15 de Março de 2020, 3º Domingo da Quaresma: Cansado da viagem, Jesus sentou-se junto ao poço. Era por volta do meio-dia. Chegou uma mulher da Samaria para tirar água. Jesus lhe disse: “Dá-me de beber”. Os discípulos tinham ido à cidade para comprar alimentos (vv. 6b-8).

3º Domingo da Quaresma  

1ª Leitura: Ex 17,3-7

Nas primeiras leituras dos domingos da Quaresma percorre-se a história da salvação no Antigo Testamento (AT). Depois da narração sobre a tentação (1º Domingo: de Adão e Eva no paraíso e de Jesus no deserto) e do testemunho das figuras ilustres do passado (2º Domingo: Abraão, Moisés e Elias), ouvimos hoje a busca do povo no deserto por água a qual corresponde a resposta de Jesus à samaritana no evangelho de hoje.

O povo de Deus, os israelitas acabaram de ser libertados da escravidão passando pelo mar Vermelho (cap. 14) e estão a caminho da terra prometida, onde corre leite e mel (3,8). Mas o caminho no deserto é austero. Com ajuda de Deus, Moisés sanou a água salgada do oásis Mara tornando-a doce (15,22-27) e saciava a fome do povo com o maná (cap. 16). Mas novamente surge o problema da água.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 93) comenta: Várias narrativas mostram o povo no deserto clamando por água: 15,22-27; Nm 20,2-13; 21,16-18. Aqui, a água que sai da rocha simboliza provavelmente a Lei de Moisés que emana do Templo pós-exílico (cf. Ez 47,1-12; Jl 3,18; Zc 13,1; 14,8); são imagens relidas em Jo 4,10-14 e Ap 22,1-2.

O texto de hoje mantém uma estrutura simples que já conhecemos: uma situação crítica, protesto do povo, súplica de Moisés, oraculo divino, execução e cumprimento. A narrativa paralela de Nm 20,2-13 situa o milagre na região de Cades. Aqui ele é localizado em Rafidim, a última estação antes de Sinai.

O povo, sedento de água, murmurava contra Moisés e dizia: “Por que nos fizeste sair do Egito? Foi para nos fazer morrer de sede, a nós, nossos filhos e nosso gado?” (v. 3).

“Murmurar” é verbo típico do povo reclamando no deserto contra Moisés e Aarão (15,24; 16,2; 17,3 etc.), expressa oposição e negação de fé (no NT, cf. Mt 20,11; Lc 5,30; Jo 6,41); 1Cor 101; Fl 2,14; 1Pd 4,9). “Por que nos fizeste sair (lit. nos tirou) do Egito?” Como em 16,3 no protesto popular o sujeito de “tirar” é o homem, Moisés.

Moisés clamou ao Senhor, dizendo: “Que farei por este povo? Por pouco não me apedrejam!” (v. 4).

Na revolta do povo em Nm 14,10 chegou perto: “Toda comunidade falava em apedrejá-lo.”

O Senhor disse a Moisés: “Passa adiante do povo e leva contigo alguns anciãos de Israel. Toma a tua vara com que feriste o rio Nilo e vai. Eu estarei lá, diante de ti, sobre o rochedo, no monte Horeb. Ferirás a pedra e dela sairá água para o povo beber”. Moisés assim fez na presença dos anciãos de Israel (vv. 5-6).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 123) comenta: O bastão de Moisés é o símbolo do poder divino (4,17) que age para, por meio dele, libertar Israel (pragas do Egito: 7,17; 9,23;10,13; passagem do mar: 14,16). É a mesma força de Deus que aqui dá a Israel a possibilidade de vencer a sede (v. 5) e os inimigos amalequitas (v. 9).

“Eu estarei lá, diante de ti, sobre o rochedo” O decisivo é a presença do Senhor (cf. a pergunta em v. 7) dando eficácia à ação de Moisés. O tema da rocha e da água retorna na tradição: o rochedo como símbolo de Deus forte, seguro e eterno (cf. Dt 32,10; Is 17,10; 26,4; 44,8; Sl 18,3 etc.; no NT, cf. Mt 16,18), e água da fonte como símbolo da vida dada por Deus, especialmente nos tempos messiânicos (Is 12,3; 55,1; Jr 2,13; Ez 47,1s; cf. Sl 36,9-10 e no NT; Ap 7,16-17; 22,17) ou, ainda, símbolo da sabedoria e da Lei, que dão a vida (Pr 13,14; Eclo 15,3; 24,23-29; no NT, cf. Jo 4 onde a água viva se torna o símbolo do Espirito, cf. Jo 7,37-39).

“No monte Horeb” pode ser uma glosa de leitor. Alguns rabinos supuseram que a rocha seguiu os israelitas em suas peregrinações (Paulo alude a ela em 1Cor 10,4).

E deu àquele lugar o nome de Massa e Meriba, por causa da disputa dos filhos de Israel e porque tentaram o Senhor, dizendo: “O Senhor está no meio de nós, ou não?” (v. 7).

Como em outros episódios do Pentateuco, no final se introduz aqui a etimologia (origens da palavra) do lugar. Massa: provação, Meriba: contestação; o povo “discutiu” (v. 2) com Moisés, Meriba (da raiz ryb); o povo “tentou” o Senhor, Massa (da raiz nsh). Sós ou combinados, estes dois nomes com frequência aparecem como exemplos no AT (p. ex. Dt 6,16; Sl 95,8s).

