14 de agosto de 2016 – 20º Domingo Ano C

1ª Leitura: Jr 38,4-6.8-10

A 1ª leitura nos apresenta a controvérsia que o profeta Jeremias causou no pais, anunciando a Palavra de Deus; por isso é perseguido e sofre, como depois Jesus (cf. evangelho de hoje). Jeremias teve a missão difícil de anunciar a inevitável destruição de Jerusalém pelo exército babilônico (caldeu), visto como castigo de Deus pelos pecados dos reis e do povo.

Nabucodonosor, rei da Babilônia já havia cercado Jerusalém em 598/597 a.C., o rei Joaquin se rendeu e foi levado junto com boa parte do povo (entre eles, Ezequiel) a Babilônia. Nabucodonosor o substituiu pelo seu tio Sedecias, filho de Josias. Mas em 589/588, este se revoltou, achando que se poderia livrar da submissão confiando na outra potência, o Egito. Nabucodonosor voltou e começou assediando Jerusalém. Por um breve período, ele levantou a cerca, porque o egípcios avançaram (37,5). Mas desde o cerco da cidade, Jeremias continua com a mesma mensagem: “Quem ficar nesta cidade morrerá pela espada, pela fome e pela peste. Quem passar para os caldeus, será tomado como despojo, mas conservará a vida. Assim diz o Senhor (lit. Javé): Esta cidade será entregue nas mãos do exército do rei da Babilônia, para a que a conquiste” (vv. 2-3; cf. 21,9).

Disseram os príncipes ao rei: “Pedimos que seja morto este homem; ele anda com habilidade lançando o desânimo entre os combatentes que restaram na cidade e sobre todo o povo, dizendo semelhantes palavras; este homem, portanto, não se propõe o bem-estar do povo, mas sim a desgraça” Disse o rei Sedecias: “Ele está em vossas mãos; o rei nada vos poderá negar” (v. 4-5).

Erraram os falsos profetas da corte, que haviam anunciado paz e independência (cf. 37,19; cf. cap. 28), mas os príncipes (nobres dignitários) não querem aceitar a mensagem de Jeremias que parece fatalista e desmobiliza a resistência militar; “lançando o desânimo” (lit. torna fracas (ou abre) as mãos (cf. 6,24; Jó 12,21).

A Bíblia do Peregrino (p. 1940) comenta: A posição dos dignitários é tão radical quanto a do profeta: está em jogo o bem-estar ou a desgraça do povo. Pelo bem de todo o povo, é preciso eliminar um (cf. Jo 11,50; 18,14). A quem compete definir o que agora é o bem do povo? … O rei compreende que, com ou sem razão, eles têm mais poder até do próprio rei. Não é por culpa de Sedecias? Podemos dizer que os ministros são mais culpados?

Na versão grega, esta última frase é uma reflexão do narrador: “pois o rei nada podia contra eles.”

Agarraram então Jeremias e lançaram-no na cisterna de Melquias, filho do rei, que havia no pátio da guarda, fazendo-o descer por meio de cordas. Na cisterna não havia água, somente lama; e assim ia-se Jeremias afundando na lama (v. 6).

Até o cap. 37, Jeremias sofria ataques verbais, mas ainda não foi colocado na prisão. Em 37,15, “os príncipes se irritaram contra Jeremias, bateram nele e o aprisionaram na a do escriba Jônatas, que eles tinham transformado em prisão” (37,16). Após uma conversa secreta com Jeremias, “Sedecias ordenou que custodiassem Jeremias no pátio da guarda e, cada dia, lhe dessem um broa de pão…, até que não houvesse mais pão na cidade”. Mas os príncipes não ficaram satisfeitos, e o jogaram na lama de uma cisterna.

A Bíblia do Peregrino (p. 1940) comenta: Equivale a uma condenação à morte lenta: escuridão, fome, solidão (cf. Sl 40,3 e 69, 3.15). Neste momento, o Senhor está com Jeremias, como lhe havia prometido em 1,8? Seus inimigos não o derrotaram?

Na Antiguidade e Idade média, não havia muitas prisões. Serviam apenas para custodiar o presos até o julgamento, no qual foi decreto a pena de morte, castigo físico, exílio etc. A pena de reclusão e privação da liberdade é uma invenção moderna e fez crescer a demanda de presídios.

