16 de Dezembro de 2020, Quarta-feira: João convocou dois de seus discípulos, e mandou-os perguntar ao Senhor: “És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?”

3ª Semana do Advento 

Leitura: Is 45,6b-8.18.21b-25

A leitura de hoje, pela seleção dos versículos, junta uma afirmação do monoteísmo (fé no único Deus) com a esperança da justiça e salvação que este mesmo Deus realizará. Por volta de 550-540 a.C., o profeta anônimo no exílio, chamado Segundo Isaías (Deutero-Isaías), já anunciava uma libertação, que pouco depois aconteceu: em 539 a.C. o rei da Pérsia (atual Irã), Ciro II entrou na Babilônia e deixou os judeus exilados voltarem para sua pátria e reconstruírem o Templo (Edito de Ciro em 538, cf. Esr 1; 6,3-5).

Para o Segundo Isaías, Ciro é instrumento de Javé Deus e em 45,1 recebe o título de “ungido” (o significado literal é “Messias, Cristo”; em Israel, os reis eram ungidos com este rito de consagração, cf. 1Sm 10,1; Sl2,2.7-9; 18,51). É a única vez que um rei estrangeiro recebe este título. A função deste texto é transmitir esperança aos exilados, fazendo-os acreditar que as campanhas militares de Ciro estavam sob a proteção de Javé, Criador, único Deus e Senhor da história. Ele é o autor tanto da paz (bem-estar, salvação) como do mal (castigo do exílio).

“Eu sou o Senhor, não há outro, eu formei a luz e criei as trevas, crio o bem-estar e as condições de mal-estar: sou o Senhor que faço todas estas coisas (vv. 6-7).

No final da vocação de Ciro (vv. 1-5 omitidos pela na leitura de hoje; cf. 41,1-5), o profeta expressou a esperança de que Ciro reconhecesse o Deus de Israel que o chamou e daria a vitória e riquezas, “a fim de que saibas que eu sou o Senhor (Yhwh, Javé), aquele que te chama pelo nome, o Deus de Israel” (v. 3). Parece que está conversão do rei estrangeiro ao Deus de Israel não aconteceu (num achado arqueológico, no “Cilindro de Ciro”, os sacerdotes babilônicos atribuem a vitória de Ciro ao deus da sua cidade, Bel-Marduk), mas Ciro era um rei tolerante que concedeu liberdade aos judeus exilados e promoveu a religião deste pequeno povo e patrocinou a reconstrução do Templo em Jerusalém.

A religião dos persas era monoteísta (o profeta persa Zaratustra atuava na mesma época), porém, com uma forte tendência dualista: ao deus único Ahura Mazda se opôs o poder do mal e da escuridão. O Segundo Isaías conhecia esta religião, ou talvez tenha identificado Ahura Mazda com Javé? Talvez nestes vv. 5-6 (como em 43,10-12; 44,6-8), queria deixar claro, que apesar da vitória estrangeira, Javé é o único Deus e os outros deuses são um nada.

Tudo que existe tem origem nele que não só criou a luz e a paz (shalom, nossa liturgia traduz por “bem-estar”), como também as trevas e até o mal (cf. Am 3,6). É uma frase provocativa também para os ouvidos dos judeus. Em Gn 1,2-5 (escrito também no exílio), as trevas não foram criadas por Deus, mas já existiam como força caótica que Deus dominou dando o nome, “noite”).

A criação é uma realidade polar e existe um só criador: as trevas na ordem natural, a desgraça (o mal) na ordem histórica. Bem Sirac desenvolve essa doutrina (Eclo 39,12-35).

Céus, deixai cair orvalho das alturas, e que as nuvens façam chover justiça; abra-se a terra e germine a salvação; brote igualmente a justiça: eu, o Senhor, a criei”(v. 8).

O Segundo Isaíasnão fala de uma transformação antropológica (como Jr 31,33 e Ez 11,19s; 36,26s “coração novo…”). Como Os 10,12 e Is 1,21, ele imagina a justiça como uma esfera (sacramental, escatológica) que desce de cima, “das alturas” do céu, e infunde nos homens a prática da justiça. Se Javé se manifestar como rei (52,7; Jesus anunciará o “reino de Deus”, cf. Mc 1,15p), ele doará uma nova capacidade a seus súditos para conduta ética.

