14 de novembro de 2017 – Terça-feira, 32ª semana

Leitura: Sb 2,23-3,9

Durante esta semana ouvimos leituras do livro de Sabedoria, sem dúvida o livro mais novo do AT. O título «Sabedoria de Salomão» é fictício, pois seu autor, um judeu de Alexandria no Egito, escreveu o livro cerca de 50-30 a.C. na língua grega (por isso não entrou na Bíblia hebraica dos judeus e nem na dos protestantes). A cultura grega com suas filosofias (filo-sofia quer dizer “amor pela sabedoria”), costumes e cultos pagãs de uma parte, e com a hostilidade e, às vezes, perseguição aberta de outra (cf. 1-2Mc), constituía uma ameaça constante à fé e à cultura e religião dos muitos judeus que habitavam no Egito.

No cap. 2, o autor falava sobre a perseguição e morte do justo (“filho de Deus”, cf. 2,13.16.18; cf. leitura da 4ª feira da 4ª semana da Quaresma) pelos “insensatos” ou “perversos”, ou seja, os que não acreditam numa vida ou justiça após a morte.

No mundo greco-romano, os poderosos oprimiam os pobres e sacrificavam os justos. Como não acreditavam na imortalidade, diziam que o justo era um fracassado. Na leitura de hoje, o autor abre novo ato com nova situação: a morte não é o último acontecimento na vida do justo, mas abre um entreato para a nova e definitiva situação. Toma o justo onde o deixaram os perversos: condenado e morto (2,17-20). Fica algo dele? Na convicção dos adversários, o assunto terminou, provaram sua tese sobre a inutilidade da justiça.

A Bíblia do Peregrino (p. 1530) comenta: O autor assegura a continuidade com uma série de repetições verbais (em grego) ou sinonímicas. Os perversos faziam uma prova com o justo (2,17.19); na realidade, era Deus que submetia à prova (3,5.6); eles o submetiam tormentos (2,19), mas o tormento não o tocou (3,1); a vida era uma centelha (2,2), a nova vida é um incêndio glorioso (3,7); os perversos atropelavam o desvalido (2,10), os justos submetem os povos (3,8); os perversos se declaravam fraco inútil (2,11), agora se vê que as obras deles são inúteis (3,11); o justo olhava o perverso como escória (2,16), agora o justo é ouro acrisolado (3,6); o justo estava nas mãos do perverso (2,18), agora está na mão de Deus (3,1). A “esperança” (3,4) faz compreender a verdade (3,9).

Deus criou o homem para a imortalidade e o fez à imagem de sua própria natureza; foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo, e experimentam-na os que a ele pertencem (2,23-24).

Pelo tema, esses dois versículos se ligam diretamente com 1,13-14. Deus criou o ser humano “para a imortalidade”, como capacidade e destino, vinculado ao fato de ser “imagem” de Deus (Gn 1,26-27), “de sua própria natureza” (lit.: “de sua própria propriedade”, var.: “de sua própria eternidade”, ou: “de sua própria semelhança”). O Deus da vida comunica vida e imortalidade a suas imagens.

O autor chama de “diabo” (traduz, na tradução grega LXX, o hebraico satan; cf. Jó 1,6) a serpente do paraíso (Gn 3; Ap 12,9; 20,2) ou a “inveja” homicida de Caim (Gn 4,5-8; cf. Mc 15,10; Jo 8,44; Rm 5,12; Hb 2,14). O autor remonta à origem da morte, conceito de duas dimensões: a morte física, patrimônio de todo ser humano (7,1; Gn 2-3; Ez 18,28-32; Rm 5,12-21) e a morte escatológica, definitiva, própria dos perversos neste livro (cf. Dt 32,39; Is 45,7; Ap 21,8: “segunda morte”, cf. Ap 20,6.14). Pelo contexto se vê que o autor pensa aqui na morte definitiva, não na morte que dá passagem à vida, como acontecerá com os justos.

A vida dos justos está nas mãos de Deus, e nenhum tormento os atingirá (3,1).

Sua vida “está nas mãos de Deus”, isto é, sob sua proteção (cf. Dt 33,3; Is 51,16; Jo 10,28-29) e sua dependência (cf. Jó 12,10). A expressão recorda Sl 31,6.16 (cf. a morte de Jesus e de Estêvão em Lc 23,46; At 7,59).

