16 de agosto de 2018, Quinta-feira: Ao terminar estes discursos, Jesus deixou a Galileia e veio para o território da Judeia além do Jordão

Leitura: Ez 12,1-12

Ouvimos hoje de um gesto profético de Ezequiel. Não basta só a transmitir a palavra aos ouvintes, mas é preciso apresentá-la com um gesto, com seu corpo, com sua vida. Não basta o povo rebelde ouvir a mensagem, mas precisa ver o que Deus anuncia através do profeta. Gestos simbólicos deste tipo são frequentes nos profetas do AT (cf. Os 1-3; Is 20; Jr 13; 16; 18; 19; 24; 27-28; 32; Ez 4-5; 12; 24 etc., cf. Mt 21,18-19p; At 21,10s).

Já nos primeiros gestos (cf. caps. 4-5), Ezequiel apresentou o sítio e a destruição de Jerusalém que havia de acontecer (depois em 587 a.C.): fez um desenho da planta da cidade num tijolo e na frente dele deitou-se por 430 dias (simbolizando os 430 anos de culpa desde a construção do templo).

A leitura da hoje é uma nova ação simbólica que anuncia uma próxima deportação do povo de Jerusalém. É composta de pantomima (ação em silêncio) e explicação. A Bíblia do Peregrino (p. 2033) comenta: A partida precipitada se refere primeiro ao povo. Pouco depois acontecem os fatos narrados em 2Rs 25,1-7, e um discípulo do profeta poderia ter acrescentado os vv. 12-14 para aplicar o oráculo a Sedecias. Assim entram no texto o príncipe, o buraco e a escuridão. A ação original é feita à luz do dia e à vista de todos.

A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos: ”Filho do homem, estás morando no meio de um povo rebelde. Eles têm olhos para ver e não vêem, ouvidos para ouvir e não ouvem, pois são um povo rebelde (vv. 1-2).

Quanto ao chamado de Ez como “filho do homem”, cf. o comentário de terça-feira passada. A introdução tenta justificar a nova profecia sobre a próxima deportação: as precedentes não bastaram. Os ouvintes fazem jus ao título que tenham recebido: “casa rebelde” (2,5 etc.). Já Is 6,10 anunciou sua cegueira e surdez voluntarias, que serão reprovadas por Deutero-Isaías no exílio (Is 43,8-10).

Quanto a ti, Filho do homem, prepara para ti uma bagagem de exilado, em pleno dia, à vista deles. Emigrarás do lugar onde estás, à vista deles, para outro lugar. Talvez percebam que são um povo rebelde. Deverás tirar a bagagem em pleno dia, à vista deles, como se fosse a bagagem de um exilado. Mas deverás sair à tarde, à vista deles, como quem vai para o exílio. À vista deles deverás cavar para ti um buraco no muro, pelo qual sairás; deverás carregar a bagagem nas costas e retirá-la no escuro. Deverás cobrir a face para não ver o país, pois eu fiz de ti um sinal para a casa de Israel” (vv. 3-6).

Uma “bagagem de exilado” é uma bagagem mínima para uma longa viagem. Os deportados saem pela porta de casa; só os fugitivos escapam “por um buraco” (alusão a fuga do rei Sedecias, cf. v. 12).

“Deverás cobrir-se a face” em gesto de dor (cf. 2Sm 15,30). “Eu fiz de ti um sinal”, como outrora as intervenções de Deus na historia de seu povo (Dt 4,34; 7,19; 26,8; 29,2 etc.), o profeta é, pelo menos a partir de Isaías (Is 8,18; 20,3), o “presságio”, o sinal da obra que Deus realiza (cf. 24,24.27; Zc 3,8).

Eu fiz assim como me foi ordenado. Tirei a bagagem durante o dia, como se fosse a bagagem de exilado; à tarde, abri com a mão um buraco no muro. Saí ao escuro, carregando a bagagem às costas, diante deles. De manhã, a palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos: ”Filho do homem, não te perguntaram os da casa de Israel, essa gente rebelde, o que estavas fazendo? Dize-lhes: Assim fala o Senhor Deus: Este oráculo refere-se ao príncipe de Jerusalém e a toda a casa de Israel que está na cidade. Dize: Eu sou um sinal para vós. Assim como eu fiz, assim será feito com eles: irão cativos para o exílio (vv. 7-11).

Como conclusão, poder-se-ia ler aqui a fórmula de reconhecimento: “e saberão que eu sou o Senhor”, encontrada no v. 15.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 819) comenta: O comportamento de Ez (cf. 3,22; caps. 4-5) é expressivo, mas estranho e não deixa de surpreender os espectadores. Levados a interrogar o profeta sobre o sentido de suas palavras e de seus gestos (12,9; 21,12; 24,19; 37,18), eles escutam a explicação sem acolhê-la realmente dentro de si (cf. Ez 2,1-3.11), sem confiar realmente na palavra profética (vv. 22.27).

Já os profetas anteriores se queixavam da incredulidade de seu auditório (cf. Is 6,9-10); Jeremias encontrou uma oposição violenta que se tornou o drama de sua vida (Jr 1,17-18); e muito antes, Amós havia condenado a cínica habilidade do povo em suprimir o testemunho dos “homens de Deus” (Am 2,12).

