15 de Agosto de 2020, Sábado: Jesus disse: “Deixai as crianças, e não as proibais de virem a mim, porque delas é o Reino dos Céus” (v. 14).

19ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Ez 18,1-10.13b.30-32

Este texto desenvolve a doutrina moral sobre a responsabilidade individual que começou a ser traçado em Dt 24,16, aplicado em 2Rs 14,6 e afirmado em Jr 31,29s, mas desenvolvido por Ezequiel (cf. 14,12-20; 33,10-20). Doutrina essa que se contrapõe à responsabilidade coletiva, na qual o indivíduo, integrado à família e à tribo, é salvo ou castigado junto com os demais membros (cf. Rt 1,16s). Ainda no decálogo, “Deus pune a iniquidade dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração” (Ex 20,5; cf. 34,7; Dt 5,9), e a história deuteronomista, parte escrita na pátria no tempo de Ez, explica a tragédia da destruição de Jerusalém e do exílio babilônico pelo acúmulo das culpas dos antepassados. Mas no exílio, os vínculos coletivos se enfraqueceram e os exilados sentem sua má sorte como injustiça imposta por parte de Deus. A consciência individual, que já despertou nas confissões de Jeremias, agora estava se manifestando fora dos círculos proféticos.

A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos: “Que provérbio é esse que andais repetindo em Israel: Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos ficaram embotados? ” (vv. 1-2).

Este provérbio é também lido em Jr 31,29s e ressoa em Lm 5,7 sem imagem. Significa que os filhos (os exilados) estão sofrendo, porque os pais (gerações antepassadas em Israel) pecaram.

A Bíblia do Peregrino (p. 2050s) comenta o contexto:

Este é um dos capítulos mais importes do livro e deve ser lido junto com o cap. 33. Um passo importante no progresso da revelação deixou aqui seu traço, passo preparado e provocado pela historia.

O passado: Imaginemos a situação dos desterrados depois da catástrofe. O presente amargo é consequência invencível do passado – diz a teologia tradicional. Não precisamente os pecados desta geração, que não mereciam tamanho castigo, mas os pecados acumulados de um Manassés e de muitos como ele (2Rs 23,31-24,4). Chegou-se a uma plenitude de pecado; os crimes seculares encheram e fizeram transbordar a medida da misericórdia divina; esgotada a misericórdia, sua ira derramou-se sobre… a geração à qual coube viver no fim do processo; que fatalidade! É justo? Se Deus leve em conta a bondade de um Josias, de um Ezequias e outros? “Por amor a Abraão, por amor a Davi”, diz a tradição.

O futuro: Foi rompida a aliança que empenhava Deus; falta o culto que permitia reconciliar-se periodicamente com o Senhor. Longe da terra prometida, da cidade santa, do templo destruído, não há fruto para esta geração de escravos. Vítimas de um passado do qual não são imediatamente responsáveis e sem futuro, o que lhes resta? É inútil dirigir-se a Deus com salmos apaixonados de súplica: “por quê? até quando?” É melhor a pequena vingança de um refrão que sai de uma boca com dentes irritados, que fere sem nomear. Que Deus se dê por mencionado.

A resposta. O profeta enfrenta o refrão e a atitude de despeito e fatalismo de onde brota esse refrão. Desmente-o redondamente numa linguagem descarnada de cláusulas, quase de contabilidade. Da parte de Deus, traz uma mensagem positiva: é possível romper a corrente do passado, é necessário comprometer-se para refazer o futuro.

Junto à responsabilidade coletiva, que une solidariamente os membros de uma comunidade entre si e com os antepassados, e sem anulá-la, anuncia-se a responsabilidade do indivíduo, senhor do seu destino por vontade de Deus. Destino de vida e morte para os judeus (Dt 30,15) e para todos os homens (Eclo 15,11-17). Precisamente na nova situação, a responsabilidade individual se fará mais consciente e mais bem entendida: não vale jogar a culpa nos pais e avós, e menos ainda ironizar a justiça divina. Ao mesmo tempo, a responsabilidade individual é exigência para começar a ação e perseverar nela. O desterro removeu a confiança mecânica no templo e outras instituições, e o profeta remove a confiança preguiçosa em méritos adquiridos.

