16 de Fevereiro de 2020, Domingo: Não penseis que vim abolir a lei e os profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhe pleno cumprimento (v. 17).

6º Domingo do Tempo Comum 

 1ª Leitura: Eclo 15,16-21 (grego vv. 15-20)

A 1ª leitura foi escolhida por referir-se ao cumprimento dos mandamentos da Lei que é recomendado também no evangelho de hoje.

O livro de Eclesiástico é um livro de sabedoria, escrito por Jesus Ben Sirac, um sábio mestre no séc. II a.C. na Palestina, e depois, em 132 a.C., traduzido para o grego por seu neto no Egito. O autor identifica a Sabedoria com a Palavra de Deus e a Lei de Moisés (cf. cap. 24). O ser humano “observando a Lei, alcançará sabedoria” (15,1).

Depois de um hino à sabedoria (14,20-15,10), o autor trata da origem do pecado: “Não digas: ‘Meu pecado vem de Deus … ele me extraviou’, porque … o Senhor detesta a perversidade e a blasfêmia” (vv. 11.13). Voltando às origens (cf. Gn 2-3), o autor não menciona a tentação da serpente de Gn 3, mas o livre arbítrio do ser humano: “O Senhor criou o homem no princípio e o entregou em poder do seu próprio arbítrio” (v. 14). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1741) comenta: Na literatura rabínica, o termo tomará o sentido claramente pejorativo de “instinto, inclinação má”. O Talmud (Qidd. 30b) diz: “Criei o instinto mal e criei a Lei para curá-lo. Se vos entregardes ao estudo da Lei, não caireis em seu poder”. (Cf. também Pirqê Abôt IV,2). – Da carta de Tiago 1,13-17 a Erasmo (Tratado do livre-arbítrio), este v. serviu para muitos desenvolvimentos sobre a liberdade humana.

Se quiseres observar os mandamentos, eles te guardarão; se confias em Deus, tu também viverás (v. 16).

A Bíblia do Peregrino (p. 1605) comenta: Pela liberdade, o homem chega ao autocontrole e se realiza, ficando senhor do seu destino. Mas não é o senhor absoluto. Ao poder interno do arbítrio se acrescentam a luz e a força da lei, vontade de Deus feita palavra para reger e ordenar o homem livre. Cumprir o mandamento depende do querer (Sl 40,9).

O texto hebraico diz: “Se quiseres, observarás o mandamento e a inteligência para fazer sua vontade”, acrescentando uma glosa inspirada em Hab 2,4: “Se creres nele, também tu viverás”, citado por Paulo em Rm 1,17: “O justo viverá por sua fé”.

Diante de ti, Ele colocou o fogo e a água; para o que quiseres, tu podes estender a mão (v. 17).

A Bíblia do Peregrino (p. 1606) comenta: A liberdade se exercita escolhendo. Fogo e água aqui são criaturas elementares, opostas em sua função, não no seu valor de bem e mal.  Ambas são boas, e nelas o homem experimenta sua capacidade de escolher; ao mesmo tempo, as duas se excluem, e põem homem na necessidade de escolher.

“Tu podes estender a mão”, cf. o fruto proibido no paraíso. Mas em toda a exposição o autor prescinde da árvore e da serpente; escreve no gênero sapiencial, não mitológico. A Nova Bíblia Pastoral (p. 867) comenta: Divagação filosófica que concilia a liberdade humana com a onipotência divina. Deus não é responsável pelo mal moral (cf. Gn 3,12-13; Dt 11,26-28; 30,11-20; Tg 1,13-15).

Diante do homem estão a vida e a morte, o bem e o mal; ele receberá aquilo que preferir (v. 18).

Na lei deuteronômio está esta oposição radical, onde se põem em lado a lado bem e mal, maldição e benção (Dt 30,15.19). É o tema dos dois caminhos, o do pecado e o da sabedoria: (cf. Dt 30,15-20; Jr 21,8; Pr 2,8s.12-20; Didaqué 1,1-2; 5,1).

A sabedoria do Senhor é imensa, ele é forte e poderoso e tudo vê continuamente. Os olhos do Senhor estão voltados para os que o temem. Ele conhece todas as obras do homem (vv. 19-20).

“Os olhos do Senhor estão voltados para os que o temem”; hebraico: “Os olhos de Deus veem suas criaturas”. A Bíblia do Peregrino (p. 1606) comenta: Como no paraíso, mas sem transposição narrativa, aparece Deus, que tudo vê e conhece, mesmo a intimidade do homem, donde brota a decisão. Aqui temos outra dimensão da “sabedoria divina”, relacionada com a conduta ética do homem.