Aos olhos dos insensatos parecem ter morrido; sua saída do mundo foi considerada uma desgraça e sua partida do meio de nós, uma destruição; mas eles estão em paz (vv. 2-3).

É o julgamento errado dos “insensatos” de 1,3.5; 2,1.21. O autor chama a morte do justo de “trânsito”, “saída”, “partida”, (Lc 9,31; 22,22); mais que eufemismos, são os nomes apropriados.

Se os justos estão nas mãos de Deus, “estão em paz”. Não é só uma paz negativa de acabar (Jó 3,13-19; Eclo 41,2), e sim a paz positiva e plena (vv. 8-9). A “paz” não significa apenas a ausência de guerra ou de todo mal (Is 57,2; Jó 3,17-18), mas um estado de segurança e felicidade sob proteção (v. 1) ou na intimidade (v. 9) de Deus.

Aos olhos dos homens parecem ter sido castigados, mas sua esperança é cheia de imortalidade; tendo sofrido leves correções, serão cumulados de grandes bens, porque Deus os pôs à prova e os achou dignos de si (vv. 4-5).

Parecem “castigados”, palavra frequente no livro, em contextos de retribuição. Uma esperança cheia (Hb 6,11) de “imortalidade” (1,15).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1207) comenta: A esperança (Rm 5,2; 8,18-23; 1Ts 4,13s, etc.) desempenha um papel capital na vida dos justos e tem por objetivo a imortalidade (athanasia). Essa palavra, até aqui inusitada no AT, mas familiar aos gregos, designava quer a imortalidade da lembrança (cf. 8,13), quer a da alma. O autor a empregada aqui no segundo sentido, mas para significar a imortalidade bem-aventurada na sociedade de Deus, como recompensa pela justiça (1,15; 2,23). Deste modo ele precisa as esperanças do Salmista, que não se resignava a perder, pela morte, a intimidade de Deus (Sl 16,10; 17,15; 73,25s).

Há uma desproporção de “correções leves“ (v. 5) e grandes benefícios, como em Rm 8,18 (sofrimentos presentes e glória futura). O verbo grego indica o sofrimento imposto pelo educador (cf. Hb 12,5-11). Sobre a “prova”, pedra de toque e meio de purificação do justo, cf. Gn 22,1; Tb 12,13; Jó 1,2; Sl 66,10; 1Pd 1,6-7. “Dignos de Deus” é expressão audaz e magnífica (cf. Mt 10,37; 22,8; Lc 15,19). Poderia referir-se à “imagem” de Deus, que o justo soube conserva (2,23; cf. Lc 15,19).

Provou-os como se prova o ouro no fogo e aceitou-os como ofertas de holocausto; no dia do seu julgamento hão de brilhar, correndo como centelhas no meio da palha; vão julgar as nações e dominar os povos, e o Senhor reinará sobre eles para sempre (vv. 6-8).

“Como se prova o ouro” é expressão comum na Bíblia (Eclo 2,5; Sl 66,10; Is 1,25; 48,10; Zc 13,9; 1Pd 1,7); “como ofertas de holocausto”, indica a totalidade de entrega e aceitação e o caráter cultual dessa entrega (Sl 51,19; cf. Dn 3,39).

“No dia do seu julgamento” (v. 7), lit. “No dia da sua visita”, a palavra (cf. Ex 3,16) designa aqui uma intervenção favorável de Deus, suscetível de coincidir com um julgamento geral ou parcial. A própria expressão, que reproduz Jr 6,15; 10,15 (LXX); cf. Is 24,22, indica uma fase ulterior na condição das almas justas.

O verbo seguinte “brilhar” deve significar sua glorificação definitiva: a imagem do “esplendor” é escatológica em Dn 12,3 (brilho de astros); Is 60 e 62 (de Jerusalém). Se esta expressão se aplica em outros lugares aos eleitos ressuscitados (Dn 12,3; Mt 13,43), esta doutrina de uma ressurreição corporal não se explicita em nenhuma parte do livro (talvez velado em cf. 5,15-16; cf. a dificuldade de falar da ressurreição entre os filósofos em Atenas, At 17,31s)

Se o canavial “no meio da palha” alude a Ab 18 ou a Zc 12,6, então a segunda imagem fala do triunfo dos justos sobre os perversos, como em muitos textos bíblicos (cf. Is 1,31; 5,24; Na 1,10; Ab 18; Zc 12,6; Ml 3,19) a imagem simboliza os efeitos da cólera vingadora de Deus ou a desforra de Israel sobre os inimigos. Aqui ela é transposta e significa talvez a participação dos justos glorificados no extermínio do mal, como prelúdio do estabelecimento do reino de Deus, ao qual estão associados (v. 8).