Ebed-Melec saiu da casa do rei e veio ter com ele, e falou-lhe: ”Ó rei, meu senhor, muito mal procederam esses homens em tudo o que fizeram contra o profeta Jeremias, lançando-o na cisterna para aí morrer de fome; não há mais pão na cidade” (vv. 8-9).

Ebed-Melec, um servo do rei e eunuco da Etiópia (cuchita, v. 7), soube da situação de Jeremias. A Bíblia do Peregrino (p. 1940) comenta: É significativo que seja um estrangeiro, embora influente e com fácil acesso ao rei. Sedecias “estava sentado” despachando assuntos, concedendo audiências, administrando a justiça (22,3.15) … São palavras corajosas, pois o empregado está acusando personagens influentes na política. Coloca o assunto puramente em termos de justiça. O rei encontra no estrangeiro um exemplo e um apoio para sua fraqueza.

O rei deu, então, esta ordem ao etíope Ebed-Melec: “Leva contigo trinta homens e tira da cisterna o profeta Jeremias, antes que morra” (v. 10).

A Bíblia do Peregrino (p. 1941) comenta: E por meio do sentido da justiça e da coragem de um estrangeiro, o Senhor cumpre sua promessa a seu profeta. Contudo, a libertação é parcial, porque Sedecias não se atreve a romper suas amarras.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1000) comenta o cap. 38: O episódio mostra a existência de duas posições conflitantes na corte: optar pelo Egito, rebelando-se contra a Babilônia; ou estar com esta, aceitando a vassalagem. O Cuchita (etíope) Ebed-Melec e o oficial (eunuco) do rei são contra a política suicida do grupo favorável ao Egito.

Quando a profecia de Jeremias se cumpre (cf. cap. 39; 2Rs 39) com a nova cerca de Jerusalém, Sedecias, seus filhos e os nobres da cidade serão mortos, a cidade e o templo incendiados (587/586 a.C). Ebed-Melec, porém, será salvo (39,15-18)

 

2ª Leitura: Hb 12,1-4

Ouvimos no domingo passado de Abraão como testemunha de uma fé que espera coisas que ainda não se vê (11,1-2.8-19). Mas o autor anônimo de Hb apresentou muito mais testemunhas numa longa lista dos personagens do Antigo Testamento (AT) no capítulo anterior (11), para motivar a comunidade desanimada.

Rodeados como estamos por tamanha multidão de testemunhas, deixemos de lado o que nos pesa e o pecado que nos envolve. Empenhemo-nos com perseverança no combate que nos é proposto, com os olhos fixos em Jesus, que em nós começa e completa a obra da fé (vv. 1-2a).

“Rodeados como estamos por tamanha multidão (lit. nuvem) de testemunhas”. Infelizmente nossa tradução litúrgica substituiu a expressão poética “nuvem” por “tamanho multidão”, mas hoje se fala até da “nuvem” da internet (informações guardadas no ar, como acima da cidade de Londres no tempo das últimas olimpíadas). Nosso saudoso bispo D. Ricardo (falecido em 2010) se lembrou desta expressão quando foi visitado por inúmeras pessoas antes de partir. A nuvem é símbolo da presença do Deus invisível no AT (Ex 13,21s; 14,24; 19,9; 24,15s; 33,9s; 34,5; 40,34-38; 1Rs 8,10-12; Ez 1,4; 10,4; Dn 7,13 etc.; cf. Mc 9,7p; 13,25p; Lc 1,35; At 1,9).

É melhor deixar-se levar por esta nuvem (ou onda, se quiser) da fé e deixar “de lado o que nos pesa e o pecado que nos envolve” A comunidade estava sofrendo perseguições (10,32-34) e havia desistência (10,23-25; cf. 6,4-8; 10,26-31). A nuvem das testemunhas da fé deve envolver mais do que o pecado e as dificuldades.

“Empenhemos (lit.: corramos) com perseverança no combate que nos é proposto” (v. 1). Nossa tradução litúrgica também não transmitiu esta comparação poética com um atleta, A persistência na corrida, combate ou provação é uma imagem comum na cultura greco-romana e no NT (cf. 10,32; 1Cor 9,24-27; Fl 3,12; 1Tm 6,12; 2Tm 2,5).