Não mandou a ninguém agir como ímpio e a ninguém deu licença de pecar (v. 21).

O trecho conclui resumindo o tema da teodiceia e do castigo: a ordem de Deus não tem por objeto a maldade. Deus não manda o homem pecar; e se peca, não o deixa impune.

Após a primeira parte deste v., o hebraico diz: “e ele não fortaleceu os mentirosos. Não tem piedade para faz coisas vãs, nem para quem revela um segredo”. A Bíblia do Peregrino (p. 1606) comenta: ”Mentirosos” deve ter, pelo contexto, um sentido especial: mentira radical do homem, que acusa Deus para desculpar-se, negando o próprio pecado. Grande mentira, que confirma o pecado cometido; como o de Caim em Gn 4. O hebraico acrescenta uma glosa impertinente, não retomada nas versões antigas: “Não se compadece do malfeitor nem daquele que revela segredos”.

2ª Leitura: 1Cor 2,6-10

Continuamos nas considerações de Paulo sobre a sabedoria divina que se distingue da sabedoria humana. A Bíblia do Peregrino (p. 2740) comenta: Paulo não baseou seu ministério em valores da cultura grega: filosofia como atividade simplesmente humana (cf. Jó 28), retórica como recurso para persuadir. Seu tema não é descoberta humana, mas segredo revelado, e se condensa numa pessoa, Jesus. Sua força persuasiva vem do Espírito.

Entre os perfeitos nós falamos de sabedoria, não da sabedoria deste mundo nem da sabedoria dos poderosos deste mundo, que, afinal, estão votados à destruição. Falamos, sim, da misteriosa sabedoria de Deus, sabedoria escondida, que, desde a eternidade, Deus destinou para nossa glória. Nenhum dos poderosos deste mundo conheceu essa sabedoria. Pois, se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória (vv. 6-8).

“Entre os perfeitos nós falamos de sabedoria”; os “perfeitos” não são um grupo aristocrático ou esotérico de iniciados, mas os que atingiram a plena maturidade, adultos da vida e do pensamento cristãos. Eles se identificam com os “espirituais” que Paulo opõe às “criancinhas em Cristo” (3,1; cf. também 14,20; Fl 3,15; Cl 4,12; Hb 5,13s; Mt 5,17.48; 19,21). Parece qualificativo irônico dos coríntios; deveriam sê-lo e não o são.

A “sabedoria dos poderosos deste mundo”; os poderosos (lit. príncipes) deste mundo podem ser as potências sobrenaturais más (demônios) e também os que são seus instrumentos: as autoridades profanas trancadas em sua oposição ao Cristo e ao Evangelho; a ignorância dos últimos os desculpa em parte.

A “misteriosa sabedoria de Deus, sabedoria escondida” (lit.: em mistério, escondida). Não se trata de uma sabedoria enigmática, mas de uma sabedoria que se exprime “em mistério”, no sentido paulino do termo, isto é, o segredo do desígnio de salvação agora realizado em Cristo (cf. Rm 16,25-27).

A Bíblia do Peregrino (p. 2741) comenta: Também Paulo tem sua sabedoria, e a apresenta diante das outras: é o mistério de Deus antes mencionado, um projeto antiquíssimo que hoje se realiza e se manifesta, e cuja finalidade é comunicar aos homens a gloria de Deus.

O título “Senhor da glória” é título divino, tomado de Sl 24,8 que o atribui à entrada triunfal de Yhwh (Javé, traduzido por Senhor) Rei no templo. A glória é o esplendor do poder de Javé (Ex 24,16 etc.), atributo divino incomunicável. Paulo aplica este título a Jesus Cristo e o relaciona ainda com a crucifixão, equiparando-o implicitamente a Javé (cf. Fl 2,5-11)!

Mas, como está escrito, ‘o que Deus preparou para os que o amam é algo que os olhos jamais viram nem os ouvidos ouviram nem coração algum jamais pressentiu’ (v. 9).

Segundo um processo atestado no judaísmo contemporâneo por compilações de citações (Testimonia), Paulo cita livremente, combinando dois textos, Is 64,3 e Jr 3,16 (ou do apócrifo Apocalipse de Elias); Isaias menciona “os que esperam”, Paulo diz “os que amam”.

A nós Deus revelou esse mistério através do Espírito. Pois o Espírito esquadrinha tudo, mesmo as profundezas de Deus (v. 10).

