16 de Outubro de 2019, Quarta-feira: “Aí de vós, fariseus, porque pagais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as outras ervas, mas deixais de lado a justiça e o amor de Deus. Vós deveríeis praticar isso, sem deixar de lado aquilo (v. 42).

28ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Rm 2,1-11

Depois da polêmica contra a idolatria e decadência moral dos pagãos (cf. leitura de ontem), Paulo dirige-se agora aos judeus na segunda pessoa (“tu”), primeiro em forma tácita (vv. 1-16), depois abertamente (2,17-3,20). Se o pagão não tem desculpas (1,20c), o judeu não tem menos ainda (2,1). Paulo expõe isso em dois passos: vv. 1-3: “julgando os outros, te condenas a ti mesmo”; vv. 4-11: ao abusares da paciência de Deus, agravas a sentença final.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1370) comenta: A condição dos judeus passa a ser apresentada de maneira ainda mais severa. Como eles conhecem Deus através das Escrituras, era de esperar um comportamento mais justo. No entanto, eles vivem como os pagãos, e ainda por cima se consideram melhores. Por isso, passam de juízes a réus no julgamento (vv. 1-5), onde, de acordo com o critérios do comportamento, atraem “a ira e a cólera” (vv. 6.8). Para a justiça de Deus, não há privilégios na lei judaica, como não há para sabedoria grega (vv. 9-11).

Ó homem, qualquer que sejas, tu que julgas, não tens desculpa; pois, julgando os outros, te condenas a ti mesmo, já que fazes as mesmas coisas, tu que julgas. Ora, sabemos que o julgamento de Deus se exerce segundo a verdade contra os que praticam tais coisas. Ó homem, tu que julgas os que praticam tais coisas e, no entanto, as fazes também tu, pensas que escaparás ao julgamento de Deus? (vv. 1-3).

No AT, conhece-se o juiz que é julgado: Davi em 2Sm 12; a vinha de Israel em Is 5,1-7. No NT, pode se comparar “o cisco e a trave” (Mt 7,2-5) e os juízes da adúltera (Jo 8,7). A sentença de Deus é justa, porque é “segundo a verdade” dos fatos (Sl 7,12; 10,8). É insensatez o homem pensar que possa evitar o julgamento de Deus (Eclo 16,17-23).

Ou será que desprezas as riquezas de sua bondade, de sua tolerância, de sua longanimidade, não entendendo que a benignidade de Deus é um insistente convite para te converteres? (v. 4).

O tema da “tolerância” ou paciência de Deus para com os judeus e também com os pagãos é sugerido em Gn 15,16 (visão de Abraão), e desenvolvido com maturidade em Sb 11,23-12,21. “Paciente” é um dos títulos clássicos de Javé Deus (Ex 34,6: “lento para cólera”), retomando em fórmulas litúrgicas (Sl 86,15; 103,8; 145,8).

“Para te converteres”, lit. para tua conversão. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2173) comenta: A palavra grega “metanoia”, assim traduzida, pode igualmente ser expressa por arrependimento, penitência. Os primeiros cristãos empregam, para exprimir esta ideia: – quer (como aqui) uma raiz de derivação puramente grega que, segundo a sua etimologia, denota a mudança de mentalidade (todavia a palavra nunca mais tem o sentido que às vezes recebeu em grego: mudança de opinião; de conformidade com a mentalidade semítica, ele sempre caracteriza um estímulo) que interessa o homem todo); – quer uma raiz que conserva ainda a lembrança do hebraico (“shul”): reviravolta, ação de mudar de finalidade, de orientação. A conversão é, portanto, a graça, concedida ao homem em Jesus Cristo, de se desviar do mal e de volta para Deus; no texto em apreço, é a bondade de Deus que conduz à conversão.

Por causa de teu endurecimento no mal e por teu coração impenitente, estás acumulando ira para ti mesmo, no dia da ira, quando se revelará o justo juízo de Deus. Deus retribuirá a cada um segundo as suas obras (vv. 5-6).

