16 de Agosto 2019, Sexta-feira: Com efeito, existem homens incapazes para o casamento, porque nasceram assim; outros, porque os homens assim os fizeram; outros, ainda, se fizeram incapazes disso por causa do Reino dos Céus. Quem puder entender, entenda” (v. 12).

19ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Js 24,1-13

Do livro de Js, nossa liturgia nos apresenta só o início (a travessia do Jordão no cap. 3, leitura de ontem) e hoje e amanhã a conclusão da aliança. Todo relato marcial da conquista e da reforma agrária com Josué distribuindo a terra entre as doze tribos foi omitido. Mas sabe-se hoje que a conquista violenta da terra como é relatada em Js (cerca de 1200 a.C., incluindo “extermínio” de populações inteiras; cf. v. 8), é uma construção posterior que idealiza a posse da terra e a repulsão de povos vizinhos e residentes que ameaçam a identidade do pequeno povo dos judeus na época da redação (entre a reforma do rei Josias e o (pós) exílio, séc. VII a V).

A questão da interpretação é também política: Os que entendem a Bíblia ao pé da letra, justificam com a conquista de Josué também as guerras do exército israelense de hoje. A arqueologia, porém, mostrou que por volta de 1200 a.C. aconteceu uma transição da cultura urbana (época tardia de bronze, 1500 a 1200) para uma cultura rural (nova época do ferro a partir de 1200). Várias cidades cananeias foram abandonadas por crises econômicas da região; (p. ex. Jericó e Aí já estavam em ruinas 200 anos antes de Josué, e as ruinas devem ter inspirado os autores para a narrativa dos muros de Jericó, cf. Js 6). Mas neste período surgiram muitas aldeias nas montanhas da Palestina. Esta teoria, que apoia indiretamente o lado dos palestinos de hoje, sustenta um assentamento pacífico de nômades (que se juntaram aos grupos hebreus que vieram do Egito) nas montanhas evitando as cidades cananeias. Outros veem na “conquista” uma migração de campesinos na planície que vendiam seus produtos nas cidades, mas com a crise no comércio tinham que se mudar para as montanhas. O que unirá os campesinos, os nômades e os grupos que vieram do Egito, é a fé em Javé (cf. Js 24). O nome “Israel” ainda não significava o povo de Deus, mas apenas o reino do Norte (cf. 1Rs 12), e no exílio babilônico (587-538) tornou-se para os judeus uma sigla de identificação para todos os adoradores de Javé.

Depois do último discurso de Josué (cap. 23), esperava-se a notícia da sua morte. Esta se retarda (24,29) para dar espaço à renovação da aliança. O último capítulo (24) que ouvimos hoje e amanhã apresenta a grande assembleia em Siquém em três partes. Na primeira, Josué apresenta as intervenções de Javé em favor de Israel (vv. 2-13; cf. as confissões de fé de Dt 6,21-24 e 26,5-9). A segunda (diálogo, vv. 14-24) e a terceira parte (rito da aliança, 25-28) ouviremos amanhã.

É provável que este texto reproduza uma cerimônia feita periodicamente, para alimentar a consciência histórica e sustentar a luta do povo. É importante celebrar a luta e as vitórias, a fim de manter viva a aspiração popular, na qual se manifesta o projeto de Deus.

Este capítulo foi acrescentado durante ou depois do exílio, mas a tradição que ele representa é antiga. A fé no Deus Javé, trazida pelo grupo que Josué conduziu, é proposta por ele a outros grupos que ainda não tinham ouvido falar dela. Estes não estiveram no Egito e não se beneficiaram com as maravilhas de Êxodo e da revelação do Sinai; conteúdo, não são cananeus urbanos e têm uma origem comum com o grupo de Josué que era efraimita (Nm 13,8.16; Js 24,30): trata-se de tribos do Norte que por este pacto, aceitam a fé em Javé e se tornam assim parte do povo de Deus.