Na mentalidade semítica, o “profundo” é, o incompreensível ou insondável (cf. o “espaço profundo” para a imensidão do universo).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2208) comenta: A ideia geral dos vv. 10-16 é a seguinte: esta sabedoria tem sua fonte no Espirito de Deus (vv. 10-11). Ela só pode ser comunicada por aquele que recebeu este Espírito (vv. 12-13) e somente a homens que também receberam este Espirito, que lhes permite compreender esta sabedoria; sem o que ela é loucura para eles (vv. 14-16).

Evangelho: Mt 5,17-37 (ou versão breve: vv. 20-22.27-28.33-34.37)

Continuamos no sermão da montanha ouvindo hoje a nova interpretação da Lei de Moisés por Jesus. O Evangelho de Mt que se dirige a leitores judeu-cristãos que vivem ainda no meio de outros judeus, mas fora de Israel, talvez em Antioquia na Síria ou em Alexandria no Egito. O evangelho de hoje opta pelo “melhor cumprimento”, não pela ruptura da como Saulo-Paulo que escreveu para pagãos não querendo impor lhes a lei judaica. O autor do evangelho de Mt caracteriza sua próprio mensagem como de um escriba que sabe, “semelhante a um pai de família tirar do seu tesouro coisas velhas e novas” (13,52).

Em Mt, Jesus subiu à montanha (aludindo a Moisés no monte Sinai), e depois de propor “felicidades” (bem-aventuranças, vv. 1-12) em lugar de “mandamentos”, Jesus expõe sua posição diante da lei tradicional, a Torá (a Lei de Moisés que contém os primeiros cinco livros da Bíblia, chamados também de Pentateuco); primeiro em termos genéricos (vv. 17-20), incluindo toda escritura na fórmula consagrada “a Lei e os profetas”, depois numa série de antíteses (vv. 21-48).

Não penseis que vim abolir a lei e os profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhe pleno cumprimento (v. 17).

A expressão “a lei e os profetas” (cf. 7,12; 22,40; cf. Lc 24,27; Mc 9,4p) designa esta parte da Bíblia que chamamos de Antigo Testamento e que era a única Escritura sagrada dos judeus. A Bíblia hebraica se divide em três partes (T-N-Q), Tora (a “lei” de Moises ou Pentateuco, os primeiros cinco livros: Gn, Ex, Lv, Nm, Dt ), Nebiim (“profetas”: 1-2Sm; 1-2Rs; Is, Jr; Ez e os 12 profetas menores) e Quetubim (“escritos” sapiências: Sl, Jó, Pr…; cf. Lc 24,44).

Contra conclusões precipitadas (talvez derivadas da teologia de Paulo que substituiu a lei pela fé, a circuncisão pelo batismo, etc.), Mt quer apresentar Jesus como mestre que aperfeiçoa a lei em vez de aboli-la.

Em verdade, eu vos digo: antes que o céu e a terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo se cumpra (v. 18)

Esta frase, Mt já encontrou numa fonte comum (chamada Q) com Lc (cf. Lc 16,17). “Nem uma só letra ou vírgula” lit.: “nem um iota nem o mínimo traço”. O iota é a letra menor do alfabeto hebraico; os traços talvez designem a ponta ou a barra que distinguem as letras (ex. entre G e C), num tempo posterior, traços e pontos indicavam os vocais (cf. o ponto do i), já que este alfabeto só contém consoantes. O sentido de v. 18 é que nenhum pormenor da lei deve ser menosprezado. A lei se cumpre quando seus múltiplos preceitos são postos em prática. As profecias, como predições, se cumprem quando o anunciado acontece. Mt não se cansa em salientar as profecias cumpridas durante a vida de Jesus (cf. 1,22; 2,7.15.23; 4,14; 8,17; 13,35; 21,4; 27,9).

Portanto, quem desobedecer a um só desses mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros a fazer o mesmo, será considerado o menor no Reino do Céu. Por outro lado, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino do Céu (v. 19).

Não se deve pensar, porém, que Jesus ensina cumprir a lei como ensinam os fariseus. Cumprir a lei fielmente não significa subdividi-la em observâncias minuciosas, criando uma burocracia escravizante. Jesus revela o sentido mais profundo da lei, a vontade de Deus, buscar nela inspiração para a justiça e a misericórdia, a fim de que o homem tenha vida e relações mais fraternas. Jesus resume toda lei na regra de ouro (7,12p) e no mandamento do amor a Deus e ao próximo (22,34-40; cf. Jo 13,34: Rm 13,8-10: Gl 5,14; Cl 3,14).