Na competição de uma corrida não se deve relaxar ou desviar a atenção, mas perseverar “com os olhos fixos” na meta (cf. Lc 4,20), “em Jesus, que em nós começa e completa a obra da fé” (v. 2a). Outros traduzem: “o autor e realizador da fé” (cf. 2,10; Is 41,1; 4,6; Ap 1,8.17; 2,8; 21,6; 22,13). Nossa fé é dom de Deus, resposta à sua iniciativa; Jesus também completará o que falta, levando-a perfeição através da sua mediação como sumo sacerdote. Com sua obediência ao Pai e doação da própria vida, Jesus é exemplo máximo da fé, perseverança e superação (cf. 4,7-10)

Em vista da alegria que lhe foi proposta, suportou a cruz, não se importando com a infâmia, e assentou-se à direita do trono de Deus (v. 2b).

Em meio versículo, o autor apresenta a paixão e a ressurreição (à semelhança do hino de Paulo em Fl 2,6-11): “Em vista (ou: em vez) da alegria que lhe foi proposta, suportou a cruz…” (cf. 2 Cor 8,9). Não é claramente definida, se se trata da beatitude anterior à sua vinda à terra (cf. Fl 2,6: Jo 1) ou do êxito messiânico que poderia ter conseguido (ser rei; cf. Jo 6,15; Mc 8, 29-32; 10,45; 11,9-10). “Não se importando com a infâmia” (cf. 13,13) “sentou-se à direita do trono de Deus” (cf. 1,3; 8,1; 10,12; Mc 14,62p cita Sl 110,1; cf. At 2,33).

Pensai pois naquele que enfrentou uma tal oposição por parte dos pecadores, para que não vos deixeis abater pelo desânimo. Vós ainda não resististes até ao sangue na vossa luta contra o pecado (vv. 3-4).

Parece que o autor da carta queria preparar a comunidade para uma tribulação ou perseguição maior que poderia abalar a sua fé (cf. Ap 3,10). “Pensai, pois naquele que enfrentou tal oposição” (lit. “contradição”, cf. Lc 2,34), “para que não vos deixeis abater pelo desânimo. Vós ainda não resistis até o sangue na vossa luta contra o pecado” (vv. 3-4). Pode ser uma alusão ao martírio, pior que as coisas que a comunidade já enfrentou (cf. 10,32-34). O contrário da fé é o pecado e o medo. Quem é cristã(o), deve lutar contra o pecado e o medo e perseverar na fé, seguir Jesus e carregar a cruz se for necessário.

Evangelho: Lc 12,49-53

No evangelho de hoje, Jesus continua falando a seus discípulos, agora mudando de foco: antes falou sobre a vigilância (responsabilidade) necessária quanto à parusia (sua volta no fim do mundo; cf. vv. 35-48), agora sobre sua própria crise no sofrimento (v. 50) e a confusão e a divisão apocalípticas que se fazem sentir no tempo presente (vv. 51-53).

Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso! Devo receber um batismo, e como estou ansioso até que isto se cumpra! (v. 49-50).

Só Lc transmite esta frase sobre o fogo e este batismo, diferente daquele que João Batista administrava (cf. Mc 10,38; Lc 3,16p). O fogo que se fala aqui deve ser para Jesus aquele que acompanha o julgamento de Deus em cenas escatológicas (Is 66,15s; Ez 38,22; 39,6; Ml 3,19; Dn 7,9-11; Jt 16,17). Lc deve pensar no batismo no Espirito e no fogo em Pentecostes (3,16; At 2,3.19).

Em Mc 10,38, o batismo é posto em paralelo com a taça do sofrimento para evocar o martírio (cf. Mc 14,36). Aqui, o batismo está em paralelo com o fogo, num contexto que evoca o julgamento (cf. 3,16-17p). A associação de água e fogo como instrumentos do julgamento é reencontrada em 17,26-29 (Noé, Ló; cf. 2Pd 2,5s; 3,6s).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1955) comenta: Esse fogo, evidentemente simbólico, pode assumir significados diferentes, conforme os contextos: O Espírito Santo ou ainda o fogo que purificará e abrasará os corações e que deve ser aceso na paixão, na cruz. O v. 50 favoreceria essa última interpretação, mas os vv. 51-53 sugerem antes um estado de guerra espiritual que o aparecimento de Jesus suscita.

