17 de Junho de 2021, Quinta-feira: De fato, se vós perdoardes aos homens as faltas que eles cometeram, vosso Pai que está nos céus também vos perdoará.

11ª semana 5ª feira – Ano Ímpar

Leitura: 2Cor 11,1-11

A Segunda Carta aos Coríntios é composta de várias cartas diferentes. Na leitura de hoje e nos próximos dias até ouvimos da última grande parte desta carta (caps. 10-12) que poderia ser a “carta severa”, escrita “em meio a muitas lágrimas” e da qual Paulo já se referiu em 2,3-4; 7,8-9. Nossa liturgia diária saltou o cap. 10.

No texto de hoje, Paulo usa um meio literário dramático, um discurso de bobo soando como desatino próprio de um néscio. Pode-se comentar com abundantes textos sapienciais sobre a conduta do néscio: “é fardo na viagem, o néscio ri sonoramente, se precipita na casa, fica na porta zombando, tem a mente nos lábios” Ao assumi-lo e declará-lo insensatez, Paulo o exorciza e purifica. Bancar o idiota no palco pode demonstrar grande talento. Paulo poderia aludir a um tipo de comedia grega, como o bobo ou o cômico do teatro clássico.

Oxalá pudésseis suportar um pouco de insensatez, da minha parte. Na verdade, vós me suportais. Sinto por vós um amor ciumento semelhante ao amor que Deus vos tem. Fui eu que vos desposei a um único esposo, apresentando-vos a Cristo como virgem pura (vv. 1-2).

Os coríntios já “suportam… de bom grado… os superapóstolos“ (vv. 4-5.19-20; 12,11), ou seja, falsos apóstolos que distorcem a mensagem original do evangelho. O verdadeiro apóstolo sente amor e ciúme que podem deixar a razão em segundo plano.

A imagem do matrimônio exprime intimidade e pertença. Para o apóstolo, cada comunidade está profundamente ligada a Jesus, seu Senhor único e exclusivo; e ninguém tem direito de apoderar-se de uma comunidade cristã. Paulo utiliza a ideia tradicional do Deus ciumento (Ex 20,5; 34,14; Dt 4,24; por Jerusalém Zc 1,14; 8,2) na imagem conjugal. Uma vez já desposada (com vínculo jurídico) a noiva-esposa deve conservar-se casta para seu marido (cf. Eclo 42,9-10 “na casa paterna não fique grávida”). Um homem encarregado de guardá-la vive solícito e vigilante; carrega por assim dizer, os ciúmes do futuro marido (cf. Ef 5,26). Desde os profetas, o amor de Javé por seu povo era simbolizado pelo amor do esposo e da esposa (Os 2; Jr 2,1-7; Ez 16,23). O NT retomou a imagem (Mt 22,2s; 25,1s; Jo 3,28-29; Ef 5,25-33; Ap 19,7; 21,2). A desposada é a igreja de Coríntios. Cristo é o esposo, Paulo o guardião que conduziu a comunidade de Corinto a Cristo. Agora ele teme que essa igreja se deixe seduzir por falsos apóstolos, que apresentam evangelhos diferentes.

Porém, receio que, como Eva foi enganada pela esperteza da serpente, também vossos pensamentos se corrompam, afastando-se da simplicidade e pureza devidas a Cristo. De fato, se aparece alguém pregando um outro Jesus, que nós não pregamos, ou prometendo um outro Espírito, que não recebestes, ou anunciando um outro evangelho, que não acolhestes, vós o suportais de bom grado. No entanto, entendo que em nada sou inferior a esses “super-apóstolos”! (vv. 3-5).

O perigo de sedução lhe permite recordar o “tipo de Eva” (Gn 3,4; Ap 14,4; inclusive segundo a tradição rabínica que imaginava relações de Eva com um demônio). Apoia-se na equação corrente no Antigo Testamento (AT) de idolatria e prostituição. Em lugar de outros deuses, entram um Jesus, um espírito e um evangelho estranhos. Diríamos que esses “ciúmes” substitutivos fizeram Paulo desatinar.

Volta ainda na imagem de néscio ao retorcer argumentos e pretensões dos rivais, que pregam um “evangelho diferente”, alegando ser superiores à Paulo. Designa os primeiros com uma expressão irônica (“superapóstolos”, v. 5; 12,11) desmascara-os depois com frases duríssimas (vv. 13-14), finalmente pronuncia terrível ameaça (v. 15). Essa polêmica pode recordar a dos profetas autênticos frente aos falsos, nas quais não se poupam denúncias nem ameaças (cf. Jr 28; Ez 13; Mq 2,3).

Não sabemos a heresia que os falsos apóstolos ensinaram. Poderia ter sido um Jesus apresentado essencialmente em seu aspecto terrestre e judeu (cf. 5,16), de modo a se dar menos importância a sua morte na cruz (cf. 1Cor 1,17-2,5) e a ressurreição do Senhor, cabeça do mundo novo (5,17). A situação parece menos grave do que em Gl 1,6-9; poderia, porém, tornar-se muito séria.

O termo “superapóstolos” volta em 12,11. São “falsos apóstolos” (11,14). Certamente não se trata dos doze, cuja autoridade Paulo reconhece (Gl 1,18; 2,9). Mas o círculo dos apóstolos é ainda mais amplo do que os dos doze (cf. 1Cor 15,7; só a partir de Lc o título se restringe aos doze), e pode ter havido outros Judas entre eles. A menos que se trate de pessoas que usurpassem tal título. Se a função dos apóstolos na igreja é a suprema, não pode haver “superapóstolos”. Recorde-se a pretensão dos filhos (e da mãe) do Zebedeus (Mc 10,35-45p).