Josué reuniu em Siquém todas as tribos de Israel e convocou os anciãos, os chefes, os juízes e os magistrados, que se apresentaram diante de Deus. Então Josué falou a todo o povo: (vv. 1-2a)

A cidade-santuário Siquém (17,7; 20,7) era, pela sua posição central entre os montes Ebal e Garizim, um lugar favorável à reunião das tribos (cf. 8,30-35; cf. outra assembleia em que se dividem as tribos em 1Rs 12). Pelo seu passado, tinha uma posição predestinada para a conclusão deste pacto religioso: é o primeiro lugar em Canaã onde Abraão chegou e ergueu um altar (Gn 12,6-7). Lá, Jacó (chamado de Israel em 32,29) adquiriu seus direitos de terra e também ergue um altar (Gn 33,18-20) lançando fora os ídolos trazidos da Mesopotâmia (Gn 35,4). Siquém era a primeira capital do reino do Norte (Israel, 1Rs 12,25).

Neste agrupamento oficial e solene (cf. 23,2), Josué age como chefe da liga das tribos, na qualidade de sucessor de Moisés. No seu discurso, se destacam o protagonismo de Deus – é ele que liberta e dá a terra – e os verbos “habitar, dar”, “sair, entrar”, “tirar (tomar), introduzir”, “caminhar, conduzir”.

“Assim diz o Senhor, Deus de Israel: ‘Vossos pais, Taré, pai de Abraão e de Nacor habitaram outrora do outro lado do rio Eufrates e serviram a deuses estranhos” (v. 2b).

A novidade deste prólogo histórico é remontar à etapa patriarcal. Começa a história em tempos imemoriais na Mesopotâmia, onde se encontrava as raízes étnicas do povo, segundo a redação sacerdotal (Gn 11,26-32). Na perspectiva do capítulo, os antepassados serviam ou prestavam culto a outros deuses (cf. Gn 31,19; 35,2-4; o nome Taré pode sugerir um culto ao deus lua).

Mas eu tirei Abraão, vosso pai, dos confins da Mesopotâmia, e o conduzi através de toda a terra de Canaã, e multipliquei a sua descendência (v. 3).

A redação sacerdotal (538-520) fez uma grande síntese das tradições sobre as origens do povo e com isso queria motivar os judeus acomodados no exílio da Babilônia para voltarem a terra prometida com antigamente Abraão que saiu do sul da Babilônia no mesmo caminho para a terra que Deus lhe prometeu (cf. a redação sacerdotal em Gn 11,31-12,5; 15,7).

“Tirei” (lit. tomei); é verbo de eleição pessoal. Tudo se concentra num só homem introduzido com seu segundo nome, Abraão (não Abrão que seria coerente com a versão de Gn 12; cf. Gn 17,5). “E o conduzi” (lit. o fiz caminhar) pela terra, prometida e ainda não entregue. O dom por hora não é a terra, mas um descendente legítimo, Isaac.

Dei-lhe Isaac, e a este dei Jacó e Esaú. E a Esaú, um deles, dei em propriedade o monte Seir; Jacó, porém, e seus filhos desceram para o Egito (v. 4).

Novos dons em que a história começa a bifurcar-se. Deus “dá” a Isaac dois filhos: o mais novo antecede o mais velho; a Esaú entrega uma terra (Gn 36,6-8), a Jacó nada. Esaú repousa (é diversa a versão de Gn 27,40) e sai da história dramática: não será ator nem testemunha dela. Jacó em vez de receber um dom tem de emigrar para o Egito (Gn 46,1-27).

Em seguida, enviei Moisés e Aarão e castiguei o Egito com prodígios que realizei em seu meio, e depois disso vos tirei de lá. Fiz, portanto, que vossos pais saíssem do Egito, e assim chegastes ao mar. Os egípcios perseguiram vossos pais, com carros e cavaleiros, até ao mar Vermelho. Vossos pais clamaram então ao Senhor, e ele colocou trevas entre vós e os egípcios. Depois trouxe sobre estes o mar, que os recobriu. Vossos olhos viram todas as coisas que eu fiz no Egito e habitastes no deserto muito tempo (vv. 5-7).

