15 de agosto de 2017 – Terça-feira, 19ª semana

Leitura: Dt 31,1-8

A nossa liturgia saltou o código legal do Dt (caps. 12-26) e mais discursos (colocados na boca) de Moisés (27-30). Os caps. 31-34 formam uma espécie de conclusão geral ao conjunto do Pentateuco. Eles reúnem elementos de origem e épocas diversas, que foram ligados ao corpo do Dt por ocasião da sua última redação no (pós-) exílio. Nestes últimos capítulos se reconhece o estilo narrativo do discurso (prefácio) dos caps. 1-3 e as exortações no início do livro de Josué (cf. Dt 31,7-8; Js 1,5-6). Dois poemas foram adicionados a essa conclusão: o cântico do cap. 32 (o salmo responsorial de hoje: é Dt 32,3-4.7-9.12) e a bênção de Moisés do cap. 33. Nossa leitura de hoje retoma um fio narrativo interrompido nos últimos capítulos de Nm, cujo tema são as últimas disposições de Moises e sua morte.

Moisés dirigiu-se a todo Israel com as seguintes palavras: ”Tenho hoje cento e vinte anos e já não posso deslocar-me (v. 1-2a).

Moisés alega sua idade (mas em 34,7 menciona-se seu vigor). “Não posso deslocar-me”; a Bíblia Pastoral traduz “ser chefe”; lit. “sair e entrar”, esta expressão designa toda atividade de um chefe (cf. Nm 27,17; Dt 28,6; 1Sm 29,6; 2Rs 19,27).

Além do mais, o Senhor me disse: ‘Não atravessarás este rio Jordão’, É o Senhor teu Deus que irá à tua frente; ele mesmo, à tua vista, destruirá todas essas nações, para que ocupes suas terras. Josué passará adiante de ti, como disse o Senhor (vv. 2b-3).

Em Nm 20,12, Deus puniu a falta de fé de Moisés e Aarão decretando que não iam entrar na terra prometida; outro motivo está em Dt 1,37; 3,26; 4,21, a recusa do povo a subir de Cades a Canã (cf. Nm 14; cf. 4ª e 5ª feira da semana passada). A tríplice repetição do verbo “atravessar” resume o fato: tu não passarás, o Senhor atravessará adiante (1,30.33), Josué atravessará.

A apresentação de Josué, herói efraimita (Js 24,30), como sucessor de Moisés (cf. Dt 3,21-29), faz do Dt a ponte entre o Pentateuco (primeiros cinco livros da Bíblia, chamados Torá, Lei de Moisés) e a chamada história deuternomista (Js, Jz, 1-2Sm, 1-2Rs). Já em Nm 27,12-23 (redação sacerdotal), Josué foi indicado por Deus para ser o sucessor de Moisés (cf. Ex 17,8-13; 24,13; 32,17; 33,11; Nm 13,8; 14,6.30.38).

E o Senhor fará com esses povos o que fez com Seon e Og, reis dos amorreus, e com suas terras, que ele destruiu. Quando, pois, o Senhor os entregar a vós, fareis com eles exatamente o que vos ordenei (vv. 4-5).

A vitória sobre os povos amorreus da Transjordânia e seus reis, Seon e Og, está descrita em Nm 21,21-35. Em Dt 7,1-5, Deus (na teologia oficial de Josias) ordenou o que fazer com os sete povos de Canaã.

Sede fortes e valentes; não vos intimideis nem tenhais medo deles, pois o Senhor teu Deus é ele mesmo o teu guia, e não te deixará nem te abandonará” (v. 6).

É um fragmento de discurso militar com fórmula de oráculo de salvação.

Depois Moisés chamou Josué e, diante de todo Israel, lhe disse: ”Sê forte e corajoso, pois és tu que introduzirás este povo na terra que o Senhor sob juramento prometeu dar a seus pais, e és tu que lhe darás a posse dela. O Senhor, que é o teu guia, marchará à tua frente, estará contigo e não te deixará nem te abandonará. Por isso, não temas nem te acovardes” (vv. 7-8).

Esta fórmula de investidura de Josué indica a dupla missão próxima: ser chefe na conquista e repartir a herança (a terra prometida) entra as doze tribos de Israel. A Josué caberá dar cumprimento a uma das promessas patriarcais (Gn 12,7; 13,14s; etc.). Com estes dois versículos, o deuteronomista nos prepara para a leitura do livro de Josué, que vem a seguir (cf. as leituras de quinta-feira a sábado nesta semana).