Juro por minha vida – oráculo do Senhor Deus – já não haverá quem repita esse provérbio em Israel. Todas as vidas me pertencem. Tanto a vida do pai como a vida do filho são minhas. Aquele que pecar, é que deve morrer (vv. 3-4).

Num juramente solene (cf. Gn 22,16), Deus nega o fatalismo deste provérbio. A primeira resposta apela para a soberania de Deus, senhor da vida e da morte na ordem biológica; ele pode atribuir à morte função de castigo, instituindo a pena de morte como sanção do pecado, mas não diz quando se cumpre a pena.

Se um homem é justo e pratica o direito e a justiça, não participa de refeições rituais sobre os montes, não levanta os olhos para os ídolos da casa de Israel, não desonra a mulher do próximo, nem se aproxima da mulher menstruada; se não oprime ninguém, devolve o penhor devido, não pratica roubos, dá alimento ao faminto e cobre de vestes o que está nu; se não empresta com usura, nem cobra juros, afasta sua mão da injustiça, e julga imparcialmente entre homem e mulher; se vive conforme as minhas leis e guarda os meus preceitos, praticando-os fielmente, tal homem é justo e, com certeza, viverá – oráculo do Senhor Deus (vv. 6-9).

“Se um homem …” é uma fórmula (cf. 14,7) que habitualmente introduz as leis hipotéticas (cf. 33,2), principalmente no código de Santidade (Lv 19,20; 22,21; 24,17.19; 25,29) e em outras partes do código sacerdotal (Lv 2,1; 4,2; 5,21); o enunciado da hipótese termina com a proclamação do veredicto (vv. 9.13 etc.).

A enumeração que segue nos lembra as confissões ou “profissões” que deviam associadas a determinadas solenidades litúrgicas (cf. as liturgias de entrada, Sl 15; 24; Is 33,15s).

A frase de v. 6 enumera cláusulas da legislação, Ex, Lv e Dt.

As “refeições rituais sobre os montes” são os banquetes sacrificais “nos lugares altos” em cultos idolátricos (cf. cap. 6; 1Rs 3,2; 2Rs 22,3; etc.).

As taxas de “juros” no Oriente Médio eram muito elevadas, indo de 20 a 25%, chegando até a 33% ou mais. Jerusalém é condenada pelas taxas usurárias que seus habitantes praticavam (22,12). Ex 22,24 recomenda o empréstimo gratuito, mas a prática nem sempre estava de acordo com estas exigências (cf. Sl 15,5 e Pr 28,8).

“Viverá” equivale a “não é réu de morte”. Designa a vida com todos os bens da relação com Deus e com a comunidade (cf. Dt 4,1.33; 5,24.26.33; 8,1.3 etc.).

Mas, se tiver um filho violento e assassino, que pratica uma dessas ações, … porque fez todas essas coisas abomináveis, com certeza, morrerá; ele é responsável pela sua própria morte (vv. 10.13b).

Nossa liturgia resume omitindo a nova enumeração dos mesmos delitos que o pai não fez, mas o filho faz (vv. 11-13a). Exige-se o cumprimento de todos os mandamentos. A sentença é de morte: de nada servirá ao criminoso a honradez de seu pai.

Ele é “responsável pela sua própria morte” (lit. “cai seu sangue sobre sua própria cabeça” (cf. 1Sm 1,16; 3,29; Mt 27,25; At 5,28; 18,6), e vai morrer ao longo do tempo por causa da sua iniquidade.

Alternativa vida – morte. Quem é justo, cria espaço para a vida dele e da sociedade; mas quem é injusto, cria a morte para si. Segundo o redator, a não observância dos estatutos e normas (vv. 9.21) justifica, em nome de Deus, a condenação à morte (vv. 23.32; cf. 33,11).

Em termos de justiça, o princípio é ilustrado com um caso complexo que abrange três gerações, com clara assimetria: bem – mal – bem. A nossa liturgia omite ainda a passagem da segunda para terceira geração (se o filho mal tem um filho bom que não prática o mal, este viverá e não pagará pelos pecados do seu pai, vv. 14-18). Ez vai até o ponto de parcelar a vida individual: “Quanto ao ímpio, se ele se converter de todos os pecados que cometeu e passar a guardar meus estatutos e praticar o direito e a justiça, certamente viverá, não morrerá” (v. 21)

Através de suas considerações, Ez quer convidar a uma conversão individual. Pela primeira vez na Bíblia (cf. 14,12ss; 33,12ss), apela-se ao indivíduo a se converter (os profetas anteriores se dirigiam ao povo ou grupos e categorias). A quem ser converte, é prometido vida.