Alterna-se a segunda e a terceira pessoa (vós, os antepassados) devido à influência litúrgica. Evita-se o verbo “habitar” para o tempo da escravidão no Egito. Desapareceram os quatrocentos anos (cf. Gn 15,13; Ex 12,40s) da estadia no Egito e se salta para a saída ou libertação. Começa com uma missão (Ex 4), primeira de três presenças. Destacam-se os “prodígios” (pragas, Ex 7-12), o “mar Vermelho” (Ex 14-15) e a estadia “no deserto”, mas não se menciona os acontecimentos no Sinai (Ex 19-40).

Eu vos introduzi na terra dos amorreus que habitavam do outro lado do rio Jordão. E, quando guerrearam contra vós, eu os entreguei em vossas mãos, e assim ocupastes a sua terra e os exterminastes (v. 8).

O espaço dedicado a etapa final (vv. 8-13) chama a atenção. Começa com um resumo programático no v. 8. A entrada na terra vem a ser mais belicosa que a saída, nos dois lados do Jordão.

“Amorreus” é um nome genérico que significa (semitas) ocidentais. Por volta de 1750 a.C., esta etnia fundava as primeiras dinastias na Mesopotâmia (cf. Hamurabi, Mari). Na Bíblia, os amorreus são identificados com os cananeus (Js 7,7; Gn 10,10s; 14,7; 1Rs 21,26) ou, diferenciados, significam os habitantes da Transjordânia (Nm 13,29; 21,13; Js 12,2). Eram de estatura forte e alta (Dt 1,27s; Am 2,9) e não deixaram os israelitas morarem na planície fértil (Jz 1,34s).

Levantou-se então Balac, filho de Sefor, rei de Moab, e combateu contra Israel, e mandou chamar Balaão, filho de Beor, para que vos amaldiçoasse. Eu, porém, não o quis ouvir. Ao contrário, abençoei-vos por sua boca, e vos livrei de suas mãos (vv. 9-10).

Na Transjordânia, o episódio de Balaão ocupa o lugar tradicional de Seon, rei amorreu e de Og rei de Basã (Nm 21,21-35). Por suas artes mágicas, ele é a contrapartida dos magos do Egito (Ex 7,11-12). Logicamente, Balaão invoca suas divindades para maldizer os intrusos; ilogicamente o Senhor não invocado diz: “não o quis ouvir”. Porque impera outra lógica superior: só o Senhor controla bênçãos e maldições e converte Balaão em oráculo seu (Nm 22-24).

A seguir, atravessastes o Jordão e chegastes a Jericó. Mas combateram contra vós os habitantes desta cidade – os amorreus, os fereseus, os cananeus, os hititas, os gergeseus, os heveus e os jebuseus. Eu, porém, entreguei-os em vossas mãos. Enviei à vossa frente vespões que os expulsaram da vossa presença – os dois reis dos amorreus – e isso não com a tua espada nem com o teu arco (vv. 11-12).

A travessia do Jordão (cap. 3-4) é simplesmente mencionada, sem milagre ou outra amplificação (cf. leitura de ontem). Na Cisjordânia recomeça a guerra. A versão militar se impõe, na conquista de Jericó (contra a versão do cap. 6 em que os chefes de Jericó não atacaram) e na acumulação enumerativa de inimigos (sete povos de Canaã; cf. 3,11; 5,10; Dt 7,1), inclusive os “dois reis dos amorreus”, que pertencem a Transjordânia que são Seon e Og (Nm 21,21-35).

Mas é uma guerra santa, não decidida por armas humanas, “não com a tua espada nem com o teu arco”, mas pelo pânico infundido por Deus. Pânico (“vespões”, Ex 23,27s; Dt 7,20) que atua como contrapartida das águas que se precipitaram sobre os egípcios. O livro de Js (e toda história deuteronomista) não foi escrito para glorificar a violência da “conquista”, mas para mostrar que Deus deu a terra (milagrosamente contra povos mais fortes), mas depois Israel não sabia valorizar este dom e perdeu a terra (em 722 o reino do Norte, em 587 o reino do Sul) por causa da sua idolatria (cf. 23,12-16; cf. Dt 29,21-30,20; Jz 2,11-15 etc.).