Eclo 5,4-7 adverte contra o abuso da paciência de Deus, por um “coração impenitente” (cf. Is 46,12; Ez 2,4; 3,7). O “dia da ira” (cf. Sf 1,14-2,3; Ez 7,19; Ap 6,17) é o dia do julgamento definitivo, quando já não sobra espaço para o arrependimento e o perdão. A pregação profética anunciou julgamentos finais de época ou de império no curso da história, por ex. a destruição de Jerusalém e o exílio na Babilônia. A frase grega joga com repetição de “ira”, poderíamos entender: “acumulas condenação para o dia da sentença”.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2121) comenta: O “Dia de Iahweh”, anunciado pelos profetas como dia de ira e de salvação (Am 5,18 etc.), encontrará sua plena realização escatológica no “Dia do Senhor”, quando da volta gloriosa de Cristo (1Cor 1,8 etc.). Neste “Dia de julgamento” (cf. Mt 10,15; 11,22.24; 12,36;  Pd 2,9;3,7; 1Jo 4,17), os mortos ressuscitarão (1Ts 4,13-18; 1Cor 15,12-23.51s) e todos os homens comparecerão perante o tribunal de Deus (Rm 14,10) e de Cristo (2Cor 5,10; cf .Mt 25,31s). Julgamento inevitável (Rm 2,3; Gl 5,10; 1Ts 5,3) e imparcial (v. 11; Cl 3,25; cf.1Pd 1,17), que pertence só a Deus (Rm 12,19; 14,10; 1Cor 4,5; cf. Mt 7,1p). Deus, pelo seu Cristo (v. 16; 2Tm 4,1; cf. Jo 5,22; At 17,31), julgará os vivos e os mortos (2Tm 4,1; cf. At 10,42; 1Pd 4,5). Ele, que sonda os corações (v. 16; Jr 11,20; 1Cor 4,5; cf. Ap 2,23) e prova pelo fogo (1Cor 3,13-15), “retribuirá a cada um segundo suas obras” (Sl 62,13; cf. Ez 18,21-23; 1Cor 3,8.13-15; 2Cor 5,10; 11,15; Ef 6,8; cf. Mt 16,27; 1Pd 1,17; Ap 2,23; 20,12; 22,12). O homem colherá o que tiver semeado (Gl 6,7-9; cf. Mt 13,39; Ap 14,15). Ira e perdição (Rm 9,22), para as potencias do mal (1Cor 15,24-26; 2Ts 2,8) e para os ímpios (2Ts 1,7-10; cf. Mt 13,41; Ef 5,6; 2 Pd 3,7; Ap 6,17; 11,18). Para os eleitos, que terão praticado o bem, redenção (Ef 4,30; cf. Rm 8,23), descanso (At 3,20; cf. 2Ts 1,7; Hb 4,5-11) exaltação (1Pd 5,6), louvor (1Cor 4,5) e glória (Rm 8,18s; 1Cor 15,43; Cl 3,4; cf. Mt 13,43).

Para aqueles que, perseverando na prática do bem, buscam a glória, a honra e a incorruptibilidade, Deus dará a vida eterna; porém, para os que, por espírito de rebeldia, desobedecem à verdade e se submetem à iniquidade, estão reservadas ira e indignação (vv. 7-8).

Sobre a retribuição, a pontuação correta das frases opõe “vida eterna” a “ira e indignação (cólera)”.

A vida perdurável é para os que buscarem a imortalidade fazendo o bem; eles a procuram, não a possuem; segundo Sb 1,23, a imortalidade é destino, mais que condição (compare-se com a contraposição de Is 66,14-16). A segunda parte opõe “verdade” a “iniquidade (injustiça)”.

Tribulação e angústia para toda pessoa que faz o mal, primeiro para o judeu, mas também para o grego; glória, honra e paz para todo aquele que pratica o bem, primeiro para o judeu, mas também para o grego; pois Deus não faz distinção de pessoas (vv. 9-11).