Esta prece (latim: Rorate coeli) visa, em primeiro lugar, à libertação e à “justiça” que Ciro vai trazer brevemente, mas que são uma criação de Javé (cf. 41,2; 42,9; 43,19): a fecundação celeste e a fecundação terrestre, ambas conjugadas, produzirão a salvação, como nova criação. Aqui, “salvação” significa libertação dos exilados frente à opressão dos conquistadores.Trata-se de um fragmento que reconhece as bênçãos divinas como fonte de vida para o povo (cf. Sl 72,1-4).

Na sua tradução em latim (Vulgata), São Jerônimo substitui os termos abstratos em hebraico, “justiça” e “salvação”, por “justo” e “salvador”, referindo-se a uma pessoa (o messias).

“Brote (germine) igualmente a justiça”; o Primeiro Isaías já comparava o príncipe messiânico a um “rebento” que brotou da cepa de Davi (4,2; 6,13; 11,1; cf. Jr 23,5= 33,15). Em Zc 3,8, a palavra “germe (rebento)” torna-se um título messiânico.

Isto diz o Senhor que criou os céus, o próprio Deus que fez a terra, a conformou e consolidou; não a criou para ficar vazia, formou-a para ser habitada: “Sou eu o Senhor, e não há outro (v. 18).

O eixo semântico (que não aparece pela omissão dos vv. 16-17.19-20a) é fracasso/salvação. Se os “fabricantes de ídolos” (v. 16) e “os que lhe resistem” (lit. se inflamavam contra ele) são os mesmos, representam a dupla dimensão de idolatria e agressão. “Vazia” é a palavra tôhu de Gn 1,2; ela retorna no v. 19; é traduzida alhures por “nulidade”(41,29 etc.).

A Bíblia do Peregrino (p. 1791) comenta os vv. 18-19: Os enunciados positivos contrastam com os negativos. Deus criou um mundo bom, uma terra “habitada”, povoado, não “vazia”; quando fala, não busca o vazio ou o oculto, porque pronuncia o que é reto e não precisa esconder-se; e agora quer publicidade. São os ídolos (deuses falsos) que atuam às escuras (Sl 82,5). Tampouco os israelitas devem esconder-se ou distanciar-se para encontrar o Senhor, pois o acharão numa terra povoada e no curso da história. “Tohu” significa vazio e pode designar o ídolo (41,29). Se Deus não quer que a terra fique deserta, a terra de Israel terá de ser repovoada e o deserto transformado.

Quem vos fez ouvir os fatos passados e soube predizê-los desde então? Acaso não sou eu o Senhor? E não há deus além de mim. Não há um Deus justo, e que salve, a não ser eu. Povos de todos os confins da terra, voltai-vos para mim e sereis salvos, eu sou Deus e não há outro (vv. 21b-22).

A polêmica contra os deuses pagãos, já encontrada diversas vezes no Segundo Isaías (cf. 40,12-31), atinge aqui um universalismo que ainda não fora tão claramente afirmado (cf. desde já v. 14). “Chegai-vos todos juntos, sobreviventes das nações: não sabem nada, os que carregam alto seu ídolo de madeira …” (v. 20). Os que escaparão do fim do império babilônico e por enquanto ainda carregam seus ídolos, reconhecerão que Javé é o único Deus.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 939s) comenta: Apresentar outros povos que acreditam em Javé tem como objetivo convencer os exilados de que o Deus de Israel é único capaz de salvá-los. A pessoas que perderam a fé e assimilaram a religião do império, o texto enfatiza que Javé é único… O anúncio de Javé se dá no meio do povo, e sua fala expressa justiça e retidão (vv. 19.21.23.24.25).

Juro por mim mesmo: de minha boca sai o que é justo, a palavra que não volta atrás; todo joelho há de dobrar-se para mim, por mim há de jurar toda língua, dizendo: ‘Somente no Senhor residem justiça e força’ (vv. 23-24a).

Deus jura por si mesmo (cf, Gn 22,16) porque não há outro maior por quem poderia jurar (cf. Hb 6,13s). O v. 23 é citado em Rm 14,11; faz alusão a ele Fl 2,10. “Por mim há de jurar toda língua”; trata-se de um juramento de lealdade (cf. Is 19,18; 2Cr 15,14).