Deus pode tentar o homem, pôr o homem à prova (Gn 22; Ex 15,25), mas o homem também pode querer pôr Deus à prova, isto é, desafia-lo, exigir sua intervenção como um direito (cf. Is 7,12 e Dt 6,16 citado por Mt 4,7p) aqui através da pergunta desafiadora: “O Senhor está no meio de nós, ou não?” Aqui não levanta um problema especulativo sobre a existência de Deus (um problema moderno), mas exprime uma interrogação sobre a sua presença e ação (cf. 3,14 o nome de Deus Yhwh – Javé, traduzido por “Eu sou aquele que sou” ou “Eu estou aqui”; cf. a tentação da representação de Deus pelo ídolo do bezerro em 32,1ss).

A presença de Deus é simbolizada no fogo e na nuvem luminosa (Gn 15,17; Ex 3,1-6; 13,21s; 14,19s.24; 16,10; 19,16-20; 24,15-18), na tenda da reunião no deserto e depois no templo de Salomão (Ex 40,34-38; 1Rs 8,10-12; cf. na transfiguração Mc 9,7 e na ascensão At 1,9), e pode se deslocar (Ez 1,4-28; 10,18-22; 11,22s; 43,1-5; 48,34).

De que maneira Deus está em nosso meio, hoje? Na beleza da criação, nas pessoas e acontecimentos, na história? Na liturgia através da assembleia (Mt 18,20), na palavra e na eucaristia. E não esquecer sua presença no pobre necessitado (Mt 25,40).

 

2ª leitura: Rm 5,1-2.5-8

A 2ª leitura fala que “o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo” combinando com o evangelho de hoje que fala da “água viva”, identificada como Espírito Santo em Jo 7,38s.

A leitura é tirada da carta aos Romanos, da parte dogmática que começou tratar da salvação e justificação pela fé. A Bíblia do Peregrino (p. 2713) comenta: A linguagem jurídica se retira a segundo plano, cedendo lugar a uma mais ética; o predomínio do amor sucede ao predomínio da justiça de Deus. Já não se diferenciam judeus e gregos, e da justiça recebida se fala no passado.

O cristão justificado encontra no amor de Deus e no dom do Espírito a garantia da salvação. Este tema será retomado e desenvolvido no cap. 8. Encontramos na leitura de hoje as três virtudes teológicas: fé, esperança e amor-caridade (cf. 1Cor 13,13; 1Ts 1,3 etc.)

Justificados pela fé, estamos em paz com Deus, pela mediação do Senhor nosso, Jesus Cristo. Por ele tivemos acesso, pela fé, a esta graça, na qual estamos firmes e nos gloriamos, na esperança da glória de Deus (vv. 1-2).

A Bíblia do Peregrino (p. 2713) comenta: Reconciliados com Deus pela fé, entramos numa situação de paz e esperança: paz que supera a tribulação, esperança que transforma o presente. Desfrutamos da “graça” ou favor de Deus e seu “amor” revelado no sacrifício de seu Filho. Agora pomos “nosso orgulho” não em méritos de obras, mas na esperança (v. 2), em Deus mesmo (v. 11). Tudo por meio de Jesus Cristo (5,2.9.11.17.21).

Quem já não é devedor nem ofensor está reconciliado e em paz: Is 52,7; Ez 2,14-17; Cl 1,20. Certos manuscritos leem “estejamos em paz”, mas isto não combina com o contexto; Paulo quer menos exortar os fiéis a procurar a paz do que fazê-los tomar consciência de que em Jesus Cristo a paz lhes é dada agora (Ef 2,14). A paz é o grande bem messiânico e não uma simples disposição de alma (cf. 1Rs 5,26; Lc 1,79; Ef 2,14).

“Por ele tivemos acesso”; o acesso agora é sob uma condição: “por ele” (as palavras “pela fé” são omitidas por numerosas testemunhas). No AT mencionava-se as condições éticas de acesso ao templo (Sl 15 e 24), da porta reservada aos vencedores (Sl 118,19s; cf. Ef 2,18; 3,12).

Esta “graça” na qual estamos “firmes” (estabelecidos) é a nova condição do fiel gratuitamente justificado em Jesus Cristo (Rm 3,24). Ele é “uma criação nova” (2Cor 5,17).

“Nos gloriamos (lit. orgulhamos), na esperança da glória de Deus”; esperamos a glória ou “o destino glorioso” (Sl 73,24). Alguns manuscritos omitem. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1244) comenta: Se o ser humano não pode apresentar nenhum título que lhe mereça a justificação (Rm 3,27; cf. Lc 18,9-14), o crente não pode fundar seu orgulho em suas obras; em compensação ele pode “depositar o seu orgulho” na esperança, pois esta, como a fé, só se apoia na misericórdia de Deus e na sua fidelidade em cumprir suas promessas (cf. Rm 4,2…). Inaugurada na obra redentora de Jesus, a realização da promessa só achara o seu pleno cumprimento na glória, isto é, na salvação final (Rm 8,11.18-25). A justificação é a antecipação desta salvação que, na sua forma escatológica, permanece objeto de esperança (Rm 8,24).

A respeito da esperança cristã, cf. Bíblia de Jerusalém (p. 2126). Nossa liturgia dominical salto os vv. 3-4 que falam das tribulações das quais o cristão pode tirar proveito na constância, virtude e esperança.

E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (vv. 3-5).

A Bíblia do Peregrino (p. 2713) comenta: Por meio de Os 2,23 conhecemos o recurso retórico do encadeamento em Tg 1,14s; 2Pd 1,5-8. A esperança brota e se sustenta do amor que Deus nos tem e o Espirito Santo nos faz experimentar em nossa consciência. Ao reconhecermos internamente, pelo toque do Espirito, que Deus nos ama, nossa esperança se sente segura: aquele que nos ama não pode frustrar-nos (cf. Sl 22,6; Eclo 2,10).