O príncipe que está no meio deles levará a bagagem às costas e sairá ao escuro. Farão no muro um buraco para sair por ele. O príncipe cobrirá o rosto para não ver com seus olhos o país (v. 12).

Há talvez aqui, ao mesmo tempo, o anúncio da saída que será tentada pelo rei Sedecias e seu exército através de uma brecha da muralha durante o sítio de Jerusalém, e o do cativeiro do rei, ao qual serão vazados seus os olhos antes de ser levado para Babilônia (2Rs 25,1-7). Por causa dessas alusões, a Nova Bíblia Pastoral considera os vv. 1-20 um acréscimo posterior: A visão retoma várias descrições deuteronomistas sobre a vida do rei Sedecias: “fazer um buraco no muro” para fugir (v. 5; cf. 2Rs 25,4) e “os olhos para não ver” (v. 6; cf. 2Rs 25,7). O ocultamento e a escuridão prefiguram a cegueira de quem não quis ver quando tinha olhos (Jr 38).

 

Evangelho: Mt 18,21-19,1

Continuamos no quarto discurso de Jesus no evangelho de Mt que finaliza este sermão sobre a comunidade com uma parábola a partir de uma pergunta e traduz um pedido do Pai-nosso em narrativa.

Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” Jesus respondeu: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete (18,21-22)

Mt encontrou uma frase na fonte Q (coleção de palavras em comum com Lc) que recomenda o perdão “sete vezes num só dia” (Lc 17,4). Mt a coloca na boca de Pedro em forma de pergunta. “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” (v. 21). À pergunta matemática de Pedro, Jesus responde ao mesmo terreno saltando de um numero generoso a outro indefinido. “Não lhe digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (v. 22). Quer dizer, na comunidade de Jesus não existem limites para o perdão.

Este número, porém, lembra o canto da vingança ilimitada de Lamec, descendente de Caim: “Caim é vingado sete vezes, mas Lamec, setenta e sete vezes” (Gn 4,15.24). No Código de Hamurabi (1772 a.C.) e depois na Bíblia, a vingança foi limitada pela lei do talião: “(um) olho por (um) olho, (um) dente por (um) dente…” (Ex 21,23-25; Lv 24,19s; Dt 19,21). Perdão, porém, é o contrário da vingança. O que deve ser sem limites é a misericórdia e o perdão (cf. 5,38-42; Lc 23,34; At 7,60).

Seguindo o exemplo de Deus e de Jesus (Lc 15), os cristãos devem perdoar uns aos outros (5,39; 6,12p; cf. 7,2; 2Cor 2,7; Ef 4,32; Cl 3,13). Os israelitas já o faziam entre si (“com seu próximo”; cf. Lv 19,18-19; Ex 21,25). No contexto cristão, porém, “o próximo” aplica-se a todos os seres humanos compreendendo também aqueles aos quais é preciso pagar o mal com o bem (5,44-45; Rm 12,17-21; 1Ts 5,15; 1Pd 3,9; cf. Ex 21,25; Sl 5,11). Assim, o amor cobre uma multidão de pecados (Pr 10,12 citado por Tg 5,20; 1Pd 4,8).

Porque o Reino dos Céus é como um rei que resolveu acertar as contas com seus empregados. Quando começou o acerto, trouxeram-lhe um que lhe devia uma enorme fortuna (vv. 23-24).

É uma parábola sobre o reino, ou seja, sobre um rei que “resolveu acertar as contas”, símbolo também do juízo final (cf. 25,19). Ofensa e divida são dois símbolos que expressam a situação negativa do homem diante de Deus. Como na oração do Pai-nosso, adota-se aqui a imagem de “dívida” (pecado) que permite quantificar a explicação: “10.000 (dez mil) talentos” (traduzidos aqui apenas por “uma enorme fortuna”) são quase 174.000 kg (cento e setenta e quatro toneladas) de ouro! Uma quantia exorbitante, escolhida intencionalmente.

O relato não explica como o funcionário pôde endividar a tal ponto; podemos imaginar um governador de província corrupto, por ex. Quintílio Varo, o governador romano da Síria (entre 5 a.C. até 1 a.C.), dele se dizia: “Ele veio como homem pobre à uma província rica, e saiu como homem rico de uma província pobre”. De lá foi transferido para a fronteira norte do império e perdeu três legião inteiras numa batalha contra as tribos germânicas em 9 d.C.

Como o empregado não tivesse com que pagar, o patrão mandou que fosse vendido como escravo, junto com a mulher e os filhos e tudo o que possuía, para que pagasse a dívida. O empregado, porém, caiu aos pés do patrão, e, prostrado, suplicava: “Dá-me um prazo! e eu te pagarei tudo” (vv. 25-26).

Era comum vender-se (ou parte da família) como escravo para pagar uma dívida (Ex 22,2). O devedor não se recusa a pagar, só pede paciência (Eclo 29,1-13), mas pagar esta soma enorme dentro de um prazo razoável, não parece realista.