A Bíblia do Peregrino (p. 2708) comenta: Angústia e tribulação (como em 8,35 e 2Cor 6,4) estão em oposição à paz (cf. Sb 3,3). Deus não é parcial (Dt 10,17; 2Cr 19,7; Ef 6,9; cf. At 10,34). Com o binômio judeu/grego retorna a colocação central: os gregos representam os pagãos. Os judeus são o tema da explanação seguinte, na qual se discutem dois supostos privilégios, a lei e a circuncisão.

O judeu, arvorando-se em sensor dos outros, não creia ele ser poupado se age como eles (vv. 1-5.17-24). Nem a lei (vv. 12-16), nem a circuncisão (vv. 25-29), nem o depósito das Escrituras (3,1-8), poderão dispensá-lo da retidão interior. O judeu e o pagão são igualmente réus perante o tribunal de Deus (2,1-11); com efeito, ambos então submetidos ao pecado (3,9-20).

 

Evangelho: Lc 11,42-46

Continuamos a crítica de Jesus à hipocrisia dos líderes religiosos. Lc copia seis lamentações (“ai”) da sua fonte comum com Mt, chamada Q (cf. Mt 23), mas em outra sequência. Lc dirige os primeiros três ais aos “fariseus” (vv. 39-44), depois aos “mestres da Lei” (vv. 46-52); Mt inclui os dois grupos desde o início. A mal-aventurança “Ai” (cf. 6,24-26) é profética (ou fúnebre). Leem-se séries de ais em Is 5,8-23; Hab 3,6-19; Eclo 2,12-14; Mt 23,13-32.

“Aí de vós, fariseus, porque pagais o dízimo da hortelã, da arruda e de todas as outras ervas, mas deixais de lado a justiça e o amor de Deus. Vós deveríeis praticar isso, sem deixar de lado aquilo (v. 42).

Este “ai” é contra a inversão dos valores. O que é mais importante na Lei que os fariseus tanto prezam? A lei só prescreve o dízimo de azeite, vinho, trigo que depois foi aplicado à colheita toda (Nm 18,11-13; Dt 14,22s; Lv 27,30) e, por um exagero dos rabinos, estendido às plantas mais insignificante; discutiam essa obrigação quanto às plantas selvagens. Será que o dízimo de ervas e temperos seja mais importante do que “a justiça (o direito) e o amor (Mt 23,23: misericórdia) de Deus”?

Jesus apresenta aqui uma hierarquia de valores e resumo da lei, como p. ex. em 1,75: “santidade e justiça”; 10,25-37: “amar a Deus e o próximo” (cf. Mq 6,8; Zc 7,9; Is 1,17; Jr 22,3; Os 6,6; Am 5,24; Pr 21,21; Mc 12,28-34p; Rm 13,8-10; Gl 5,14; 6,2; Tt 2,12). Os fariseus, porém, em nome de coisas pequenas sacrificam o importante também exigido pela lei e pelos profetas. Não é preciso esforçar-se para ver aqui a descrição de um tipo humano.

“Vós deveríeis praticar isso, sem deixar de lado aquilo”. Esta frase falta em vários manuscritos antigos, sem dúvida devido ao o fato de conceder certo valor às práticas legais. É uma regra sapiencial de “fazer isso sem deixar aquilo” (cf. Ecl 7,18). Com isso, Jesus deixa claro que não é contra o dízimo (cf. Ml 3 etc.), mas o dízimo deve ser expressão de justiça e amor de Deus e não ser colocado acima destes. Por outro lado, viver os valores do Reino (justiça, paz…) e procurar o cultivo da vida interior (coração, consciência) também não nos exime das práticas comunitárias de fé e religiosidade. A negligência da vivência exterior da fé também constitui um ato grave porque a religião tende a tornar-se totalmente subjetiva, indo cada vez mais ao encontro dos nossos interesses pessoais e deixando de ser a busca sincera da prática da vontade de Deus e testemunho comunitário de um Deus que é amor e condena o individualismo.

Aí de vós, fariseus, porque gostais do lugar de honra nas sinagogas, e de serdes cumprimentados nas praças públicas (v. 43).