“O amor de Deus”; não se trata aqui do amor que nós temos por ele, mas que Deus tem por nós. De todo NT, este versículo afirma com maior nitidez a ligação entre o amor e o Espírito. Só aqui o Espírito Santo é tal vinculado ao “amor de Deus” que se manifesta em Jesus Cristo (8,38); uma visão trinitária: Deus é amor em três pessoas (cf. 1Jo 4,8.16).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2126) comenta: O amor com que Deus nos ama e do qual o Espirito é um penhor e testemunha por sua presença ativa em nós (cf. 8,15 e Gl 4,6). Nele nos dirigimos a Deus como um filho a seu Pai; o amor é recíproco. Nele, igualmente, amamos nossos irmãos como o mesmo amor que o Pai ama o Filho e com que nos ama também a nós (cf. Jo 17,26).

O Espírito Santo da promessa (Ef 1,13; cf. Gl 3,14; At 2,33), que caracteriza a nova aliança em oposição à antiga (Rm 2,29; 7,6; 2Cor 3,6; cf. Gl 3,3; 4,29; Ez 36,27), não é somente uma manifestação exterior  de poder taumatúrgico e carismático (At 1,8); é também e sobretudo um princípio interior de vida nova que Deus dá (1Ts 4,8, etc.; cf. Lc 11,13; Jo 3,34; 14,16s; At 1,5; 2,38, etc.; 1Jo 3,24), envia (Gl 4,6; cf. Lc 24,49; Jo 14,26; 1Pd 1,12), outorga (Gl 3,5; Fl 1,19), derrama (Rm 5,5; Tt 3,5s; cf. At 2,33). Recebido pela fé (Gl 3,2.14; cf. Jo 7,38s; At 11,17) e pelo batismo (1Cor 6,11; Tt 3,5; cf. Jo 3,5; At 2,38; 19,2-6), ele habita no cristão (Rm 8,9; 1Cor 3,16; 2Tm 1,14; cf. Tg 4,5), no seu espírito (Rm 8,16; cf. Rm 1,9) e mesmo em seu corpo (1Cor 6,19). Este Espirito, que é o Espirito de Cristo (Rm 8,9; Fl 1,19; Gl 4,6; cf. 2Cor 3,17; At 16,7; Jo 14,26; 15,26; 16,7.14), torna o cristão filho de Deus (Rm 8,14-16; Gl 4,6s) e faz Cristo habitar em seu coração (Ef 3,16). Ele é para o cristão (como para o próprio Cristo, Rm 1,4) um princípio de ressurreição (Rm 8,11), por um dom escatológico que desde agora o marca como com um selo (2Cor 1,22; Ef 1,13; 4,30) e que se encontra nele como penhor (2Cor 1,22; 5,5; Ef 1,14) e primícias (Rm 8,23). Substituindo o princípio mau da carne (Rm 7,5), torna-se no homem um princípio de fé (1Cor 12,3; 2Cor 4,13; cf. 1Jo 4,2s), de conhecimento sobrenatural (1Cor 2,10-16; 7,40; 12,8s; 14,2s; Ef 1,17; 3,16.18; Cl 1,9; cf. Jo 14,26), de amor (Rm 5,5; 15,30; Cl 1,8), de santificação (Rm 15,16; 1Cor 6,11; 2Ts 2,13; cf. 1Pd 1,2), de conduta moral (Rm 8,4-9.13; Gl 5,16-25), de coragem apostólica (Fl 1,19; 2Tm 1,7s; cf. At 1,8), de esperança (Rm 15,13; Gl 5,5; Ef 4,4) e de oração (Rm 8,26s; cf. Tg 4,3.5; Jd 20). Não se deve extingui-lo (1Ts 5,19) nem conquistá-lo (Ef 4,30). Unindo a Cristo (1Cor 6,17), ele realiza a unidade de seu Corpo (1Cor 12,13; Ef 2,16.18; 4,4).

Com efeito, quando éramos ainda fracos, Cristo morreu pelos ímpios, no tempo marcado. Dificilmente alguém morrerá por um justo; por uma pessoa muito boa, talvez alguém se anime a morrer. Pois bem, a prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores (vv. 6-8).

“Quando éramos ainda fracos”, ou seja, impotentes para nos desvencilhar do pecado.

A Bíblia do Peregrino (p. 2713) comenta os vv. 6-10: Exalta o amor desinteressado de Jesus Cristo com um sistema de quatro oposições que produzem efeito cumulativo. Malvados perdoados, culpados indultados, inimigos reconciliados, reconciliados legitimamente orgulhosos (Is 45,25; Sl 64,11). A morte de Cristo é antes de tudo revelação do amor incondicional de Deus: um amor não suscitado por nossa boa conduta, pelo contrário. Não podemos estar orgulhosos de nós: todo nosso orgulho reside em Deus. Já não orgulhosos de seu poder (Sl 115,3), mas do seu amor.

Evangelho: Jo 4,5-42 (versão breve: Jo 4,5-15.19b-26.39a.40-42)

O evangelhos deste e dos próximos domingos são capítulos quase inteiros do quarto evangelho, todos orientados para os símbolos do batismo, hoje a salvação pela água.

A Bíblia do Peregrino (p. 2555) comenta: Aqui temos uma daqueles capítulos em que João faz brilhar seu talento de narrador e muito mais sua capacidade de entrelaçar no relato, discretamente, símbolos de perspectiva profunda. Sendo relativamente amplo o relato, convém indicar alguns pontos de referência do processo. A princípio, Jesus aparece sobre o pano de fundo patriarcal, doador de um dom tão precioso para os patriarcas como a água. Segundo: Jesus é um profeta (v. 18): porque adivinha uns fatos ou porque denuncia uma conduta? Terceiro: Jesus é o Messias que também os samaritanos esperam (v. 26). Quarto: é o salvador do mundo, na confissão dos samaritanos (v. 42).