Note-se que as instruções dadas ao povo (v. 6) e a Josué (vv. 7-8) são as mesmas: o chefe não está acima de ninguém; sua função é ser mediador entre Deus e o povo.

Como chefe militar e guia do povo, Moisés deixa Josué como sucessor (vv. 2-7.14.23). Como mediador da aliança e da Lei, deixa o texto escrito da Lei e o recomenda aos levitas (em seguida, além da nossa leitura, vv. 9-13.24-26). Como confidente do Senhor deixa a Tenda da Reunião (do Encontro; vv. 14-15). Sua voz mediadora da palavra de Deus fica gravada num cântico testemunhal para a posterioridade (vv. 19-22.28-30; cap. 32).

Saindo Moisés de cena, a direção do povo passará para Josué, mas o Senhor diz que ele mesmo – Deus – tomará a direção. Josué, de sua parte, deve ser forte e valente. Interessante que Deus diz que ele será o guia de Josué, mas que Josué deverá “ser forte e corajoso”. Significa que enquanto Deus nos guia, nós fazemos a nossa parte, criamos mais coragem e fazemos muitas coisas. Deus não quer que fiquemos passivos. Ele nos guia, mas nós não encruzamos os braços. Antes, assumimos muito mais a nossa missão.

 

Evangelho: Mt 18,1-5.10.12-14

No evangelho de hoje, inicia-se o quarto discurso de Jesus em Mateus, o cap. 18 (o último antes de partir para a Judéia; 19,1). O evangelista reúne várias instruções para seus leitores que devem ser uma comunidade de irmãos pequenos e humildes. Tema central é a atenção devida aos pequenos, necessitados, ofensores extraviados, e o valor da humildade, da compreensão, do perdão mutuo e da reconciliação. “Meninos e pequenos” repetem-se nos vv. 1.14, “irmãos” nos vv. 15.21.35. Na primeira parte, Mt copia e mescla Mc 9,33-37; 10,15.

Os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram: “Quem é o maior no Reino dos Céus?” (v. 1).

O protocolo da época era escrupuloso em designar procedências e definir classes. Os discípulos podem contagiar-se com este costume (23,8-12; cf. a preferência de Pedro 16,17s e dos três discípulos em 17,1s; cf. 20,20-28). Como será no reino de Deus, que é a nova comunidade em sua dimensão transcendente? A questão é grave devido ao afã em busca de riqueza, de superar-se e de superar, ao menos no confronto com os outros.

Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio deles e disse: “Em verdade vos digo, se não vos converterdes, e não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus. Quem se faz pequeno como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus (vv. 2-4).

A resposta de Jesus vai à raiz. Embora contraste com as pretensões da época, está na linha de múltiplas declarações do AT sobre exaltação e humilhação (cf. o cântico de Ana, 1Sm 2, e Sl 113 etc.). Especialmente interessante é Eclo 3,17-20 (19-26). O termo grego paídion (mesma palavra em 2,8-11; 11,16; 19,13s), além da idade, pode denotar o ofício: “menino, criança”, ou “criado, servente”, já que é capaz de responder ao chamado de Jesus.

No AT se destaca a falta de juízo nas crianças (Sb 12,24; 15,14; Eclo 30,1s), mas em Sl 8,3 e Sl 131,2 se fala delas como modelo de louvor e como exemplo de saber contentar-se. A criança colocada por Jesus no centro (Mc 9,36) é uma presença simbólica: no reino celeste todos serão pequenos, filhos de Deus e essa será sua grandeza. Pode-se comparar a primeira bem-aventurança (os pobres em espírito, 5,3).

E quem recebe em meu nome uma criança como esta, é a mim que recebe (v. 5).

Há aqui uma inversão do pensamento. Depois de terem sido exortados de “fazer se pequenos” como as crianças, os discípulos são agora convidados a “receber” as crianças. Acolher a criança é consequência do que procede (cf. Gn 21,20); pode-se entender em sentido próprio (adoção, não abortar) ou metafórico (um homem que se tornou criança pela simplicidade; cf. v. 4). Deve se fazê-lo “em meu nome”, ou seja, “em atenção a Jesus”.