Comparecerão perante ele, envergonhados, todos os que lhe resistem; no Senhor será justificada e glorificada toda a descendência de Israel (vv. 24b-25).

A Bíblia do Peregrino comenta: Como o Senhor é o único salvador, assim é o único justo ou inocente. No esquema de julgamento bilateral, ele é inocente e os pagãos são réus convictos. Israel, que deveria aparecer como culpado, foi perdoado e restabelecido assim na justiça.

No fim deste desenvolvimento universalista, provavelmente a “descendência de Israel” seja a posteridade ampliada pelo afluxo de outras nações que virão adorar Javé (cf. 44,5; 54,3).

Obs.: Na história, o primeiro monoteísmo surgiu no Egito com o Faraó Amenófis IV (1374-1347 a.C.) que introduziu o culto exclusivo ao disco solar (Aton) como único deus. Ele mudou seu nome para Akhen-Aton, mudou a capital, mas depois da sua morte, os sacerdotes de Amon recuperaram o politeísmo (adorar muitos deuses), como se vê no nome do sucessor Tut-Anc-Amon. Para Abraão, Javé Deus é um como um Santo de casa que protege sua família. Moisés e os profetas antes do exílio proíbem a adoração de outros deuses fora de Javé (monolatria: Israel só deve adorar Javé), sem negar a existência de outros deuses para outros povos. Mas depois do desastre nacional (destruição do Templo e de Jerusalém), no exílio, Deutero-Isaías proclama um monoteísmo exclusivo de um único Deus que não é só o Deus de Israel, mas o único de todo universo, a quem todos os povos se converterão (vv. 22-24; cf. 2,2-4).

Evangelho: Lc 7,18b-23

Nos evangelhos de hoje e amanhã, aprofunda-se o diálogo entre João Batista e Jesus. Lc e Mt usaram a fonte Q (coleção de palavras que se perdeu na história, mas pode ser reconstruída a partir destes dois evangelistas, cf. o paralelo Mt 11,2-15).

João convocou dois de seus discípulos, e mandou-os perguntar ao Senhor: “És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?” Eles foram ter com Jesus, e disseram: “João Batista nos mandou a ti para perguntar: És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?“ (vv. 18b-20).

Profetas e escritos apocalípticos haviam alimentado entre os judeus a esperança num futuro libertador (Messias), particularmente como rei da dinastia davídica (Am 9,11; Jr 23,5; 33,17; Ez 34,54): “aquele que há de vir”, o “vindouro” (Zc 9,9; Ml 3,1). Esta fórmula é nos evangelhos uma designação do Messias (Mc 1,7p; 11,9p; Mt 23,29;Lc 13,35; Jo 6,14; 11,27; cf. Sl 118,26).

No trecho paralelo, Mt 11,2, João Batista estava preso (na fonte Q não estava?), Lc não menciona este fato aqui, mas os três evangelhos sinóticos afirmam que João Batista foi preso por Herodes (3,20p) já antes de Jesus iniciar sua pregação. Agora João se dá conta de que Jesus é diferente do Messias juiz e purificador de Israel que tanto ele como seus contemporâneos esperavam. As informações correspondem à expectativa messiânica do Antigo Testamento (AT)? O Batista descrevera o messias empunhando o machado para cortar, a pá para peneirar, manejando o fogo para queimar (3,16s; cf. Mt 3,10-12). Jesus apresenta-se assim? É preciso esperar outro Messias?

A pergunta de João é exata e transcendental: trata-se de identificar a missão de Jesus. A pergunta beneficia seus discípulos e também a si próprio, para dissipar suas dúvidas e perplexidades. Precisa que sua missão seja confirmada e que se define o destino de seus discípulos. A sua mensagem a Jesus pode ser menos uma pergunta do que um convite a passar à ação.

João os envia “ao Senhor”, como se exprime o narrador. Muitos manuscritos têm aqui “Jesus”. Mas a expressão “o Senhor” é bem atestada e é característica de Lc. O terceiro evangelista dá a Jesus este título cerco de vinte vezes nas seções narrativas de seu relato, sem falar dos vocativos “Senhor”, cujo sentido é mais fraco. Dessa maneira, ele assinala a realeza misteriosa de Jesus. Mt e Mc só chamam a Jesus de “o Senhor” apenas uma vez cada um (Mt 21,3; Mc 11,3).