No desenrolar do diálogo e das ações sucedem-se uns saltos temáticos que podem desconcertar numa primeira leitura. Da água ao matrimonio (concubinato), deste a uma consulta cultual; muda a cena com a saída de um personagem e a chegada de outros, e surge o tema agrário da colheita. Como se coordenam? Bebida e refeição são companheiras óbvias; do poço d’água ao matrimonio, o AT nos acostumou a transitar pela via do símbolo. Mais difícil é o salto ao culto e sobretudo à imagem agraria.

Pois bem, coloquemos como pano de fundo o capitulo matrimonial de Os 2 (com apoio em outros textos de Oséias), e se justificará a construção de Jo 4, além de uma série de detalhes. Como o texto de Oséias é concentradamente simbólico, ao sobrepor-lhe o de João, este se torna simbólico ao quadrado. A “mulher samaritana” é como a Samaria personificada de Os 2: infiel ao marido Yhwh (Os 2,4.6), entregue aos ídolos amantes (2,7.9), pervertendo o culto (2,15), ameaçada de morrer de sede (2,5); mas cortejada a sós por Yhwh (2,16), reconciliada (2,17-18.21), de modo que começa um ciclo agrário (2,23-24) e a fecundidade da mulher.

Jesus chegou a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto do terreno que Jacó tinha dado ao seu filho José. Era aí que ficava o poço de Jacó (vv. 5-6a).

Jesus estava voltando der Jerusalém para a Galileia. Os judeus costumavam pegar o caminho mais comum passando pelo outro lado do rio Jordão (assim Jesus em Mc e Mt), evitando com isso atravessar a Samaria que era considerado terra impura, semipagã. Em Lc 9,52-55 e 17,11 Jesus atravessa a Samaria, é mal recebido porque é judeu, mas em 10,29-37 e 17,11-19 dois samaritanos são apresentados como bons exemplos. Como Lucas mostra no seu segundo volume, os samaritanos serão os primeiros fora de Israel que aceitarão o evangelho (cf. At 1,8; 8,1-25).

A Tradição Ecumênica da Bíblia (p. 2050) comenta: Jesus podia voltar a Galileia sem passar pela Samaria (subindo o vale do Jordão). Mas Jo faz questão de situar aqui um episódio importante da vida de Jesus, seja porque sua comunidade tinha contatos estreitos com o ambiente samaritano, seja mais provavelmente, porque o encontro com a samaritana prefigura a missão da Igreja junto aos não-judeus (cf. 4,27-38; 12,20-24).

Em Jo, Jesus tem uma missão que não seria realizada plenamente se ele não percorresse esse território dos descendentes de José, indo ao encontro de um povo desprezado, mas que luta pela vida, conserva suas tradições e anseia também pelo Messias. Samaria era capital do reino do Norte (Israel) que foi conquistado pelos assírios em 722 a.C. (2Rs 17), seguiu-se uma deportação em massa e nova colonização por obra da Assíria (mistura étnica e sincretismo, cf. 2Rs 17,24-41). Portanto a Samaria foi vista com hostilidade e desprezo pelos judeus; e ela correspondeu com sua hostilidade (p. ex. no tempo de Esdras e Neemias, os samaritanos se opuseram a reconstrução do templo em Jerusalém, cf. Esd 4). Samaritano era sinônimo de herético (os judeus chamam Jesus assim em Jo 8,48).

“Sicar” deve ser a antiga Siquém (em aramaico Sícara) ou a atual aldeia de Askar, ao pé do monte Ebal, a uns mil metros do “poço de Jacó”. Trata-se de uma fonte que jorra no fundo de um poço profundo. Esse poço não é mencionado no livro de Gn, mas se Jacó comprou um terreno (Gn 33,19; 48,22; Js 24,32), podemos deduzir que estava provido de um manancial.

Cansado da viagem, Jesus sentou-se junto ao poço. Era por volta do meio-dia. Chegou uma mulher da Samaria para tirar água. Jesus lhe disse: “Dá-me de beber”. Os discípulos tinham ido à cidade para comprar alimentos (vv. 6b-8).

“Meio-dia” (lit. a “sexta hora”), a hora da luz plena e do calor (sexta=sesta), o cansaço da caminhada e a sede junto ao poço são elementos que o narrador predispõe para trabalhar com eles (cf. Gn 29,7-10: o encontro de Jacó com Raquel “em pleno dia” no poço).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1993) comenta: O encontro junto a um poço é um tema da literatura patriarcal (Gn 24,10s; 29,1s; Ex 2,15s). Os poços nascentes de água marcam o itinerário terrestre e espiritual dos patriarcas e do povo do Êxodo (Gn 26,14-22; Ex 15,22-27; 17,1-7; etc.). A água da fonte torna-se no AT, o símbolo da vida que é dada por Deus, especialmente nos tempos messiânicos (Is 12,3; 55,1; Jr 2,13; Ez 47,1s; cf. Sl 36,9-10 e no NT; Ap 7,16-17; 22,17) ou, ainda, símbolo da sabedoria e da Lei, que dão a vida (Pr 13,14; Eclo 15,3; 24,23-29). Esses temas encontram-se na cena evangélica, onde a água viva se torna o símbolo do Espirito (cf. Jo 7,37-39 e 1,33).

A Bíblia do Peregrino (p. 2556) comenta: A primeira cena está sob o sinal da água: elemento vital para o homem, de modo especial para aquelas regiões e culturas, elemento que se presta para o uso simbólico. Dele o AT oferece abundantes testemunhos. Leia-se entre outros Gn 26 para apreciar o que significavam os poços.

O dialogo vai ser um jogo de pedir e recusar, oferecer e pedir; como degraus para subir e saltar ao plano superior do “dom de Deus”. (Diz um comentarista: como na cruz, pede água para depois dá-la.)