A maneira como Jesus dá pleno cumprimento as leis do AT é diferente do legalismo dos hipócritas, fariseus e mestres da lei que “só falam e não praticam” (23,3). Para Mt, é importante a ética, ou seja, praticar a vontade de Deus (cf. 7,21). A justiça dos cristãos que deve superar a dos doutores da lei e dos fariseus (cf. v. 20), não consiste em cumprir ao pé da letra os mínimos detalhes da lei, mas na criatividade do coração que ama: “Tudo o que você desejam que as outras façam a vocês, façam vocês também a eles. Pois nisso consiste a Lei e os Profetas” (Regra de Ouro em 7,12). A interpretação de Jesus (seu “jugo leve”, cf. 11,30) a respeito da Lei é o mandamento maior do amor: “Ame o Senhor teu Deus com todo o teu coração, … ame seu próximo como a si mesmo. Toda lei e os profetas dependem desses dois mandamentos” (22,34-40; Dt 6,5; Lv 19,18). Com esta interpretação, o evangelista Mateus ainda se encontra com os pensamentos do apóstolo Paulo que costumava polemizar contra a lei judaica. “Cristo é o fim da lei” (Rm 10,4) ou “finalidade da lei”; a palavra grega pode exprimir ao mesmo tempo a ideia de meta, de termo e de realização.

Para o mestre da lei, Saulo de Tarso, a Lei era a salvação; mas depois da sua conversão, Saulo-Paulo reconheceu, que “ninguém se tornará justo diante de Deus através da observância da Lei, pois a função da Lei é da consciência do pecado. Agora, porém, independentemente da Lei, manifestou-se a justiça de Deus, testemunhada pela Lei e pelos Profetas. É a justiça de Deus que se realiza através da fé em Jesus Cristo, para todos aqueles que acreditam” (Rm 3,20-22). Paulo sabe que “a Lei é santa e o mandamento é santo, justo e bom” (Rm 7,12), mas a Lei não salva, sim conscientiza e condena. O Tribunal Supremo dos Judeus (Sinédrio) condenou Jesus por sua interpretação diferente da Lei. Não só a Lei, antes é a promessa, a graça e a fé que importam. “Não torno inútil a graça de Deus porque se a justiça vem através da Lei, então Cristo morreu em vão” (Gl 2,21). “Sabemos, entretanto, que o homem não se torna justo pelas obras da lei, mas somente pela fé em Jesus Cristo” (Gn 2,16). “A lei do Espírito que dá a vida em Jesus Cristo, nos libertou da lei do pecado e da morte” (Rm 8,2). Paulo escreveu contra aqueles que queriam obrigar pela lei a circuncisão dos cristãos que vieram do paganismo, enquanto para Paulo basta batizá-los como sinal da fé em Jesus Cristo. Por isso ele opôs a Lei (a circuncisão, a carne, as obras) à fé (a graça, a promessa, o espírito, a fé). Mas ele reconhece também que a liberdade da lei (da circuncisão) não dispensa do amor ao próximo: “Pois toda Lei encontra sua plenitude num só mandamento: “Ame seu próximo como a se mesmo”… Carreguem os fardos uns dos outros, assim vocês estarão cumprindo a lei de Cristo” (Gl 5,14; 6,2).

A contradição de Paulo (só a fé salva, não as obras da lei) de um lado, e de Mateus (não abolir, mas cumprir a lei) e Tiago (a fé sem obra é morta; cf. Tg 3,14-26) no outro lado, explica-se pelo público diferente. Paulo escreveu para os pagãos e queria poupá-los das exigências da lei cultual, mas não da ética (amor ao próximo). Tg e Mt escreveram para judeu-cristãos que viviam dentro da lei judaica e valorizam a sabedoria da Lei de Moises e dos Profetas, mas agora são convidados a interpretá-los conforme a lei máxima do amor a Deus e ao próximo.

Sem normas, regras e leis uma sociedade não pode existir, também a Igreja tem seu Código Canônico com 1752 leis (cânones). São Filipe Neri, porém, disse: “Para ser obedecido, precisa de poucas normas. Eu escolhi a caridade.”

No site da CNBB comenta: Todos nós estamos de acordo que devemos obedecer a Deus, mas não estamos muito de acordo se perguntarmos por que devemos obedecer a Deus. Isto porque existem duas formas de obediência. A primeira é a obediência de quem reconhece o poder de quem manda e se submete a este poder por causa das vantagens da obediência ou das consequências da desobediência. É aquele que diz que manda quem pode e obedece quem tem juízo. A segunda é de quem reconhece os valores que motivam a autoridade e assume esses valores como próprios, vendo na obediência a grande forma de concretização desses valores. Jesus não veio mudar a lei, mas mostrar as suas motivações, os seus valores, a fim de que a sua observância não seja um jugo, mas uma forma de realização pessoal.

Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus (v. 20).

A lei não deve ser observada simplesmente por ser lei, mas por aquilo que ela realiza de justiça a fim de que o ser humano tenha vida e relações mais fraternas. Esta “justiça maior” não será um preceito exterior, será a prática do amor e da misericórdia, como Jesus resume toda lei na regra de ouro e no mandamento do amor a Deus e ao próximo (7,12; 22,34-40p; cf. Jo 13,34; Rm 13,8-10; Gl 5,14; Cl 3,14). O amor (até amar os inimigos, v. 44) e a misericórdia são a perfeição na Lei (cf. v. 48) e a justiça maior. A justiça maior não é mais leis no Código Penal, mas é a ética, agir conforme a consciência, embora não seja determinado tudo pela lei (1Cor 6,12: “Tudo me é permitido, mas nem tudo convém”), fazer o correto, agir por amor, não apenas por medo do castigo (1Jo 4,17s).

Para Paulo, a justiça não vem da lei judaica, mas da fé: “Não tendo mais a justiça minha aquela que vem da lei, mas aquela quem vem de Deus e se baseia na fé” (Fl 3,9). Para Mt (e Tg), Jesus não dispensa a lei, mas a reinterpreta, aperfeiçoa e cumpre plenamente no amor.

Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: “Não matarás! Quem matar será condenado pelo tribunal”. Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo; quem disser ao seu irmão: “patife!” será condenado pelo tribunal; quem chamar o irmão de “tolo” será condenado ao fogo do inferno (vv. 21-22).

Em 5,21-48, Mt apresenta seis exemplos em forma de antítese, para mostrar como é que uma lei deve ser entendida. Nas sinagogas se transmitia o ensino oralmente (“vós ouvistes”) ao povo simples. Na forma repetida da antítese “Vós ouvistes que foi dito aos antigos… Eu, porém, vos digo” (vv. 21-25.27-28.31-34.38-39.43-44), Jesus se apresenta como autoridade soberana, maior que Moisés. A primeira antítese é sobre o 5º mandamento, a segunda e terceira são sobre o 6º e 9º mandamento.

A primeira antítese compreende duas partes: sobre o homicídio e sobre a reconciliação. O mandamento de “não matar” (lit. “não assassinar”; Ex 20,13; Dt 5,17; Lv 24,17) radicaliza-se na atitude interior (“cólera”, cf. Lv 19,17-18; Tg 1,19-20; Ef 4,26) de onde brota o homicídio (Gn 4,1-7; 37,4.8) e se estende a ofensas menores, ex. palavrões.

“Patife” (imbecil, cabeça vazia, inútil) e “tolo” (idiota, louco; insensato pode significar “ímpio” para judeus) são insultos graves que negam ao outro a capacidade de compreender: expressões de desprezo, rancor, inveja podem conduzir a ações graves.

“Condenado pelo tribunal” (vv. 21-22) faz alusão aos tribunais disseminados pelo país, em contraposição ao grande sinédrio (conselho) que tinha sua sede em Jerusalém. O tribunal local ou regional será a primeira instância, depois o conselho nacional, ao final o próprio Deus e o castigo será “o fogo do inferno” (v. 22; cf. 3,12), localizado na Geena (cf. Is 66,15.16.24, lugar associado no AT a sacrifícios humanos de crianças (cf. Jr 7,31).

Parece-nos um absurdo ser condenado ao inferno, só por ofender um irmão com uma única palavra. Mas Jesus quer levar ao absurdo a mania legalista dos fariseus de julgar (cf. 7,1-5). Quer chamar atenção sobre o fato de que o pecado começa já no próprio coração, e não só quando cometer um homicídio (cf. nosso ato penitencial “Confesso a Deus todo-poderoso que pequei por pensamentos e palavras, atos e omissões, …”). Sentimentos involuntários, porém, não são pecados; mas depende como lidamos com eles: devemos transformar os negativos em positivos, vencer o mal pelo bem (amar até os inimigos, cf. 5,43-48).

Portanto, quando tu estiveres levando a tua oferta para o altar, e ali te lembrares que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta ali diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão. Só então vai apresentar a tua oferta (vv. 23-24).

O preceito negativo “não matar” estende-se a exigência positiva da reconciliação (vv. 23-26; Lc 12,58-59; cf. Mc 11,25), com ênfase em relação com o culto. É por isso que damos um “sinal de paz e reconciliação” e de “comunhão fraterna” na missa, antes de aproximarmo-nos do altar para receber a sagrada Hóstia e ter comunhão com Cristo.