A lista completa dos sete nomes dos povos de Canaã se lê em também em Dt 7,1; Js 3,11 e Ne 9,8; em outros textos faltam os gerseseus (como em Ex 3,8; etc.). Os heteus são restos dispersos do grande império da Ásia menor; difíceis de identificar são os heveus (Gn 34,2; 2Sm 24,7), ferezeus (Gn 13,7; 34,30) e gergeseus (Gn 10,16). Os jebuseus conservarão por longo sua capital Jerusalém conquistada só por Davi (2Sm 5,6-9).

Eu vos dei uma terra que não lavrastes, cidades que não edificastes, e nelas habitais, vinhas e olivais que não plantastes, e comeis de seus frutos (v. 13).

Mais uma vez, Deus é o protagonista da história e da terra de Israel. É ele que dá a terra (expressões semelhantes em Dt 6,10s). No momento inicial, os israelitas não se cansam, não constroem nem plantam¸ encontram casa e mesa posta. Tudo é graça. Mas não obedecendo à Lei, pode se perder a graça. A história deuteronomista (Js, Jz, 1-2Sm, 1-2Rs) vê o exílio babilônico do seu tempo causado pelo pecado do povo que se desviou do doador divino da terra e por isso a perdeu (23,12-16; cf. Dt 29,21-30,20; Jz 2,11-15 etc.).

Amanhã ouviremos a continuação do discurso de Josué e a resposta do povo.

 

Evangelho: Mt 19,3-12

No capítulo 19, o evangelista Mt voltou a copiar da sua fonte Mc (Mc 10), apresentando palavras de Jesus sobre família (casamento), crianças e propriedade (cf. Mc 10,1-31). No evangelho de hoje, falando da indissolubilidade do matrimônio (também no sermão da montanha, 5,31-32), Mt acrescentou dois detalhes importantes, a cláusula do divórcio em caso de fornicação (v. 9) e a opção pelo celibato (v. 12).

Jesus já está no caminho a Jerusalém e passa por Transjordânia (19,1). “Numerosas multidões o seguiram, e Jesus aí as curou” (v. 2). Em vez de ensinamentos no início (Mc 10,1), Mt apresenta curas, porque Jesus não só ensina, mas pratica a misericórdia. Este detalhe pode ajudar na interpretação e pastoral desta questão, porque, antes de tudo, é a misericórdia e a compaixão que deve valer também para pessoas casadas, solteiras, viúvas, divorciadas, homossexuais e celibatárias.

Alguns fariseus aproximaram-se de Jesus, e perguntaram, para o tentar: “É permitido ao homem despedir sua esposa por qualquer motivo? ” (v. 3).

O divórcio já era bastante discutido no judaísmo, já que na Lei está escrito: “Quando um homem se casa com uma mulher e consuma o matrimônio, se depois ele não gostar mais dela, por ter visto nela alguma coisa inconveniente, escreva para ela um documento de divórcio e o entregue a ela, deixando-a sair de casa em liberdade“ (Dt 24,1).

Poderia se discutir somente o aspecto jurídico: “por qualquer motivo”, ou seja, o que seria “coisa inconveniente”. Nas escolas dos fariseus havia duas opiniões: o rigoroso Shammai admitia divórcio só em caso de adultério, o liberal Hillel por motivos mais fúteis (ex. não cozinhar bem). O profeta Malaquias reclamou da prática do divórcio (Ml 2,13-14.16). Mas não se podia negar que havia o direito de se divorciar, ao não ser que alguém quisesse invalidar a Lei. Por isso, a pergunta dos fariseus é “tentadora”. Se Jesus negasse o direito do divórcio, estaria contra a Lei de Moisés.

Jesus respondeu: “Nunca lestes que o Criador, desde o início os fez homem e mulher? E disse: “Por isso, o homem deixará pai e mãe, e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne”? (vv. 4-5).