O distanciamento dos discípulos deixa a sós a mulher e o homem. Com delicada discrição João nos faz entrever o plano simbólico do amor. Junto a poços acontecem os encontros de Rebeca, Raquel, Séfora (Gn 24; 29; Ex 2,15-22); a esposa é um poço (Pr 5,15-18).

A mulher samaritana disse então a Jesus: “Como é que tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou uma mulher samaritana?” (v. 9a).

A Bíblia do Peregrino (p. 2556) comenta: Para essa mulher, a caridade tem fronteiras. Suas palavras expressam mais despeito que estranheza (Esd 4,3).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2050) comenta: O cisma samaritano, nascido de uma reação contra o rigorismo da reforma judaica do pós-exílio, tinha resultado numa oposição implacável entre os dois grupos. Um judeu religioso devia evitar todo o contato com os impuros e a fortiori abster-se de pedir-lhes alimento (cf. Eclo 50,25-26; Lc 9,52; 10,33; Mt 10,5).

De fato, os judeus não se dão com os samaritanos (v. 9b).

Muitas Bíblias colocam esta frase em parêntese. A Bíblia de Jerusalém (p. 1993) comenta: Os judeus odiavam os samaritanos (Eclo 50,25-26; Jo 8,48; Lc 9,52-55; cf. Mt 10,5; Lc 10,33; 17,16) e explicavam a sua origem (2Rs 17,24-41) pela imigração forçada de cinco povoações pagãs que, em parte, permaneceram fiéis aos seus deuses, simbolizados pelos “cinco maridos” do v. 18.

Respondeu-lhe Jesus: “Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é que te pede: ‘Dá-me de beber’, tu mesma lhe pedirias a ele, e ele te daria água viva.” A mulher disse a Jesus: “Senhor, nem sequer tens balde e o poço é fundo. De onde vais tirar a água viva?  Por acaso, és maior que nosso pai Jacó, que nos deu o poço e que dele bebeu, como também seus filhos e seus animais?” (vv. 10-12).

O verbo “conhecer/saber” é muito importante no evangelho de João (neste cap. cf. vv. 10.22.31). A Bíblia do Peregrino (p. 2556) comenta: E também em Os 2; “ela não compreendia que eu era quem lhe dava…” concretamente (2,10) diz que ela não compreendia que era dom do Senhor. Conhecer o dom e também a pessoa, “quem é”; dom que ela irá descobrindo gradualmente “e conhecerás o Senhor” (Os 2,22).

Como no diálogo com Nicodemos (3,1-8), Jesus dá-se a “conhecer”, de modo paradoxal, por uma sequência de mal-entendidos que ele parece provocar no seu interlocutor e depois explica. “Água viva” (corrente, cf. Jr 2,13) é água boa, em oposição às águas estagnadas (ou mortas, cf. o perigo dos mosquitos que transmitem malária, dengue, zica etc.).

“Senhor”, aqui este termo parece ser mera forma de tratamento (cf. vv. 11.19.49; 20,15). A mulher samaritana resolve a ambiguidade de “água viva” em “água de nascente, não estancada” ou recolhida em cisternas (cf. Jr 2,13; Is 48,21; Ex 17,1-7). Desde os tempos do patriarca Jacó, este manancial rico de Sicar (Siquem) está manando e matando a sede de gerações. Jesus, este judeu viajante, será maior que Jacó, o pai das doze tribos (Gn 48,22)?

Jacó simboliza todo o povo de Israel, já que foi apelidado de Israel (Gn 32,29; 35,10), foi pai de doze filhos que deram origem ao povo de Israel (cf. Gn 35,22b-26; Ex 1,1-7). Depois de Salomão, dez tribos formaram o reino do Norte com a capital Samaria, enquanto a tribo de Judá (os judeus) formaram o reino do Sul com a capital Jerusalém (cf. 1Rs 12).

Respondeu Jesus: “Todo aquele que bebe desta água terá sede de novo. Mas quem beber da água que eu lhe darei, esse nunca mais terá sede. E a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que jorra para a vida eterna.” (vv. 13-14).

A resposta de Jesus releva o sentido simbólico das suas palavras. Sua interpretação da água está de acordo com a tradição bíblica: “Abandonaram-me, fonte de água viva” (Jr 2,13; cf. 17,13: Javé); “em ti está a fonte viva” (Sl 36,10); “com gozo tirareis água do manancial da salvação” (Is 12,3). A água do poço mata a sede cada vez que se bebe, e se torna a beber. A água de Jesus, porém, sacia a sede definitivamente porque se torna manancial dentro da pessoa. Assim brotará perpetuamente ou comunicará uma vida imortal. Pensamos na água do batismo (cf. 3,5; 9,7; Rm 6,4), junto com o Espírito (7,38s).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2050) comenta: Nessa região próxima do deserto, a água é o símbolo de todos os valores de vida (Is 12,3; Jr 2,13; 17,13), em particular da sabedoria (Br 3,12; Sr 15,3; 24,30-31), da lei ou do Espírito (Is 44,3; Jl 3,1). Jo pensa aqui no dom do Espírito que dá a vida eterna (cf. 7,38-39).

A mulher disse a Jesus: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede e nem tenha de vir aqui para tirá-la.” Disse-lhe Jesus: “Vai chamar teu marido e volta aqui” (vv. 15-16).

O segundo mal-entendido da mulher parece ser cortado do tema por enquanto. Da água do poço de Jesus passa-se ao assunto matrimonial. Mas o Espírito de Jesus conhece todas as coisas e dá prova do seu conhecimento íntimo (cf. 1,47s; 2,24 etc.).

Ir buscar água na fonte pública era tarefa normal das moças (Rebeca em Gn 24,15s; Raquel em Gn 29,7-10; Séfora em Ex 2,15-21) e o seria também das casadas, como função doméstica. Pela idade da mulher, um viajante pode deduzir que é casada, só que Jesus olha mais longe.