Procura reconciliar-te com teu adversário, enquanto caminha contigo para o tribunal. Senão o adversário te entregará ao juiz, o juiz te entregará ao oficial de justiça, e tu serás jogado na prisão. Em verdade eu te digo: dali não sairás, enquanto não pagares o último centavo (vv. 25-26).

Mesmo ofendido e inocente, o discípulo de Jesus deve ter a coragem de dar o primeiro passo para reconciliação. Caso se sinta culpado, procure urgentemente a reconciliar-se, porque sobre a sua culpa pesa um julgamento. O ensinamento de Jesus poderia citar textos afins do AT (cf. Is 1,10-20; 58,1-12; Jr 7; Eclo 34,18-22).

O site da CNBB resume: Todas as pessoas costumam falar em justiça, mas para a maioria delas o fundamento dessa justiça são princípios e valores humanos, principalmente o que está escrito nas leis. Para nós cristãos, esse critério não é suficiente para entendermos verdadeiramente o que é justiça. Não é suficiente em primeiro lugar porque nem tudo o que é legal, é justo ou moral, como por exemplo a legalização do divórcio, do aborto ou da eutanásia. Também devemos levar em consideração que todas as pessoas, embora sejam seres naturais, possuem um dom de Deus que faz delas superiores à natureza, participantes da vida divina, e como Deus é amor, o amor é, para quem crê, o único e verdadeiro critério da justiça.

Ouvistes o que foi dito: “Não cometerás adultério”. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração (vv. 27-28).

Na segunda antítese do sermão da montanha, Jesus se manifesta sobre o adultério. De novo se apresenta como autoridade soberana, maior que Moisés, e repete: “Vós ouvistes que foi dito aos antigos… Eu, porém, vos digo” (vv. 21-25.27-28.31-34.38-39.43-44). Depois de radicalizar o quinto mandamento – “não matar” – para não ter mais raiva nem xingar com nome feio (vv. 21-26; cf. evangelho de ontem), agora o mesmo com o sexto. A proibição de decálogo (Ex 20,14; Dt 5,18), sob pena de morte (Lv 20,10), radicaliza-se até a atitude interior, o desejo consentido que induz ao ato (cf. Pr 6,25.27; Jó 31,1; Eclo 9,5): “Todo aquele que olha para uma mulher e deseja possuí-la, já cometeu adultério com ela no coração” (v. 28).

Se o teu olho direito é para ti ocasião de pecado, arranca-o e joga-o para longe de ti! De fato, é melhor perder um de teus membros, do que todo o teu corpo ser jogado no inferno. Se a tua mão direita é para ti ocasião de pecado, corta-a e joga-a para longe de ti! De fato, é melhor perder um dos teus membros, do que todo o teu corpo ir para o inferno (vv. 29-30).

Que o desejo já pode ser pecado não é novidade, porque já o nono mandamento (“não cobiçar a mulher do próximo”) alerta para um possível delito contra o sexto mandamento (Dt 5,21; Ex 20,17). Mas Jesus é mais radical ainda alerta sobre os sentidos, pois pela visão entre o desejo (cf. Davi em 2Sm 11,2 e o episódio de Suzana em Dn 14), ao passo que a mão é o membro do tato e da ação. Mt repete os mesmos vv. 29-30 em 18,8-9 (no contexto do escândalo contra os pequeninos que copiou de Mc 9,43-48). O adultério começa com o olhar de desejo, e o mal deve ser cortado pela raiz.

Agir desta maneira contra a própria natureza parece ser automutilação, mas Jesus exige isso em vista à vida eterna. A expressão é hiperbólica, exagero de poesia oriental, ou devemos levá-la ao pé da letra? Orígenes, um teólogo do século III, se castrou a partir dessas palavras, mas depois descobriu que ainda estava com desejos sexuais na cabeça. E se você tem maus pensamentos, o que deve então cortar? A cabeça? Jesus alerta do perigo da cobiça, ou seja, de sentimentos e pensamentos que podem levar ao pecado. Não se deve considerar como pecado apenas o ato cometido (adultério, assassinato, …), mas estar atento ao seu começo no pensamento na cabeça ou ao sentimento nos membros do corpo. Devemos cortar os maus pensamentos, a cobiça, não a cabeça. Depois de reconhecer seu erro, Orígenes desenvolveu a interpretação alegórica da Bíblia (simbólica, nem sempre ao pé da letra).

Mesmo sem praticar essas palavras ao pé da letra, não se deve desconsiderá-las, pois Jesus fala seriamente do inferno, castigo escatológico. Apesar da bondade divina, o ser humano pode perder seu destino. Quem não reconhece que seu futuro depende das próprias decisões, subestima o valor da sua própria vida. Nosso pensar, agir e omitir tem consequências positivas ou negativas para nossa vida e para nosso futuro.