A Bíblia do Peregrino (p. 2501) comenta: Fogo e água podem resumir qualquer tipo de perigo (Is 43,2). Será que as duas imagens se referem aqui ao mesmo fato, a paixão próxima? Em 3,16p, João Batista falou de outro batismo “com Espírito Santo e fogo”, fogo de julgamento e purificação [cf. 1Pd 1,7; Ap 3,18]; Is 4,4 fala de uma purificação com “vento” (pneuma) de julgamento: aniquila ou purifica e limpa. A pregação de Jesus já acendeu esse fogo (cf. Is 1,25; 9,17; Zc 13,9). Cabe referir os versículos à paixão como julgamento que vai separar. O batismo aqui é a grande prova, que alude à paixão (cf. Sl 42,8; 69,2; 124,40) [cf. Mc 10,38-39p; Is 43,2; Ct 8,7]. Outros distinguem: o batismo é a paixão, o fogo é Pentecostes; Jesus anseia que chegue o Espírito purificador, mas se aflige diante da proximidade da paixão [cf. a aflição de Jeremias em Jr 20,9]. E o cristão tem de seguir a mesma trajetória.

Vós pensais que eu vim trazer a paz sobre a terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer divisão (vv. 50).

Estes versículos, que tem um paralelo em Mt 24,34-36, apoiam a interpretação do fogo como julgamento, “divisão”; a palavra grega krinein (daí a palavra “crise”) significa discernir, dividir, julgar, separar (o bem do mal). Mt 10,34 diz mais concretamente: “trazer a espada” (símbolo da justiça que divide) que deve ser primitivo.

Para Lc, a “paz” é o dom messiânico por excelência e ele insiste nisso (1,79; 2,14.29; 7,50; 8,48; 10,5s; 11,21; 12,51; 14,32; 19,38.42; 24,36; cf. Ef 2,14).  Mas a paz de Jesus não é uma paz carnal e fácil como os falsos profetas sonhavam (6,22-23.26; cf. Jo 14,27; Jr 6,14; 8,11; Ez 13,10.16).

Pois, daqui em diante, numa família de cinco pessoas, três ficarão divididas contra duas e duas contra três; ficarão divididos: o pai contra o filho e o filho contra o pai; a mãe contra a filha e a filha contra a mãe; a sogra contra a nora e a nora contra a sogra (vv. 50-53).

A Bíblia do Peregrino (p. 2502) comenta: Diante de Jesus as pessoas terão de tomar partido, como Simeão anunciou (2,34-35), passando por cima dos laços familiares. Recorda-se, na tremenda cena de Ex 32, o grito de Moisés: “A mim os do Senhor!” e a matança dos culpados, sem perdoar nem “irmão, parente ou vizinho”. A divisão que Jesus provocará atravessará grupos humanos naturais… A expectativa da paz messiânica (Is 2,2-5; 11,1-10; Zc 9,10) não pode ignorá-lo.

Na tradição profética, a “divisão” das famílias é uma característica da tribulação do fim dos tempos (Mq 7,6; Ag 2,22; Ml 3,24). Jesus voltará a isso no discurso sobre o fim do mundo em 21,16 (Mc 13,12p). Para Lc e sua comunidade era um consolo que as divisões nas famílias por causa da fé fazem parte da vida cristã e do plano divino; o próprio Jesus as experimentou (cf. 4,16-30; 8,19-21p; Mc 3,21; Jo 7,5).

O site da CNBB comenta: A vinda de Jesus cria um divisor de águas na história dos homens. De um lado encontramos os que são dele e, de outro, os que são do mundo. A partir dessa divisão se estabelece o conflito, que é caracterizado principalmente pela diferença de valores, e exige de todos os que abraçam a fé a consciência de suas consequências, entre elas a de ser odiado pelo mundo. Como cristãos, devemos enfrentar o conflito com o mundo, mas não com as mesmas armas do mundo, uma vez que estas levam à morte, o grande valor do mundo. Devemos enfrentar o mundo com a fé, a espiritualidade, a entrega, a partilha, a doação, a fraternidade, o testemunho, o profetismo, que são valores do Reino e levam à vida.

 

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