Comprando Os 2,5, o salto de Jo 4,16 surpreende menos: “eu a transformei numa terra seca, a farei morrer de sede”. A mulher malvada sem pudor de Eclo 26,12 sofre outro tipo de sede: “abre a boca … e bebe de qualquer fonte que aparece”.

A mulher respondeu: “Eu não tenho marido”. Jesus disse: “Disseste bem, que não tens marido, pois tiveste cinco maridos, e o que tens agora não é o teu marido. Nisso falaste a verdade” (vv. 17-18).

“Eu não tenho marido”. A palavra grega significa homem/varão e marido, o que permite o jogo de palavras que se segue (v. 18). Há uma sutil também em Os 2,18: “Me chamarás ‘meu marido’ e não mais ‘meu baal’ (senhor)”.

O número de cinco poderia aludir ao começo da idolatria ou sincretismo na Samaria (2Rs 17,30) promovidos em cinco grupos étnicos assentados na Samaria que prestavam culto a sete divindades, além de Yhwh (Javé). A Bíblia costuma chamar a idolatria de fortificação ou adultério, porque quebra a aliança com Javé Deus adorando outros deuses. Mais importante que o número é a alusão aos muitos “amantes” = ídolos de Os 2,7.9.12.14.15.19.

A mulher disse a Jesus: “Senhor, vejo que és um profeta! Os nossos pais adoraram neste monte mas vós dizeis que em Jerusalém é que se deve adorar”. (vv. 19-20).

Constatando que Jesus conhece os segredos de sua vida, a mulher reconhece que Jesus é um homem de Deus, um profeta. A Bíblia do Peregrino (p. 2557) comenta: O profeta que adivinha é também o profeta que denuncia: “Vieste à minha casa para recordar minhas culpas?” (cf. 1Rs 17,18; Os 6,5). A mulher o toma no primeiro sentido, e o aproveita para uma consulta nacional. Trata-se da controvérsia já secular sobre o lugar autentico do culto a Yhwh: o monte Sião em Judá (reforma de Josias) ou o monte Garizim na Samaria (memória patriarcal). O lugar do culto, a legitimidade de um templo, é assunto vital na religião de Israel e de outros povos (Dt 11,29; 12,5-14; Sl 122). Garizim pode ser um “lugar alto” como os que os profetas condenavam? (p. ex. Os 10,8; Jr 19,56). O profeta itinerante e inesperado poderá se pronunciar: “até que venha um profeta para resolver um caso cultual” (1Mc 4,46).

Sobre o monte Garizim, os samaritanos haviam construído um templo, rival do de Jerusalém. O sobrinho de Judas Macabeus, João Hircano, o destruíu em 129 a.C., mas ainda hoje os samaritanos celebram a páscoa neste lugar.

Disse-lhe Jesus: “Acredita-me, mulher: está chegando a hora em que nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai (v. 21).

A Bíblia do Peregrino (p. 2557) comenta: A resposta é radical: nem um nem outro; aproxima-se um regime novo. E inesperadamente substitui o implícito Yhwh ou “nosso Deus” por “o Pai”, como se a revolução cultual fosse provocada pela revelação de Deus como Pai e pelo dom do Espirito. O culto autentico, ao Deus acessível como Pai, já não estará ligado nem circunscrito a um lugar.

Lembramo-nos que Jesus está chegando de Jerusalém, onde já predisse o fim do templo “’Destruí este templo, e em em três dias eu o levantarei’ … Ele, porém, falava do templo do seu corpo” (2,19.21).

Vós adorais o que não conheceis. Nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus (v. 22).

A Bíblia do Peregrino (p. 2557) comenta: “O que não conheceis” é expressão duríssima, sobretudo a luz de Dt 13,7, que define os deuses falsos. Se os samaritanos pensam conhecer o que adoram, pode-se recordar-lhes a denúncia profética (Os 8,2), “gritam: Nós te conhecemos, Deus de Israel”; e é grito falso. A salvação vem dos judeus, como se manifestou imediatamente depois da queda da Samaria. Além do mais, quem traz a salvação é Jesus, que é da tribo de Judá, como Davi.

Mas está chegando a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade. De fato, estes são os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade.” (vv. 23-24).

A Bíblia do Peregrino (p. 2557) comenta: O culto é válido se é expressão de uma atitude profunda. O novo culto estará inspirado e guiado pelo Espírito a partir de dentro do homem. Os sinais externos ficam relativizados. Tal é a vontade do Pai revelada por Jesus. Deus é Espírito, ou seja, livre, dinâmico, não pode ser agarrado (3,8). Os recintos não submetem ao ar de sua presença, o vento de sua ação.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2050) comenta: O dom do Espirito permite conhecer e adorar a Deus como Pai: tal é o culto “em verdade” que vai caracterizar os tempos escatológicos que começam; a partir desse momento, qualquer outro culto, notadamente aquele celebrado no Templo de Jerusalém, acha-se ultrapassado e fora de uso (cf. At 7,47-48). Não se trata tanto de sublinhar o caráter imaterial de Deus, quanto de afirmar que ele é a fonte dos dons espirituais que transcendem toda maneira de ser das coisas criadas.

Em Jo, o Espírito Santo é o “Espírito da Verdade” (14,16s.26; 15,26; 16,7-11), e Jesus é a verdade (14,6, cf. 8,32; 18,37s). Este Espírito já foi indicado como princípio do novo nascimento (3,5), ele é também princípio do novo culto espiritual (cf. 2,20s; Rm 1,9; 5,5; 8,1-27; 12,1s etc.). Esse culto é “em verdade”, porque só ele responde à revelação que Deus faz por meio de Jesus e também corresponde a “nova aliança”, no interior do coração humano (Jr 31,31-34; Ez 11,19s; 36,27).

