a comunidade não abandonou a prática deste mandamento novo.

Acontece que se espalharam pelo mundo muitos sedutores, que não confessam a Jesus Cristo encarnado. Está aí o Sedutor, o Anticristo (v. 7).

Aqui está o motivo principal desta carta: a presença dos anticristos mencionados em 1Jo 2,18-19.22.26; 4,1-3.São pessoas que, em nome de uma concepção religiosa supostamente mais profunda (mais espiritual) a respeito da condição humana, negam que Jesus seja verdadeiro homem e que a prática dele revele o ser e o agir de Deus. O nome Anticristo é usado aqui para designar aqueles que negam o projeto de Deus em Jesus Cristo e pretendem “avançar” no caminho da espiritualidade. 

Como em 1Jo, a ocasião para escrever esta carta foi a ameaça da fé autêntica (“desde o princípio”) por doutrinas diferentes (heresias, naquela época o “gnosticismo”: salvação por conhecimento, não pela fé na “encarnação”; cf. 1Jo 4,1-6; Jo 1,14). Se o conceito pode vir de 2Ts 2,1-10 (cf. também a besta de Ap 13,1-8 e já Dn 11,36), o nome “Anticristo” parece cunhado por João. Equivale a anti-messias, pseudo-messias (Mt 24,23; Mc 13,21), com atitude de rivalidade e hostilidade. Preocupa a João a atividade de propagandistas que semeiam confusão com seus enganos.

O Anticristo não é um indivíduo único, mas um coletivo ou uma pluralidade. E isso pode torná-lo mais perigosos ou mais difíceis de identificar. Brotam do seio da comunidade, como os falsos profetas (Dt 13,2-6; Jr 23; Ez 13).Trata-se de homens que durante certo tempo participavam do grupo dos cristãos, mas o abandonaram e se tornaram pregadores contrários à Igreja, embora apresentando-se como profetas de um cristianismo “espiritual” (cf. 4,1-6; 2Jo 7; 1Tm 4,1; At 20,30).

Tomai cuidado, se não quereis perder o fruto do vosso trabalho, mas sim, receber a plena recompensa. Todo o que não permanece na doutrina de Cristo, mas passa além, não possui a Deus. Aquele que permanece na doutrina é o que possui o Pai e o Filho (vv. 8-9).

 “O fruto do vosso trabalho” Lit. “o que tendes realizado” (Vulgata: “vossos trabalhos”). Paulo, nas suas cartas, colocando-se num ponto de vista diferente, distingue e até mesmo opõe a fé e as obras (Gl 2,16 etc., cf. o contrário em Tg2,14-26); Jo reduz todas as obras do crente à obra de fé (cf. Jo 6,29): estas obras designam portanto, aqui, a profissão de fé em Jesus Cristo e a fidelidade à sua doutrina (vv. 7.9). As expressões “perder o fruto de suas obras e receber plena recompensa” devem ser entendidas no sentido escatológico, ou seja perder ou ganhar a vida eterna.

“Permanece na doutrina”, pode tratar-se tanto da doutrina ensinada por Cristo como da doutrina a seu respeito (cristologia).

“Mas passa além”,alusão aos doutores da mentira, que ultrapassam o ensinamento recebido “desde o começo”. Estes hereges julgavam-se “avançados”, pretendendo ultrapassar os limites do ensinamento apostólico (1Jo 2,18.23); para isto entregavam-se ao jogo de meras especulações (cf. 1Tm 6,4; 2Tm 2,16; Tt 3,9; etc.).  Uma coisa é avançar no conhecimento e penetração do mistério e da doutrina de Cristo (cf. Jo 16,13; Ef 3,18s), outra coisa é “ultrapassar”, afastando-se e apartando-se do ensinamento autêntico.

“Possui a Deus… possui o Pai e o Filho”;a pregação apostólica pode abrir o coração das pessoas por um discernimento e uma experiência intelectual: “possuis a ciência” (1Jo 2,20; 1Cor 2,10-15). “Possuir o Deus” ou “possuir o Pai e o Filho” quer dizer ter conhecimento dele e comunhão com ele (cf. Jo 14,7-9; 17,26).Cf. 1Jo 2,23-24:Quem é mentiroso, senão aquele que nega que Jesus é o Cristo? O Anticristo é aquele que nega o Pai e o Filho. Todo aquele que nega o Filho, também não possui o Pai. Quem confessa o Filho, possui também o Pai” (vv. 22-23).

Igual ao quarto evangelho e a 1Jo, a carta fala da união do Pai e do Filho. Quem nega que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, também “não possui o Pai”, é “mentiroso”, é o Anti-Cristo (cf. 1Jo 2,18;Jo 4,44 fala do diabo como o pai da mentira; cf. 2Ts 2,4; Mc 13,21-22p).