Mt reestruturou o diálogo de Mc: Jesus cita logo dos dois primeiros capítulos de Gênesis (Gn 1,27; 2,24). Em vez de entrar no detalhe legalista, Jesus apresenta primeiro a vontade primordial do Pai, como base da lei (a “Lei de Moisés” são os cinco primeiros livros, Gn inclusive). A primeira frase de Gn 1,27 refere-se ao primeiro casal: Deus criou um Adão e uma Eva (não quatro mulheres para Adão; a poligamia é permitida em outras culturas, ex. no Islã, um homem pode se casar com até quatro mulheres).

Olhando para o conjunto do AT (Antigo Testamento) vemos a mulher como auxiliar dado por Deus ao homem (Gn 2,18; cf. Pr 18,24; 19,14; Eclo 36,29-31), mas também o homem deve auxiliar e cuidar da sua esposa (cf. Ex 21,7-11; Dt 20,7; 24,5; 1Sm 1,8), ele é responsável pela mulher (mesmo sem união legítima, cf. Ex 22,15; Dt 22,8-9.13-21.29; 21,10-14).

De modo que eles já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe” (v. 6).

Depois de citar a Bíblia, Jesus tira sua conclusão. Subentende-se que foi Deus que uniu o casal criando a afeição e atração de ambos que se confirma numa celebração religiosa do matrimônio. Outras religiões ou filosofias explicavam a atração sexual através de um único ser humano, macho e fêmeo ao mesmo tempo, que foi dividido em duas partes e por isso o macho e a fêmea se atraem e querem se unir de novo. Na Bíblia, é Deus que criou, desde o início, homem e mulher e, como Jesus salienta, quer sua união permanente. Aliás, não apenas o homem é imagem de Deus, mas a mulher igualmente, ou melhor, a comunhão dos dois (cf. Gn 1,26s).

Os fariseus perguntaram: “Então, como é que Moisés mandou dar certidão de divórcio e despedir a mulher? ” Jesus respondeu: “Moisés permitiu despedir a mulher, por causa da dureza do vosso coração. Mas não foi assim desde o início (vv. 7-8).

Os fariseus insistem na sua pergunta reforçando-a com a menção da certidão de divórcio de Dt 24,1. Jesus não nega a lei do divórcio (que era uma proteção para a mulher demitida não ser considerada fugitiva), mas afirma que a lei do divórcio era concessão “por causa da dureza do coração” do homem, não é expressão da vontade divina. Dureza do coração (cf. Dt 10,16; Jr 4,4; Ez 3,7; Eclo 16,10) no AT significa desobediência por causa do coração insensível aos preceitos divinos. Moisés concedeu o divórcio por causa do coração duro do homem em seu estilo de vida insensível a respeito do que Deis queria em relação à mulher.

Pelo mesmo motivo existe o divórcio no Código civil de muitos países, mas para pessoas religiosas fica evidente a vontade de Deus (que, aliás, é também a vontade dos filhos, que os esposos permaneçam unidos).

Por isso, eu vos digo: quem despedir a sua mulher – a não ser em caso de união ilegítima – e se casar com outra, comete adultério” (v. 9).

Na terceira antítese do sermão da montanha (5,31s), Jesus já deu a mesma resposta, uma norma que se entende na Igreja Católica não só como ética do coração, mas como lei canônica. A tradução da liturgia “a não ser em caso de união ilegítima” não corresponde ao original grego. A palavra grega porneia, não significa “união ilegítima” entre parentes (cf. Lv 18; At 15,20.29), mas um mau comportamento sexual que pode ser muitas coisas (a Bíblia Pastoral traduz: “fornicação”); em 5,32, que fala de mulheres casadas, designa o ato sexual fora do casamento, então adultério.

Mt copiou esta norma já de Mc 10,11. Mas em Mc, como em Lc 16,18 e 1Cor 7,10s não há exceção, por isso, considera-se a versão de Mt posterior, uma adaptação pastoral para sua comunidade. Quando alguém se casa outra vez sem ser viúvo, o divórcio se torna definitiva. Por isso estas palavras não são só um apelo ao nosso coração (à nossa consciência, ao nosso amor). Já as primeiras comunidades cristãs tiraram conclusões jurídicas. Seguramente, Jesus não fundou uma igreja já com estatutos do direito canônico, mas aqui temos uma sentença de direito em potencial.