Foi dito também: “Quem se divorciar de sua mulher, dê-lhe uma certidão de divórcio”. Eu, porém, vos digo: Todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por motivo de união irregular, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a mulher divorciada comete adultério (vv. 31-32).

Jesus radicaliza até à interioridade a fidelidade matrimonial, apelando ao amor verdadeiro e leal. Mt inclui aqui a terceira antítese, uma norma que se entende na Igreja Católica não só como ética do coração, mas como lei canônica.

A tradução do nosso texto “a não ser por motivo de união irregular” não corresponde ao original grego. A palavra grega porneia não significa “união ilegítima” entre parentes (cf. Lv 18; At 15,20.29), mas um mau comportamento sexual que pode ser muitas coisas (a Bíblia Pastoral traduz: “fornicação”), mas em v. 32 que fala de mulheres casadas designa o ato sexual fora do casamento, então adultério.

Mt copiou esta norma já de Mc no contexto da questão do divórcio (19,9; Mc 10,11; cf. Lc 16,18; 1Cor 7,10-11) e a inclui aqui como exemplo da radicalização da lei por Jesus. Jesus revela a vontade de Deus (19,6: “o que Deus uniu, o homem não separe”) e restabelece o sentido original da lei porque Moisés só permitiu o divórcio “por causa da dureza dos vossos corações” (19,8).

Mas existe uma diferença em relação às antíteses anteriores (vv. 21-30): A raiva ou a cobiça dos olhos não são matérias, que se pode julgar num tribunal, mas a proibição de divórcio é: Quando alguém se casa outra vez sem ser viúvo, o divórcio se torna definitiva. Por isso estas palavras não são um mero apelo ao nosso coração, à nossa consciência, ao nosso amor. Já as primeiras comunidades cristãs tiraram conclusões jurídicas. Jesus não fundou uma igreja já pronta com estatutos do direito canônico, mas aqui temos uma sentença de direito em potencial. Mc e Lc não conhecem exceções; com seu “privilégio”, Paulo não aboliu a proibição de Jesus, mas toma uma decisão num dilema entre mundo (um cônjuge não cristão) e comunidade cristã (cf. 1Cor 7,12-17). Também Mt não questiona a regra de Jesus, só demonstra com sua cláusula – “a não ser por causa de fornicação” – uma exceção dentro desta regra.

Pode haver perdão e reconciliação depois de um adultério (cf. Jo 8,10-11; 1Cor 7,10)? Muitos judeus pensavam que em caso de adultério, o casamento já estava destruído; “fornicação” era uma abominação que tornou a terra impura (cf. Lv 18,25.28; Dt 24,4: Os 4,2-3; Jr 3,1-3,9) e em caso de adultério precisava-se divorciar. Para Mt, a questão fica aberta (cf. 18,15-17.21-22).

Já nos evangelhos, a proibição de Dt 24,4 de não se casar outra vez com sua própria mulher divorciada estendeu-se a todas as mulheres divorciadas. “Quem se casa com uma mulher divorciada, comete adultério” (v. 32; 19,9; Mc 10,11; Lc 16,18). A consequência desastrosa para tais mulheres, Mt atenua com sua clausula: como na sua comunidade o divórcio só se concede em caso de adultério, então só é proibido casar-se com uma adúltera.

A posição católica a respeito do divórcio é conhecida. Não existe divórcio, e um segundo casamento nesta igreja só existe para viúvos. Mas pode haver uma “separação de mesa, cama e residência” mantendo o vínculo do matrimônio. Assim a posição católica está perto de Mt que não permite casar-se com uma adúltera. Depois se iguala a situação da mulher ao do homem. Mt 5,32 (e o AT) se dirigiu apenas aos homens. Se valer a mesma coisa para mulheres, então é proibido casar-se com homens adúlteros também. O divórcio judaico admitiu outros casamentos; Mt 5,32 com igualdade para os gêneros diz que não, o que coincide em muito com a posição católica, não em termos (divórcio permitido só em caso de adultério, mas não um segundo casamento com adúlteros), mas de fato (só separação de mesa, cama e residência).

Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: “Não jurarás falso”, mas “cumprirás os teus juramentos feitos ao Senhor” (v. 33).

A primeira antítese foi sobre o 5º mandamento, a segunda e terceira foram sobre o 6º e 9º mandamento. A quarta agora é sobre o juramento que se refere ao 2º e 8º mandamento.