A heresia gnóstica (doutrina falsa: salvação apenas pelo conhecimento, não pela encarnação) dos anticristos (v. 7; cf. 1Jo 2,18) não negava, como faziam os judeus, a dignidade messiânica do homem Jesus, mas queria separar o Cristo celeste deste ser tido como humano demais que se chamava Jesus de Nazaré (cf. 4,2-3; 2Jo 7.9).

Estes pregadores «avançados» negam que Jesus como ser humano seja o Messias (Cristo) enviado por Deus e deixam de lado o mandamento do amor mútuo, rompendo consequentemente sua relação com Deus. Em poucas palavras, pregam um conhecimento elevado que não necessita da fé em Jesus nem do seu evangelho de amor. O Ancião é radical: proíbe que a comunidade mantenha qualquer relacionamento com esses impostores (vv. 10-11, omitidos pela nossa liturgia); Mc 9,38 é mais tolerante, mas a situação era outra.

Evangelho: Lc 17,26-37

Continuamos na segunda parte do discurso escatológico, peculiar a Lc, que distinguiu nitidamente nas predições de Jesus o que concerne à destruição de Jerusalém em 70 d.C. na Guerra Judaica (21,6-24) e o que se refere à vinda (parusia)gloriosa de Jesus no fim dos tempos (17,22-37). Certas passagens encontram-se também no grande discurso escatológico de Mt 24,5-41, que combinou, como em outros lugares (cf. Lc 10,1; 11,39), duas fontes (Mc 13 e Q), distintas em Lc (cf. Mt 24,1).

Nos vv. 23-24 Jesus alertou sobre a confusão por falsas profecias, agora critica a indiferença e falta de preocupação.

Como aconteceu nos dias de Noé, assim também acontecerá nos dias do Filho do Homem(v. 26).

“Dia” (cf. v. 31) é mais bíblico (“Dia de Javé”, cf. Am 5,18; 1Cor 1,8 etc.) do que o termo de Mt24,3.37,Parusia (“vinda”, presença de uma visita oficial; tributário do vocabulário helenístico, pelos cristãos aplicado à volta de Cristo).

Eles comiam, bebiam, casavam-se e se davam em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca. Então chegou o dilúvio e fez morrer todos eles. Acontecerá como nos dias de Ló: comiam e bebiam, compravam e vendiam, plantavam e construíam. Mas no dia em que Ló saiu de Sodoma, Deus fez chover fogo e enxofre do céu e fez morrer todos. O mesmo acontecerá no dia em que o Filho do Homem for revelado(vv. 27-30).

Será como no tempo do dilúvio (Gn 6,11-13.17; 7,21-24) ou da catástrofe da Pentápole (com Sodoma e Gomorra, cf. Gn 18,20s; 19,24s; Dt 32,32s; Is 1,10; Jr 23,14; Lm 4,6; Ez 16,45-59; 2Pd 2,6s; Jd 7).

Enquanto o povo está ocupado com os assuntos da vida e despreocupado de assuntos transcendentes, sobrevém o julgamento. É interessante a síntese descritiva da vida cotidiana (vv. 27-28): sustento (comer e beber) e família (casamento, cf. 20,34), comprar e vender (economia), plantar (agricultura), construir (vida urbana). Não há nada de errado nestas atividades, mas as pessoas foram eliminadas porque não fizeram nada além; não seu cotidiano não cabia Deus.

Aliás, “Deus fez chover (lit. chuveu) … e fez morrer”; no texto aqui citado (Gn 19,24)trata-se de Deus que fez chover. Segundo o costume palestinense, Jesus não menciona Deus tanto mais por ser o texto conhecido.

O juízo se dará pela água (dilúvio) e pelo fogo (cf. 2Pd 3,5-7 numa interpretação especial). Será julgamento de separação (vv. 34s), como sucedera já no Egito: “Eu distinguirei entre meu povo e teu povo” (Ex 8,19; cf. 9,4.7; cf. Mt 25,31s: ovelhas a direita, cabritos a esquerda), como anuncia Is 65,13-15: “Meus servos cantarão de pura alegria e vós gritareis de pura dor”.

Nesse dia, quem estiver no terraço, não desça para apanhar os bens que estão em sua casa. E quem estiver nos campos não volte para trás. Lembrai-vos da mulher de Ló. Quem procura ganhar a sua vida, vai perdê-la; e quem a perde, vai conservá-la (vv. 31-33).

Lc copia Mc 13,15s falando das pessoas no terraço e nos campos. Estas advertências ressaltem o caráter temível e inelutável desse Dia (cf. Jr 4,5; 6,1; 48,6; 49,8.30; 51,6).