Mc e Lc não conhecem exceções algumas. Paulo não aboliu nem atenuou a proibição de Jesus, mas toma uma decisão pastoral num dilema entre mundo (cônjuge não-cristão) e comunidade cristã (cf. 1Cor 7,12-17), chamado de “privilégio paulino”. Semelhante Mt que não questiona a regra de Jesus, mas demonstra com sua clausula – “a não ser por causa de fornicação”- uma exceção dentro desta regra.

Pode haver perdão e reconciliação depois de um adultério? (cf. Jo 8,10-11; 1Cor 7,10). Muitos judeus pensavam que em caso de adultério, o casamento já estava destruído. Fornicação era uma abominação que tornou a terra impura (cf. Lv 18,25.28; Dt 24,4: Os 4,2-3; Jr 3,1-3,9) e em caso de adultério precisava-se divorciar. Para Mt, a questão fica aberta (cf. 18,15-17.21s).

Já em Mc, a proibição de Dt 24,4 de não se casar outra vez com sua própria mulher divorciada estendeu-se a todas as mulheres divorciadas. “Quem se casa com a mulher divorciada, comete adultério” (Mc 10,11; Mt 5,32; 19,9; Lc 16,18). A consequência desastrosa para tais mulheres, Mt atenua com sua clausula: como na sua comunidade o divórcio só se concede em caso de adultério, então só é proibido casar-se com uma adúltera.

A posição católica a respeito do divórcio é conhecida. Não existe divórcio, e um segundo casamento nesta igreja só pode haver para viúvos. Mas em casos graves pode haver uma “separação de mesa, cama e residência”, porém mantendo o vínculo do matrimônio. Assim a posição católica está perto de Mt que não permite casar-se com uma adúltera. Depois se iguala a situação da mulher ao do homem. Mt (5,32; 19,9) e o AT se dirigiram verbalmente só aos homens. Se valer a mesma coisa para mulheres, então é proibido casar-se com homens adúlteros também. O divórcio judaico admitiu outros casamentos; Mt 5,32 e 19,9 com igualdade para os gêneros diz que não, o que coincide em muito com a posição católica, não em termos (divórcio permitido só em caso de adultério, mas não segundo casamento com adúlteros), mas de fato (só separação de mesa, cama e residência).

Na Igreja Ortodoxa, o divórcio possibilita um segundo casamento, mas só com penitência. O que destrói o casamento e serve de motivo para o divórcio, é o adultério (cf. 5,32; 19,9), mas pode haver outras razões. A possibilidade do segundo casamento não se vê como direito divino, mas como “concessão” por causa da fraqueza humana (cf. v. 8).

Para as igrejas protestantes, o casamento não é um sacramento, mas “coisa do mundo” (Lutero). Entendem Mt 5,32 e 19,9 como apelo ético aos corações, que se há de diferenciar do código civil. Lutero disse que o amor não precisava de leis. Isso possibilita um trabalho pastoral guiado pelo amor e não pela lei.

Mas ambas as igrejas sofrem com sua posição: Os católicos lamentam a dureza da sua doutrina e seu direito canônico que parecem contrariar o amor, o perdão e a misericórdia de Deus em casos concretos. Mas a ausência de um direito que regula o divórcio nas igrejas protestantes deixa o pastor sozinho nas suas decisões, geralmente ele escolhe o caminho de menor resistência aceitando e abençoando tudo. O amor, porém, precisa do apoio de leis para ajudá-lo a não aceitar e ocultar tudo. A posição católica está mais perto de Mt (5,32; 19,9), mas há uma certa tensão entre a norma de Mt e o centro da pregação de Jesus que é o amor incondicional de Deus aos seres humanos. Não é fácil ser justo (lei) e misericordioso (amor) ao mesmo tempo. É um dilema entre direito canônico e trabalho pastoral (ex. abençoar ou excluir da comunhão os casais de segunda união). Um pároco disse uma vez: “Melhor quebrar uma norma da Igreja do que o coração de um ser humano”. As normas, porém, devem orientar para o melhor do ser humano.