Diante disso, o patrão teve compaixão, soltou o empregado e perdoou-lhe a dívida (v. 27).

O patrão responde cheio de “compaixão” (talvez pense que o outro não poderá pagar) e perdoa. Já o perdoado, deveria imitar, em escala reduzida, o exemplo do rei, ou seja, a compaixão de Deus (cf. Ex 34,6). Mas não é assim que a história continua.

Ao sair dali, aquele empregado encontrou um dos seus companheiros que lhe devia apenas cem moedas. Ele o agarrou e começou a sufocá-lo, dizendo: “Paga o que me deves.” O companheiro, caindo aos seus pés, suplicava: “Dá-me um prazo! e eu te pagarei” (vv. 28-29).

Com a generosidade do perdão do patrão contrasta o comportamento mesquinho do empregado com seu colega. Cem moedas de prata (denários) é o salário de cem dias de trabalho (de um diarista), então equivale menos de 30 g (trinta gramas) de ouro. Pagar esta dívida num certo prazo é realista, sim. As mesmas palavras e o mesmo gesto do devedor (cf. v. 26), porém, não surtem o mesmo efeito do perdão do credor de antes (v. 27), ao contrário.

Mas o empregado não quis saber disso. Saiu e mandou jogá-lo na prisão, até que pagasse o que devia (v. 30).

Pagar a dívida através da prisão era prática comum (cf. 5,25s). Na Itália da Idade média, St.º Antônio conseguiu acabar com esta prática injusta em Pádua.

Vendo o que havia acontecido, os outros empregados ficaram muito tristes, procuraram o patrão e lhe contaram tudo. Então o patrão mandou chamá-lo e lhe disse: “Empregado perverso, eu te perdoei toda a tua dívida, porque tu me suplicaste. Não devias tu também, ter compaixão do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?” (vv. 31-33).

Enquanto na primeira parte da parábola surpreendeu a graça de Deus (o perdão generoso), na segunda parte destaca-se o julgamento. O empregado não agiu conforme a graça recebida, mas aplicou sem piedade o princípio da retribuição.

O patrão indignou-se e mandou entregar aquele empregado aos torturadores, até que pagasse toda a sua dívida (v. 34).

Agora se retribui a atitude cruel que o empregado demonstrou com seu colega. A prisão piorou ainda com a presença dos torturadores. Como em outras ocasiões de advertência, Mt destaca no final mais o lado negativo do juízo, a condenação e o castigo (cf. 3,7.10.12; 5,22.25s.29s; 7,19.23; 10,15.28; 11,22.24; 13,41s.49s; 18,8-9; 22,7.13; 23,33; 24-25), mas aqui fica claro, que Deus é imensamente misericordioso (cf. Ex 34,6-7), só quando o homem não demonstra misericórdia alguma, recebe o troco: será tratado como tratou o semelhante  (cf. 5,7; 6,12.14).

É assim que o meu Pai que está nos céus fará convosco, se cada um não perdoar de coração ao seu irmão” (v. 35).

O homem, destinatário da imensa misericórdia de Deus (Sl 86,5) deve aprender a exercer sua pequena misericórdia com o próximo devedor (cf. no Sl 112 a passagem do v. 4 ao v. 5; também a consequência que tira Sb 12,18s; há muitos textos que recomendam a piedade e a compaixão: Pr 14,21; 19,17; Sl 37,21.26 etc.).

Na comunidade de Jesus não existem limites para o perdão (setenta vezes sete). Ao entrar na comunidade (pelo batismo), cada pessoa (adulta) já recebeu do Pai um perdão imenso (dez mil talentos), sem falar que a vida já é um dom que ninguém pode pagar (Sl 49,8s). A vida na comunidade precisa, portanto, basear-se no amor e na misericórdia, compartilhando entre todos esse perdão que cada um recebeu.

Ao terminar estes discursos, Jesus deixou a Galileia e veio para o território da Judeia além do Jordão (19,1).

Ao indicar a mudança do local, Mt segue Mc 10,1. Jesus não voltará mais à Galileia antes da sua ressurreição (cf. 28,7.16). Já se encontra no caminho a Jerusalém (cf. 20,17) que passa por Judeia e pelo outro lado do Jordão (os judeus costumavam evitar o caminho mais curto pelo território da Samaria).

Com esta frase transitória (cf. 11,1; 13,53), Mt conclui mais um discurso, mas o tema da comunidade continua nas instruções do caps. 19-20 (sobre família, propriedade, trabalho, autoridade), seguindo o roteiro de Mc 10.

O site da CNBB comenta: Nós não temos como pagar a Deus para obtermos o perdão dos nossos pecados, de modo que merecemos a paga pelos mesmos que é a morte. Mas o amor misericordioso de Deus não permite que nenhum dos seus filhos e filhas seja entregue à morte, de modo que a verdadeira paga pelos nossos pecados foi a obediência de Jesus, amando-nos até o fim e, assim, apesar dos nossos pecados, temos a eterna aliança com ele. Desse modo, Deus nos dá o exemplo do verdadeiro perdão, nos ensinando que tudo devemos fazer para restaurar a unidade perdida por causa dos males que as pessoas comentem contra nós.

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