Pois bem, vou julgar cada um de vós, ó casa de Israel, segundo a sua conduta – oráculo do Senhor Deus. Arrependei-vos, convertei-vos de todas as vossas transgressões, a fim de não terdes ocasião de cair em pecado. Afastai-vos de todos os pecados que praticais. Criai para vós um coração novo e um espírito novo. Por que haveis de morrer, ó casa de Israel? Pois eu não sinto prazer na morte de ninguém – oráculo do Senhor Deus. Convertei-vos e vivereis! (vv. 30-32).

Deus vai “julgar cada um… segundo a sua conduta (procedimento, caminho)”. A conduta de Deus (criticada pelos exilados em v. 29) reage à conduta humana. O julgamento de Deus não é atribuir por fora uma recompensa ou um castigo, mas trazer à tona o que já estava no ser humano. Mas o que é um bom caminho, uma boa conduta? Um bom caminho consiste nos “preceitos e leis” de Deus (a Lei de Moisés, em hebraico Torá, não é lei não no sentido de parágrafos, mas de orientação para caminhar; em grego, é o Pentateuco, os primeiros cinco livros do AT). Por esta piedade orientada no cumprimento da lei e do culto, uns exegetas chamaram Ezequiel o “pai do judaísmo”.

A mudança interior – “coração novo…” – será a grande novidade. O que aqui soa como mandato, soará como promessa em 36,26. No retorno do exílio, este final apontará outra vez para o futuro, para a comunidade do “espírito novo”. Jeremias promete uma “nova aliança” em que a lei está escrita nos corações (Jr 31,31-34).

Novamente Deus se apresenta como justo que quer a conversão e a vida e “não sente prazer na morte de ninguém” (cf. v. 23; 33,11; Sb 1,13; 11,26; cf. Lc 15; Jo 8,11; 10,10). A última palavra é oferta de vida para quem se converte (em Mt 3,2; 4,17; Mc 1,15p: o reino de Deus).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 828) comenta: A pregação dos profetas dirigia-se a toda comunidade de Israel, da qual julgava o comportamento e antevia o destino; de resto, era o reflexo de uma mentalidade geral muito atenta aos múltiplos vínculos de solidariedade que fazem de um conjunto de indivíduos uma comunidade marcada pelo mesmo futuro (cf. cap. 16; 20; 23). Contudo, os sacerdotes, que regulamentavam a participação no culto, mostravam-se, desde há muito, atentos aos comportamentos individuais. É com Jr (31,30), que esse individualismo religioso penetra o ensinamento profético. Ezequiel desenvolve longamente o novo dogma da responsabilidade pessoal. De agora em diante, o indivíduo é dessolidarizado do destino da comunidade; ele é o único responsável pelo próprio destino, só ele. Essas novas afirmações, indícios de notáveis avanços, não eram aceitas sem levantar novas dificuldades que apareceram com o passar do tempo e das quais um livro como o de Jó é o eco patético.

A injustiça que as pessoas sentem, envolvidas numa coletividade de culpa, levará ao apocalipse judaico pensar numa ressurreição dos mortos, ou seja, prolongar a justiça de Deus numa vida eterna (cf. Ez 37: a ressurreição do povo).

 

Evangelho: Mt 19,13-15

No evangelho de hoje, Mt continua copiando a instrução sobre a família do evangelho de Mc, em que Jesus abençoa as crianças (Mc 10,13-16). Em 18,1-4, Mt já antecipou boa parte deste encontro (cf. o evangelho de terça-feira passada e Mc 10,15).

Levaram crianças a Jesus, para que impusesse as mãos sobre elas e fizesse uma oração (v. 13a).