Nesses momentos de crise não se deve confiar em falsas referências, pois a parusia do Filho do Homem será celeste (“nas nuvens”, 21,27p; Dn 7,13) e visível para todos, como “relâmpago”(v. 24) que alumia toda a abóbada celeste e ofusca a terra (cf. Sl 77,19). Então será preciso arriscar tudo, até a vida, para salvar-se (v. 33) e“não voltar para trás”; não se deve deter em recolher pertences que já não servem (v. 31), nem olhar para trás como a mulher de Ló que se virou e virou uma estátua de sal (Gn19,17.26; Sb 10,7).

A Bíblia do Peregrino (p.2515) comenta: Noé preparou-se para salvar-se na arca, Ló fugiu precipitadamente. Há momentos urgentes em que atarefar-se com medidas de segurança é entregar-se à catástrofe, ao passo que arriscar tudo é salvação. O hebraico o afirma assim (literalmente): “Tomarei minha carne em meus dentes, porei minha alma em minha palma” (Jó 13,14).

“Quem procura ganhar a sua vida, vai perdê-la…” (v. 33), Lc repete aqui a frase de 9,24 a respeito do seguimento à cruz, só aqui emprega um termo do AT grego que significa “obter” ou “deixar a vida salva” (Ex 1,17s; Jz 8,19; 1Sm 29,9.11; 1Rs 20,31; 2Rs 7,4; cf. At 7,19). No grego profano, “conservá-la” significa “gerar a vida nova”. Lc pode ter pensado na vida nova (o “ser”) adquirida por quem sacrifica a própria vida terrestre (o “ter”, o “aparecer”).

A Nova Bíblia Pastoral (p.1279) comenta: Diante da preocupações quanto ao fim dos tempos, Jesus enfatiza que o mais importante é a firmeza em relação aos compromissos do discipulado, baseados na oferta da vida a serviço dos demais.

Eu vos digo: nessa noite, dois estarão numa cama; um será tomado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo juntas; uma será tomada e a outra será deixada (vv. 34-35).

Julgamento em grego significa distinguir e separar (o bem do mal; o símbolo é a espada). Lc refere-se ao doméstico moinho de mão, acionado por duas mulheres de uma só vez (Jr 25,10). Uma pessoa de duas será “tomada”, para o reino (21,36; 1Ts 4,17) ou para ser eliminado (Mt 13,41-43)? O sentido do conjunto da frase não muda. A forma passiva deixa pensar em anjos executores do juízo (cf. 9,26; Mc 13,26s; Mt 13,41-43).

Dois homens estarão no campo; um será levado e o outro será deixado (v. 36).

Este v. 36 é um acréscimo de apenas alguns manuscritos (segundo Mt 24,40) e omitido pela maioria das Bíblias.

Os discípulos perguntaram: “Senhor, onde acontecerá isso?” Jesus respondeu: “Onde estiver o cadáver, aí se reunirão os abutres”(v. 37).

Os fariseus perguntaram sobre a data, “quando” (v. 20); os discípulos perguntam “onde”, pelo lugar do julgamento, talvez por referência ao “vale de Josafá”(Jl 4,2),perto de Jerusalém onde Deus julgará as nações (cf. Jl 4,11-16).

A Bíblia do Peregrino (p.2515) comenta: A resposta de Jesus continua sendo evasiva. A imagem parece ser eco de Ez 39,17: a grande matança do inimigo invasor atrai as aves do céu: “Dizei a todas as aves e às feras selvagens: Reuni-vos e congregai-vos, vinde ao banquete que vos preparei”.

As aves de rapina aparecem muitas vezes nas profecias de julgamento do AT (Is 18,6; 34,15-16; Jr 7,33; 12,9; 15,3; Ez 39,17). No contexto presente, esta imagem significa que ninguém escapará ao julgamento como nenhum ser mortal pode fugir da morte.

Mas Lc distingue claramente: Há um tempo próximo da paixão, há um tempo de espera da Igreja, há um dia final de julgamento.

O site da CNBB comenta: Devemos estar sempre prontos para o nosso encontro com Jesus, e este encontro, na verdade, acontece todos os dias, quando ele vem até nós na pessoa dos fracos, dos pobres, dos oprimidos, dos excluídos, dos necessitados, enfim, de todos os que não são amados, são rejeitados pela sociedade e precisam de alguém que manifeste o amor que Deus tem por eles. O dia do Filho do Homem é o dia da vivência do amor, da caridade e da fraternidade para com todos. O verdadeiro cristão é aquele que faz de todos os dias da sua vida o dia do Filho do Homem.

Voltar