“Aqueles que o adoram”; variação de texto: “aqueles que adoram” (cf. os gregos em 12,20).

A mulher disse a Jesus: “Sei que o Messias (que se chama Cristo) vai chegar. Quando ele vier, vai nos fazer conhecer todas as coisas”. Disse-lhe Jesus: “Sou eu, que estou falando contigo” (vv. 25-26).

Depois de ser aclamado profeta, Jesus se declara agora Messias. A resposta poderia ter um alcance teológico mais amplo ainda porque Jesus aplica a si a fórmula da revelação de Deus a Moisés na sarça ardente “Eu sou” (Ex 3,14s; Os 1,9; cf. Jo 6,20; 8,24.28.58; 13,19; 18,5s).

A Bíblia do Peregrino (p. 2558) comenta: A resposta da mulher parece evasiva: o pronunciamento do profeta não convence ou não é entendido; e nós nos remetemos ao veredicto definitivo do Messias, quando ele chegar. Os samaritanos o identificavam com o profeta indicado por Moisés: “Suscitarei um profeta entre os seus irmãos … porei minhas palavras em sua boca, e vos dirá o que eu quiser” (Dt 18,18).

Jesus se declara abertamente. Mas seu conceito de Messias é diferente e superior. A fórmula “Eu sou” é uma das que serão repetidas ao longo do evangelho, com ou sem predicado (6,35; 8,12.23.28), carregando-se de seu valor revelador (nela pode ressoar o “Eu sou” da revelação a Moisés, Ex 3,14).

Nesse momento, chegaram os discípulos e ficaram admirados de ver Jesus falando com a mulher. Mas ninguém perguntou: “Que desejas?” ou: “Por que falas com ela?” Então a mulher deixou o seu cântaro e foi à cidade, dizendo ao povo: “Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Será que ele não é o Cristo?” O povo saiu da cidade e foi ao encontro de Jesus (vv. 27-30).

Agora muda a cena: “chegaram os discípulos” e a mulher se “foi (var. correu) à cidade” anunciando o messias (=Cristo).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2050) comenta: Não se trata somente dos usos que se opunham à conversa de um homem com uma mulher desconhecida; os discípulos se espantam sobretudo com o fato de Jesus ter transmitido a Palavra a uma mulher que, além de mulher, era também samaritana; eles não compreenderam que Jesus procura o que o Pai procura (cf. 4,23).

A Bíblia do Peregrino (p. 2558) comenta: Os discípulos se admiraram: porque não era costume de Jesus, ou porque um rabi não conversa sobre coisas sérias com mulheres (cf. Eclo 9,3.5.8.9 no contexto). O narrador testemunha a liberdade limpa de Jesus. Ela, interiormente transformada, começa sua campanha de divulgação sobrepondo os dois títulos: o de verdadeiro profeta advindo (cf. Os 7,1 “manifesta-se o delito”), e o de Messias duvidoso. Foi contagiada pelo desejo missionário.

Enquanto isso, os discípulos insistiam com Jesus, dizendo: “Mestre, come”. Jesus, porém disse-lhes: “Eu tenho um alimento para comer que vós não conheceis”. Os discípulos comentavam entre si: “Será que alguém trouxe alguma coisa para ele comer?” Disse-lhes Jesus: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra (vv. 31-34).

A refeição combina com a bebida (água). A iniciativa dos discípulos do alimento passa para outro mal-entendido, que provoca a explicação transcendente (cf. depois no cap. 6 o pão da vida). É algo que tão pouco os discípulos íntimos “não conhecem”. O que alimenta que dá força a Jesus é “fazer a vontade daquele que me enviou” (variante de Dt 8,3 citado em Lc 4,4 e aumentado em Mt 4,4; “o homem não vive somente do pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus”). O alimento já não é mais a lei nem a sabedoria como no AT (Sl 19,11; Pr 9,5; Eclo 24,18). “E realizar a sua obra”, a missão de Jesus é terminar a tarefa que Deus suspendeu no sétimo dia da criação (Gn 2,2, cf. Jo 5,17: “Meu Pai trabalha até agora e eu também trabalho” e que será consumada na cruz (19,30).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1994) comenta: Paulo (Rm 8,3; Gl 4,4) e os evangelhos sinóticos já viam Jesus como enviado do Pai, mas João não cessa de insistir nisso (3,17; 5,24.36-38; 8,42; 9,7; 11,42; 17,8.21-25), Cristo vem do Pai (3,31; 6,46; 7,29; 8,42; etc.), desce do Pai (3,13; 6,38.42). Diz as palavras do Pai (3,34; 7,16; 8,26-28; 12,49-50; 14,24; 17,8.14); ele faz a vontade do Pai, aqui, as obras do Pai (9,4; 10,32.37; 14,10). A fé (3,12) consiste em reconhecer nele aquele que o Pai enviou (7,28-29; 17,21.25; 19,9). Os apóstolos serão, mais tarde, associados a missão do Filho (13,20; 17,18; 20,21; cf. 17,20; At 1,26; 22,21; Rm 1,1).

Não dizeis vós: ‘Ainda quatro meses, e aí vem a colheita!’ Pois eu vos digo: Levantai os olhos e vede os campos: eles estão dourados para a colheita! O ceifeiro já está recebendo o salário, e recolhe fruto para a vida eterna. Assim, o que semeia se alegra junto com o que colhe. Pois é verdade o provérbio que diz: ‘Um é o que semeia e outro o que colhe’. Eu vos enviei para colher aquilo que não trabalhastes. Outros trabalharam e vós entrastes no trabalho deles” (vv. 35-38).