“Vão julgar as nações e dominar os povos” (v. 8); em textos escatológicos e apocalípticos hebraicos, é comum falar do triunfo final de Israel, constituído senhor do todos os povos (cf. Sl 149,7-9), sob reinado imediato do Senhor seu Deus; cf. 1Cor 6,2 (que dá por sabida a doutrina); Ap 20,4-6 (o reino dos mil anos com Cristo); Ap 2,26; os apóstolos julgarão sobre Israel (Mt 19,28).

Os que nele confiam compreenderão a verdade, e os que perseveram no amor ficarão junto dele, porque a graça e a misericórdia são para seus eleitos (v. 9).

A frase expressa com brevidade e densidade a relação mútua de amor. Uma “verdade” que justificará sua confiança e lhes revelará todo o desígnio de Deus. Segundo a tradução adotada, a felicidade dos eleitos é feita ao mesmo tempo de conhecimento e de amor.

 

Evangelho: Lc 17,7-10

Depois da sentença sobre a fé (vv. 5s), talvez o evangelista tenha pensado sobre o pensamento judaico, especialmente dos fariseus (cf. 18,9-14) que esperam recompensa e retribuição por suas obras. Mas Jesus se dirige ainda aos discípulos (v. 1). Será que na comunidade de Lc já se instalou um pensamento classista entres os líderes?

Se algum de vós tem um empregado que trabalha a terra ou cuida dos animais, por acaso vai dizer-lhe, quando ele volta do campo: “Vem depressa para a mesa?” Pelo contrário, não vai dizer ao empregado: “Prepara-me o jantar, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois disso tu poderás comer e beber?” (vv. 7-8).

A pergunta é retórica (cf. 11,5.11p; 12,25p; 14,28; 15,4). A resposta reconhece a dureza da sociedade antiga. Comparamos com essa regra humana o paradoxo evangélico: Se o Senhor Jesus é aquele que serve aos empregados (12,37; 22,27; Jo 13,1-16), como é que seu discípulo vai exigir alguma coisa? O serviço no reino é gratuidade.

Será que vai agradecer ao empregado, porque fez o que lhe havia mandado? Assim também vós: quando tiverdes feito tudo o que vos mandaram, dizei: “Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer” (vv. 9-10).

“Servos inúteis” (lit. “bons para nada”; cf. Mt 25,30), esse qualificativo parece inadequado ao contexto, no qual o servo, apesar de tudo, é útil, mas aplica-se perfeitamente aos discípulos: ninguém é indispensável para o serviço do Senhor.

A Bíblia do Peregrino (p. 2513) comenta: A parábola, com toda dureza da cena descrita, vem sublinhar a relação de serviço do discípulo. Não se pode alegar direitos nem exigir remuneração. O que lhe compete é simplesmente estar sempre a serviço de Jesus, com a humildade de que reconhece a desproporção entre sua prestação e a tarefa encomendada.

A parábola não desmente nossa relação filial com Deus que é nosso Pai (11,2p; Mt 5,48) nem o salário da graça (cf. Mt 20,1-16), mas recomenda aos discípulos uma atitude da humildade.

O site da CNBB comenta: Somos todos servos inúteis. Deus não precisa de nós, uma vez que ele pode, por si só, realizar todas as coisas. Mas Deus quis contar conosco, com a nossa colaboração, e isso não em vista da pessoa dele, mas sim em vista do nosso próprio bem, uma vez que, quando colaboramos com a obra da salvação da humanidade, estamos de fato participando de uma obra que não é humana, mas divina, o que se torna para nós causa de santificação e caminho de perfeição. O amor de Deus por nós é tão grande que faz da nossa inutilidade fonte de santificação e de vida nova, não só para nós mesmos, mas também para toda a Igreja, para todas as pessoas.

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