A comunidade cristã não é a reprodução de uma sociedade que se baseia na riqueza e no poder. Nela, é maior e mais importante aquele que se converte, deixando todas as pretensões sociais, para pertencer a um grupo que acolhe fraternalmente Jesus na pessoa dos pequenos, fracos e pobres.

Os vv. 6-9 (omitidos pela leitura da liturgia) são copiados de Mc 9,42-47 e falam do escândalo aos pequenos e da mutilação (simbólica) de membros do corpo que nos levam a pecar (Mt já mencionou isso em 5,29-30).

Não desprezeis nenhum desses pequeninos, pois eu vos digo que os seus anjos nos céus veem sem cessar a face do meu Pai que está nos céus (v. 10).

Já no AT, os anjos protegem pessoas em perigo (Gn 16,7; 21, 17; 22,11; 24,7.40; 48,16; Ex 14,19; 23,20; Sl 91,11; Dn 3,49; cf. 2Mc11,6; 15,22s; Tb 5,6.22; Jt 13,20). Estes anjos são enviados de Deus e cuidam dos pequeninos (segundo Sl 91,11s); são servidores (ministros) que tem acesso a presença dele (como os que Jacó viu, cf. Gn 28,12).

“Seus anjos veem sem cessar a face do meu pai”, é expressão bíblica que indica a presença dos cortesãos diante do seu soberano (cf. 2Sm 14,24; 2Rs 15,19; Tb 12,15). Aqui a ênfase está menos na contemplação dos anjos (cf. Sl 11,7) do que na assiduidade e familiaridade das suas relações com Deus. No entanto, esta frase fundamentou a convicção de que cada criança e pessoa têm seu “anjo (pessoal) de guarda”.

Alguns manuscritos acrescentam o v. 11 (omitido em nossa leitura), tomado de Lc 19,10: “porque o Filho do homem veio salvar o que estava perdido.

Que vos parece? Se um homem tem cem ovelhas, e uma delas se perde, não deixa ele as noventa e nove nas montanhas, para procurar aquela que se perdeu? Em verdade vos digo, se ele a encontrar, ficará mais feliz com ela, do que com as noventa e nove que não se perderam (vv. 12-13).

Mt encontrou esta parábola na fonte de palavras Q (cf. Lc 15,3-7). Por que alguém se extravia, isto é, se distancia da comunidade? Certamente por causa do escândalo (vv. 6-9), ou do desprezo daqueles que buscam poder e prestígio. Se por qualquer causa um membro se extraviou, a comunidade deve esforçar-se por recuperá-lo.

A comparação da ovelha pode ser inspirada em Ez 34,4.11s.16 (cf. Is 53,6); poderia haver uma lembrança de Davi pastor (1Sm 17,34). Deus como bom pastor é motivo frequente (cf. Ez 34,11s; 20,34; Sl 23; 79,13; 95,7; 199,3; Is 40,11; cf. Mt 9,36; 15,24; 26,31; Jo 10). Aqui, Mt vê a comunidade como bom pastor. A comunidade inteira deve preocupar-se e procurar aquele que se extraviou. Ela se alegra quando ele volta para o seu meio, porque a vontade do Pai foi cumprida.

Do mesmo modo, o Pai que está nos céus não deseja que se perca nenhum desses pequeninos (v. 14).

O princípio de Ez 18,23.32 (“Eu não tenho prazer na morte de quem quer que seja, oráculo do Senhor. Convertei-vos e vivereis!”) se aplica de modo especial aos pequenos. Em seguida (evangelho de amanhã), Mt discursará sobre o trato com os pecadores.

O site da CNBB comenta: A nossa vida é constantemente condicionada pelos valores e costumes da sociedade e nós temos a tendência de querer levar os valores do mundo para a Igreja e até mesmo para o Reino de Deus. Entre esses valores do mundo que nos influenciam, podemos citar a hierarquização e a competitividade no dia a dia, que fazem com que haja sempre entre nós um clima de disputa e de busca de superioridade em relação às outras pessoas. É esse clima o principal responsável por muitos mal-estares na vida da comunidade. São os valores evangélicos que devem transformar o mundo e não os valores do mundo que devem transformar a Igreja.

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