Jesus cita livremente várias normas do AT (Lv 19,12; Nm 30,3; Dt 23,22). Para os judeus, jurar era permitido, até exigido em alguns casos (cf. Nm 5,19-22), mas a preocupação era evitar o nome de Deus (“não pronunciar o nome de Deus em vão” é o segundo mandamento em Ex 20,7) e um perjúrio (“não levantar falso testemunho” é o oitavo mandamento em Ex 20,16; cf. Jr 4,2) e cumprir os votos sagrados (cf. Sl 50,14). Já havia críticas a respeito da mania de jurar (Os 4,2; Eclo 23,9-11). A necessidade de juramentos é sinal de que a mentira e a desconfiança pervertem as relações humanas. Jesus exige relacionamento em que as pessoas sejam verdadeiras e responsáveis.

Eu, porém, vos digo: Não jureis de modo algum: nem pelo céu, porque é o trono de Deus; nem pela terra, porque é o suporte onde apoia os seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do Grande Rei (vv. 34-35).

Para não pronunciar o nome de Deus, jurava-se invocando fórmulas substitutas, mas nem estas Jesus aceita: “nem pelo céu, porque é o trono de Deus; nem pela terra, porque é o suporte onde ele apoia os pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande rei” (vv.34-35; cf. Is 66,1: Sl 48,3; Mt 23,16-22).

Não jures tão pouco pela tua cabeça, porque tu não podes tornar branco ou preto um só fio de cabelo (v. 36).

A grandeza e majestade de Deus contrastam com a fraqueza e impotência do homem (cf. 6,27.34; 10,30).

Seja o vosso “sim”: “Sim”, e o vosso “não”: “Não”. Tudo o que for além disso vem do Maligno (v. 37).

Jesus é categórico: “Seja o vosso “sim”, “sim e o vosso “não”, “não”” (v. 37). Essa fórmula já se encontra em 2Cor 1,17-19 e Tg 5,12; pode-se entender como veracidade (se é sim, diz “sim”; se é não, diz “não”) ou como sinceridade (que e vosso sim ou não dos lábios corresponda ao sim ou não do coração) ou como solenidade (a repetição do sim ou do não seria uma forma solene de afirmação ou de negação, que deveria bastar, dispensando o recurso a um juramento que envolvia a divindade).

O final da sentença, “tudo o que for além disso virá do maligno”, demonstra que Jesus, em Mt, não quer mesmo qualquer juramento. No seu processo diante do sinédrio, evita o juramento para declarar sua filiação divina, respondendo ao sumo sacerdote: “Tu o disseste” (26,63-64). Mas há outros trechos no NT a respeito: o autor de Hb 6,13-18 lembra do juramento do próprio Deus a Abraão (“juro por me mesmo”, Gn 22,16-17). O apóstolo Paulo também jurava várias vezes, invocando Deus como testemunha da sua evangelização (Rm 1,9; 2Cor 1,23; Gl 1,20; Fl 1,8; 1Ts 2,5).

Na história da Igreja, juramentos foram se introduzindo mais e mais com a aliança de Igreja e Estado desde Constantino: juramentos da bandeira pelos soldados, juramento de lealdade pelos funcionários. Então a Igreja preocupava-se em substituir os juramentos pagãos por fórmulas cristãs. S. Bento proibiu ainda o juramento na sua regra, mas S. Tomás de Aquino proibiu só juramentos sem necessidade e sem cautela. Lutero, distinguindo dois reinos (mundo civil, igreja), declarou que juramentos mandados não são atingidos por Mt 5,33. Na prática, os protestantes aceitam jurar numa das condições seguintes: assunto importante; a honra de Deus está no jogo; pelo bem do próximo ou mandado pela autoridade. Na Igreja Católica, basta olhar no índice do Código do Direito Canônico (13 itens a respeito) para ver o quanto a proibição de juramento por Jesus perdeu importância na própria Igreja.

O site da CNBB comenta: Vós ouvistes o que foi dito aos antigos… Eu, porém, vos digo. Quem quer conhecer verdadeiramente Jesus não pode se contentar com as coisas antigas, mas deve buscar sempre a novidade do Evangelho. Isso significa que até mesmo o Evangelho não pode tornar-se antigo, tornar-se uma narrativa de fatos passados. O Evangelho deve ser para nós sempre uma novidade, um desafio à descoberta de novos valores que devem marcar a nossa vida e renovar a nossa comunidade e a nossa sociedade. A novidade do Evangelho é sempre atual e insuperável, e aponta para todos nós novos caminhos que devem ser trilhados a fim de que consigamos uma maturidade cada vez maior na fé.

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