Jesus falou da sua missão (envio), agora envolve a missão dos discípulos (cf. 20,21). Olhando para a lavoura, pode-se avaliar o tempo que ainda antecede a colheita; mas a ceifa escatológica (últimos tempos) começou e ela deve abranger todas as regiões do mundo fora de Israel (4,42). Os samaritanos que se aproximam são agora as primícias (cf. Mt 9,37s; Lc 10,2; 17,15s; At 1,8; 8,1-25). Os discípulos serão os ceifeiros dos últimos tempos; eles recolhem o que custou trabalhos e sofrimentos ao que semeia: alusão aos antigos profetas e sobretudo a Jesus.

A Bíblia do Peregrino (p. 2558) comenta: O que foi a ação de Jesus pregando a uma semipagã, eleva-se a princípio e exemplo de expansão missionaria. Da refeição se passa suavemente ao tema agrário; semeadura, ceifa e colheita como imagens do ministério presente de Jesus e do futuro dos discípulos. Pode-se comparar com a versão breve dos sinóticos (Mt 9,37; Lc 10,20). Pertencem a linguagem corrente a frase (proverbio?) “Daqui a quatro meses a ceifa”, a visão oposta dos campos já dourados de espigas, o trabalho, o salário e a alegria da colheita (Is 9,1; Sl 4,8), o refrão resignado “um semeia, e o outra ceifa”. O sentido transcendental é transparente. Os profetas semearam a seu modo, e Jesus está semeando. Aí já existe uma messe espigada, os samaritanos maduros para a fé (a Samaria que Yhwh semeará para si, Os 2,25). Fica pendente uma colheita maior que caberá aos discípulos recolher. A colheita escatológica: “Naquele dia o Senhor debulhará as espigas desde o Grande Rio até a torrente do Egito; mas vós, israelitas, sereis respigados um por um” (Is 27,12). Todo um programa missionário.

Muitos samaritanos daquela cidade abraçaram a fé em Jesus, por causa da palavra da mulher que testemunhava: “Ele me disse tudo o que eu fiz.” Por isso, os samaritanos vieram ao encontro de Jesus e pediram que permanecesse com eles. Jesus permaneceu aí dois dias. E muitos outros creram por causa da sua palavra. E disseram à mulher: “Já não cremos por causa das tuas palavras, pois nós mesmos ouvimos e sabemos, que este é verdadeiramente o salvador do mundo” (vv. 39-42).

Jesus, após ser aclamado como profeta e se revelado como messias/Cristo (v. 25s), agora não é mais somente o “rei de Israel” (1,49), mas o “salvador do mundo”. Este universalismo é um dos traços característicos do evangelho e das cartas de João (cf. 1,29; 3,16; 11,52; 1Jo 2,2; 4,14). Contudo, “a salvação vem dos judeus” (4,22).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2051) comenta: O testemunho da mulher, como mais tarde o dos apóstolos, só conduz à fé porque é ocasião do encontro com a palavra e a pessoa de Jesus mesmo. O título de salvador era por vezes atribuído ao Senhor no AT (Is 19,20; 43,3), mas por vezes também ao imperador no mundo helenístico. Os escritores do NT o aplicam geralmente a Jesus (Mt 1,21; Lc 1,47; 2,11; At 5,31; 13,23; Fl 3,20); Jo é o único a empregar a fórmula de “Salvador do mundo” (1Jo 4,14), que sublinha a universalidade da salvação; inserida no término desta narração, ela destaca o seu alcance simbólico.

A Bíblia do Peregrino (p. 2559) comenta: Acontece uma conversão prodigiosa de samaritanos semipagãos. A mulher foi evangelizadora (adiantando-se a Maria junto ao sepulcro, 20,11-18) e desencadeou um processo. Ao ouvi-la creram “nele”; crendo acorreram a ele; ouvindo-o creram mais e melhor. E fazem sua profissão de fé, “sabemos, conhecemos” que Jesus é o Salvador do mundo (cf. Is 45,15.21), não só de judeus e samaritanos; não só profeta ou Messias político. O Salvador é e traz a salvação, revelação e vida. O título pagão de soberanos, assumido pelos cristãos e predicado de Jesus, adquire um sentido novo, autentico, definitivo. Título que já lemos no AT.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1297s) resume: A conversa com a samaritana permite colocar em diálogo com as tradições de dois grupos irmãos, mas se hostilizam um ao outro. A discussão começa em torna da água, necessária para a vida, e se encaminha para o anúncio da água viva que Jesus é e que deve ser toda pessoa que se compromete com ele, para a vida do mundo. A recuperação das memórias da gente samaritana prossegue, agora que o assunto são os maridos da mulher (possível alusão às divindades que aí eram cultuadas em associação a Javé; cf. 1Rs 17,24ss). E tudo se encaminha para a superação dos preceitos e das formas comuns de culto. Os judeus adoravam a Deus no templo de Jerusalém, enquanto a gente samaritana fazia a mesma coisa no templo do monte Garizim. Mas a adoração que Deus deseja não é aquela feita em templos e em ligares predeterminados, e sim a que surge da interioridade do ser humano e se dá no decorrer da vida, em todos os momentos e situações. Esse culto fará de irmãos divididos uma comunidade reconciliada.

Enquanto a samaritana proclama à sua gente a descoberta que acaba de fazer, os discípulos se escandalizam com a atitude de Jesus. Mas eles devem aprender que nenhum preconceito pode servir de obstáculo à missão de “reunir os filhos de Deus que estavam dispersos” (11,52).

A passagem de Jesus, um judeu, pela Samaria, permite reconhece-lo como “salvador do mundo”. A comunidade que se forma em volta do Salvador será expressão da possibilidade de uma vida reconciliada, com a superação dos preconceitos e da inimizade entre os irmãos. A continuação do caminho mostrará outros grupos que Jesus encontra à margem da sociedade e dos esquemas religiosos, aos quais ele, com palavras e ações, apresentará sua proposta de vida plena.

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