Em Mc 10,13 “traziam-lhe crianças para que as tocasse”, mas que tipo de toque? Para curar (cf. Mc 1,41; 5,27-31; 6,56)? Mas há toques indecentes (pedofilia). Mt especifica este toque e acrescenta a oração (cf. Mc 10,16). No judaísmo, havia o costume de abençoar (cf. Gn 27; 48; Nm 6,22-27; Dt 33; 1Sm 23,21 etc.) nas casas pelos pais, no culto pelos sacerdotes; o rabino abençoava seus alunos; esperava-se que o messias abençoasse seu povo (cf. 1Cr 16,2). Os filhos pediam a benção dos pais e uma oração.

Os discípulos, porém, as repreendiam (v. 13b).

Mulheres (cf. 15,23; 2Rs 4,27), mendigos e deficientes (20,31p) e também crianças foram rejeitados com frequência, porque não valiam muito na antiguidade. Os filhos eram importantes como herdeiros para assumirem as tarefas depois, como adultos, mas não se valorizava muito a fase da infância.

Então Jesus disse: “Deixai as crianças, e não as proibais de virem a mim, porque delas é o Reino dos Céus” (v. 14).

Enquanto as religiões antigas têm admiração pelos anciãos, sua sabedoria e suas experiências, Jesus nos apresenta como exemplo as crianças, sua humildade, sua confiança filial sem preconceitos (já em 18,2-4.10).

E depois de impor as mãos sobre elas, Jesus partiu dali (v. 15).

Mt e Lc resumem mais e omitem uns detalhes que Mc descreveu: a indignação de Jesus com os discípulos antes, e seu abraço às crianças depois (cf. Mc 10,14.16). Em Mt só consta que Jesus fez o foi pedido: “impor as mãos” (especificando o gesto da benção de Mc 14,16) antes de “partir dali” e encontrar-se em seguida com o homem rico (cf. evangelho de segunda-feira próxima).

As crianças fazem parte da família judia e com ela da comunidade. Josué leu a lei de Moisés a toda “assembleia de Israel, inclusive para mulheres e crianças” (Js 8,35). Em Ne 8,2s, Esdras leu o livro da lei “para homens, mulheres e para todos os que tinham o uso da razão” (geralmente crianças na idade escolar, critério para começar a catequese da Eucaristia). Entre as igrejas, a Católica e a Ortodoxa e algumas igrejas evangélicas históricas (Luterana, Anglicana) batizam crianças, outras (Batistas, Pentecostais, etc.) só batizam adultos ou adolescentes (a partir de 12 anos) alegando a conversão como condição.

O batismo de crianças baseia-se na prática do apóstolo Paulo que batizava famílias inteiras (cf. At 16,15.33), tornando supérfluo a circuncisão dos meninos (cf. Gn 17; At 15). O batismo de crianças foi considerado tal importante para salvação que St.º Agostinho criava a doutrina do “limbo”, ou seja, um espaço próprio onde crianças não batizadas deveriam ficar após a morte, porque o céu seria somente para os batizados, sob alegação de Jo 3,5: “Se alguém não nasce da água e do Espírito, não entrará no Reino de Deus”. Mas Jesus falou isso a um adulto que podia escolher (Nicodemos já era velho; cf. Jo 3). Apenas o “pecado original” (teorizado por Agostinho) pesaria contra as crianças inocentes, mas não batizadas (cf. a responsabilidade individual em Ez 18, leitura de hoje no ano par).

O Papa Bento XVI aboliu recentemente esta doutrina do limbo que excluiu crianças inocentes do reino de Deus. No evangelho de hoje, Jesus declara as crianças (batizadas ou não) como exemplos para entrar no Reino de Deus e critica aqueles que as impedem a vir a Ele que representa este Reino. Podemos concluir que Jesus quer que crianças não batizadas estejam também com Ele no céu, mas critica aqueles que “impedem” (ou enrolam) o batismo (cf. At 8,36; 10,47; 11,17).

O site da CNBB comenta: Muitas vezes, pelo fato de procurarmos viver de forma coerente os valores do Evangelho e percebermos os erros e os problemas que existem no mundo de hoje por parte de muitas outras pessoas que não tiveram a oportunidade de conhecer Jesus como nós o conhecemos, corremos o risco de fazer exatamente o contrário daquilo que Jesus exige de nós. Pode acontecer que nos coloquemos como intermediários entre Jesus e as pessoas não para aproximá-las dele, como é a sua vontade, mas para impedir que se aproximem dele por não serem dignas, negando a elas a oportunidade da graça da conversão e da vida nova em Cristo.

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