Nessa mesma hora, Jesus curou de doenças, enfermidades e espíritos malignos a muitas pessoas, e fez muitos cegos recuperarem a vista (v. 21).

Este versículo está ausente no paralelo de Mt 11,3 (Mt já narrou milagres desse gênero antes), aqui é introduzido por Lc para fundar a afirmação do versículo seguinte.

Então, Jesus lhes respondeu: “Ide contar a João o que vistes e ouvistes: os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, e a Boa Nova é anunciada aos pobres (v. 22).

Os dois discípulos serão as duas testemunhas de tudo que Jesus realizou na presença da multidão (pela lei, são necessárias pelo menos duas testemunhas: Dt 19,15). As ações de Jesus, com alusões bíblicas, respondem à pergunta de João e de quantos a repetirem sinceramente. Assim, Jesus mostra a João que as suas obras inauguram certamente a era messiânica, mas sob a forma de ações benéfica e de salvação, não de violência e de castigo. Especialmente Lc mostra Jesus misericordioso.

Jesus responde apontando para uma imagem alternativa da Escritura: não o juiz escatológico aplicando a ira de Deus (cf. 3,7-9.17), mas os milagres e curas que Isaias anunciou como sinais do tempo messiânico: Is 26,19 (mortos); 29,18s e 42,18 (surdos, cegos) e 35,5-6 (cegos, surdos, coxos, pobres); 61,1 (citado por Lc 4,18s: Boa Nova para os pobres; cf. 1,19: o anjo Gabriel anunciou a Zacarias “uma Boa Nova/evangelho”). A cura de leprosos e a ressurreição dos mortos encontram-se no tempo de Elias e Eliseu (1Rs 17,17-24; 2Rs 4,18-37; 5-27).

Jesus os aplica as profecias a si, como na sinagoga de Nazaré (Lc 4,17-20, citando Is 61,1), identificando-se com o Messias vindouro em ação e ao mesmo tempo descreve o Messias autêntico. Não veio para dar a Israel uma independência nacional e domínio sobre outros povos, segundo esperanças nacionalistas, mas veio para curar enfermos, libertar possessos e proclamar a boa notícia aos pobres (cf. 6,20). São esses os sinais da sua missão de Salvador.

“A Boa Nova (lit. evangelho) é anunciada aos pobres” (cf. Mt 4,23; Lc 1,19). Lc 4,18 já mostrou na pregação aos pobres o essencial da missão de Jesus, que cumpre o oráculo de Is 61,1.

E feliz é aquele que não se escandaliza por causa de mim!”(v. 23).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1262) comenta: É recordando os resultados de sua atividade que Jesus responde a João. Os relatos anteriores não mostraram outra coisa que a compaixão do Messias diante das dores dos pobres e abandonados, e sua intervenção pela libertação deles. O v. 23 alerta para que isso não seja motivo de escândalo, supondo que havia compreensões a respeito do Messias que iam em outra direção, quem sabe triunfalista, quem sabe militar.

Jesus sabe que é difícil para os seus contemporâneos, e mesmo para João reconhecê-lo como Messias. A presente bem-aventurança é um convite à fé, a partir dos sinais que ele oferece. Quem não alimentar ilusões nacionalistas e triunfalistas não se frustrará (escandaliza, v. 23) com ele. Não ficar frustrado (escandalizado) é expressão corrente na espiritualidade bíblica (cf. Sl 25,2.20; 31,18; 71,1 etc.).

O site da CNBB comenta: O Antigo Testamento está no seu término e o Novo Testamento está no seu início. O Antigo Testamento está representado em João Batista, o seu último profeta, o maior entre os nascidos de mulher, e o Novo Testamento está representado em Jesus Cristo, o Filho de Deus que se fez homem e veio a este mundo. O sinal da mudança são os milagres que estão acontecendo como cumprimento de todas as profecias feitas no Antigo Testamento, deixando de serem promessas para tornarem-se realidade. Estamos nos tempos messiânicos, Deus está cumprindo todas as suas promessas em relação à sua realização.

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