O segundo “aí” atinge a vaidade dos líderes religiosos, atitude própria não só de um grupo específico (cf. 20,26; Mc 12,38s; Mt 23,2.6). Da sua função religiosa, os fariseus deduziram privilégios sociais. Os discípulos enviados por Jesus, porém, não devem perder tempo nem em saudações mútuas nem em homenagens (cf. 10,4) porque estão comprometidos somente com a mensagem.

Aí de vós, porque sois como túmulos que não se vêem, sobre os quais os homens andam sem saber” (v. 44).

O terceiro “ai” combina com a primeira acusação (v. 39). Os túmulos eram marcados com cal, para evitar que os transeuntes os pisassem e se contaminassem. Os fariseus são comparados com túmulos escondidos sobre os quais as pessoas pisam sem se dar conta da contaminação cultual (Lv 21,11; Nm 6,6; 19,11-21; Eclo 34,25). Mt 23,27s destacou mais o contraste entre aparência por fora e podridão por dentro. A aparência da piedade é como máscara, atrás dela esconde-se a cara do sedutor.

A comparação dos hipócritas com o mundo da morte é muito forte, quase macabra: O mundo dos mortos no meio dos vivos; a corrupção e a impureza no meio do povo.  Pode chegar à conclusão que eram extremamente abomináveis e podres e o contato com estas pessoas devia ser evitado para não se contaminar com eles.

Um mestre da Lei tomou a palavra e disse: “Mestre, falando assim, insultas-nos também a nós!” (v. 45).

O próprio Lc inseriu este comentário de um mestre da lei (fariseu ou saduceu) que se sente agredido pelas palavras de Jesus (chamado de mestre de maneira convencional). A crítica dele parece atacar o fundamento da lei judaica e seus representantes. Jesus responde com mais três “ais” dirigidos aos “mestres da lei” (vv. 46-52). A culpa deles é maior ainda do que dos fariseus por que pela sua teoria (interpretação da lei) criam as condições e parâmetros da conduta prática.

A Bíblia do Peregrino (p. 2497) comenta: Nem todos os fariseus eram letrados ou vice-versa; mas os fariseus respeitavam o corpo dos letrados e se esforçavam por escutar e fazer cumprir as decisões destes. Por isso, o ataque de Jesus recai sobre os estudiosos, que se sentem ofendidos.

Jesus respondeu: “Ai de vós também, mestres da Lei, porque colocais sobre os homens cargas insuportáveis, e vós mesmos não tocais nessas cargas, nem com um só dedo” (v. 46).

A resposta de Jesus se refere ao vício dos mestres da Lei de colocar fardos insuportáveis nas costas do povo simples, enquanto para si mesmos sempre encontram saídas (através de bons advogados e brechas na lei como embargos, limiares etc.). Uma reforma no judaísmo queria mais igualdade diante da lei (cf. a regra de ouro, 6,31; Mt 7,12), mas ninguém a expressou com tanta consequência como Jesus. As “cargas insuportáveis” lembram as cargas do Egito (Ex 1,11; 2,11) ou as de Salomão e Roboão (1Rs 12).

Em Mt, Jesus convida a carregar o jugo dele (Mt 11,28s) que é mais leve por ter o amor como lei supremo. Os apóstolos também não querem sobrecarregar os fieis com a lei da circuncisão (At 15,10; Gl 5,1), mas incentivam a carregar “o peso uns dos outros, assim cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6,2).

O site da CNBB comenta: Continuando a reflexão de ontem, uma vez que o Evangelho de hoje é a continuidade do diálogo iniciado ontem, viver os valores do Reino e procurar o cultivo da vida interior também não nos exime das práticas comunitárias de fé e religiosidade, conforme nos diz Jesus: “Vós deveríeis praticar isso, sem deixar de lado aquilo”. A negligência da vivência exterior da fé constitui um ato grave porque a religião tende a tornar-se totalmente subjetiva indo cada vez mais ao encontro dos nossos interesses pessoais e deixando de ser a busca sincera da prática da vontade de Deus e testemunho comunitário de um Deus que é amor e condena o individualismo.

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