Os discípulos disseram a Jesus: “Se a situação do homem com a mulher é assim, não vale a pena casar-se.” Jesus respondeu: “Nem todos são capazes de entender isso, a não ser aqueles a quem é concedido (vv. 10-11).

Os discípulos se assustam diante da exigência de um vínculo indissolúvel (os fariseus já não intervêm). Em Mc 10,10, os discípulos precisam de um ensinamento privativo para aprofundar o assunto, e Jesus estende a mesma norma também para fora da Palestina, onde uma mulher podia se divorciar do esposo (Mc 10,11s).

Aqui em Mt, os discípulos entendem a norma, mas acham difícil cumpri-la, por isso seria melhor não se casar. Porque não é Pedro que fala em nome deles? Porque já era casado (8,16p; 1Cor 9,5)? A palavra mais difícil de entender é a seguinte (v. 12). Dado que fala de dom de Deus, parece referir-se ao regime exigente do “reino” e ao caso extraordinário dos “eunucos pelo reino”.

Com efeito, existem homens incapazes para o casamento, porque nasceram assim; outros, porque os homens assim os fizeram; outros, ainda, se fizeram incapazes disso por causa do Reino dos Céus. Quem puder entender, entenda” (v. 12).

A tradução da liturgia fala de “homens incapazes para o casamento”, atenuando a palavra “eunuco” (castrado). Jesus não retira o que disse antes, mas dá mais um passo, propondo outra situação que terá um lugar na sua comunidade: o celibato voluntariamente aceito como dom de Deus e motivado pelo reinado de Deus e sua pregação. O AT registra apenas o caso de Jeremias (Jr 16).

Um homem judeu tinha quase como obrigação casar-se e procriar. Não procriar era comparado com um derramamento de sangue, ou seja, diminuir e inibir a vida. A frase de Jesus pode ter origem numa polêmica contra ele: um rabino que não se casa parece um eunuco.

Em Israel, os eunucos eram excluídos do ofício sacerdotal (Dt 23,2; cf. Lv 22,24), mas podiam figurar como funcionários (2Rs 8,6; 9,32); ficaram em cargos importantes em cortes estrangeiras (At 8,26-40); em época posterior do judaísmo, abre-se a passagem para uma avaliação positiva (Is 56,3-5; Sb 3,14); entre os monges de Qumrã, alguns praticavam o celibato. Enquanto o apóstolo Pedro era casado, outro apóstolo, Paulo, enfatizava o caráter voluntário do celibato em 1Cor 7,7-9.25-38.

Na sua resposta, Jesus distingue três tipos de eunucos: dois são involuntários, são “incapazes” de procriar por natureza (por nascença, impotentes, homossexuais?) Ou por intervenção humana (castração, trauma na educação, …), outros aceitam voluntariamente não se casar, e são motivados pelo reino (cf. 6,33). São eunucos no espírito (por vontade própria) e não no físico (por castração).

“Eunuco” não se deve entender ao pé da letra aqui e também não a recomendação de 18,8s (arrancar os membros que nos levam a pecar), como fez o teólogo Orígenes (sec. III) que se castrou de fato, mas depois descobriu que ainda continuava com pensamentos impuros na cabeça. Não podia arrancar a cabeça? Orígenes desenvolveu depois a interpretação alegórica (simbólica) da Bíblia, quer dizer, as palavras da Bíblia podem ter mais sentidos, além do literal.

O site da CNBB comenta: Quem comete adultério, peca duas vezes. O primeiro pecado é o da fornicação, do desrespeito da pessoa do outro ou da outra como templo do Espírito Santo, o que se constitui em profanação do sagrado, da propriedade divina pela consagração batismal. O segundo pecado é contra o vínculo matrimonial, é o rompimento de uma promessa que foi feita diante de Deus e da Igreja. E a causa de tão grave pecado encontra-se na dureza do próprio coração, que não é capaz de abrir-se à graça divina e aos verdadeiros valores e se torna escravo da luxúria, fazendo dela o verdadeiro deus da própria vida.

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