Mesmo que eu seja inábil na arte de falar, não o sou quanto à ciência: eu vo-lo tenho demonstrado em tudo e de todas as maneiras. Acaso cometi algum pecado, pelo fato de vos ter anunciado o evangelho de Deus gratuitamente, humilhando-me a mim mesmo para vos exaltar? Para vos servir, despojei outras igrejas, delas recebendo o meu sustento. E quando, estando entre vós, tive alguma necessidade, não fui pesado a ninguém, pois os irmãos vindos da Macedônia supriram as minhas necessidades. Em todas as circunstâncias, cuidei – e cuidarei ainda – de não ser pesado a vós. Tão certo como a verdade de Cristo está em mim, essa minha glória não me será arrebatada nas regiões da Acaia. E por quê? Será porque eu não vos amo? Deus o sabe! (vv. 6-11).

“Mesmo que eu seja inábil na arte de falar, não o sou quanto à ciência; eu vo-lo tenho demonstrado em tudo e de várias maneiras” (v. 6). A eloquência era muito estimada entre os gregos, tanto como o saber. Em diversas ocasiões, Paulo mostra que conhece os recursos do ofício (sem desdizer o que afirma em 1Cor 2,1). Paulo não se sente inferior. Os seus adversários o acusavam de não ter grande eloquência e profundidade. Confessa que tem limites no manejo das palavras, mas não isso significa carência de ciência, de aprofundamento teológico e espiritual.

Para além da ciência, o seu testemunho é de uma vida toda dedicada à comunidade (cf. 1Cor 9). Quando esteve na comunidade, procurou até mesmo não ser “pesado a ninguém” economicamente (vv. 9-10). Ele mesmo procurou o sustento com o seu trabalho, fabricava tendas em Corinto (At 18,3) e quando precisava de algo, era ajudado pela generosidade dos cristãos da Macedônia: “para vos servir, despojei outras igrejas, delas recebendo meu sustento, … pois os irmãos vindos da Macedônia supriram minhas necessidades” (vv. 8-9; cf. Fl 4,10.15). O auxílio financeiro que Paulo recebe destina-se à evangelização e não a ele próprio. Além disso, frequentemente ele prefere exercer o ministério de maneira gratuita (1Cor 9,15-18), para que não haja críticas ou objeções ao seu único interesse: servir as comunidades sob sua coordenação.

“Acaso cometi algum pecado pelo fato de vos ter anunciado o evangelho de Deus gratuitamente, humilhando a mim mesmo para vos exaltar?” (v. 7). Parece que os rivais argumentaram que um apóstolo que se preza exige digno pagamento pelos serviços e poderiam apoiar-se no exemplo de sacerdotes e também de profetas no AT (cf. 1Sm 9,7s; Nm 22,7). Paulo, ao contrario, prega de graça e estima justamente assim seus ouvintes e seu ministério. Paulo se gloria juntamente do contrario, do seu desinteresse, que não é desprezo, sim amor (cf. v. 2): “Tão certo como a verdade de Cristo está em mim (equivale a tomar Cristo como testemunho do que diz), essa minha glória não me será tirada nas regiões da Acaia. E porque? Será que eu não vos amo? Deus o sabe!” (v. 11). A longo prazo isso confirmará a autenticidade da sua missão.

 

Evangelho: Mt 6,7-15

Hoje se apresenta o centro do Sermão da Montanha que foi omitido na leitura de ontem. É a “oração do Senhor” porque foi ele que a ensinou (cf. Lc 11,1-4).

Quando orardes, não useis muitas palavras, como fazem os pagãos. Eles pensam que serão ouvidos por força das muitas palavras. Não sejais como eles, pois vosso Pai sabe do que precisais, muito antes que vós o peçais. Vós deveis rezar assim: (vv. 7-9a).

No contexto, Mt critica a oração, o jejum e a esmola dos fariseus que fazem “só para serem visto pelos homens” (vv. 1-6.16-18). No mesmo esquema, “quando orardes, … não fazeis isso…, mas aquilo” (vv. 5-6), inseriu a oração do Senhor na recomendação “quando orardes, não useis muitas palavras” (v. 7). Não se condena a frequência (Lc 18,1), nem a ansiedade, mas a prolixidade, ou seja, dizer coisas vãs ou pretender, por sua extensão, pressionar a divindade (cf. 1Rs 18,27; Is 1,15; Eclo 7,14; Tg 1,26).

A oração do Senhor assemelha-se, tanto pelo conteúdo como pela forma, às orações judaicas (ex. a “oração das 18 preces” que os judeus rezam ainda hoje), mas distingue delas por sua simplicidade e liberdade com que se invoca Deus.

Contém duas partes, uma em honra de Deus (“tu/vós”), outra em favor dos seres humanos (“nós”). Na primeira, pede-se que Deus manifeste seu projeto de salvação; na segunda, pede-se o essencial para que possamos viver segundo este projeto: pão para o sustento, bom relacionamento com os irmãos e perseverança até o fim.

Esta oração nos foi transmitida por Mateus e por Lucas. A versão de Lc 11,2-4 é mais breve e por isso considerada mais original, porque, segundo os exegetas (peritos da Bíblia), é muito mais provável que alguém acrescente coisas a esta oração fundamental do que alguém tire umas partes dela. Por exemplo: vários manuscritos acrescentaram a fórmula de uma antiga liturgia “pois teus são o reino, o poder e a gloria” (cf. o texto ecumênico do Pai Nosso). Muitos católicos gostam de acrescentar uma Ave Maria depois do Pai Nosso.

A liturgia da missa reza o Pai nosso na versão de Mt, porque antigamente achava-se que este evangelho fosse o mais original por ser relacionado com o nome de um apostolo; “Mateus” (cf. 9,9; 10,3). Hoje, porém, sabe-se que Marcos é o evangelho mais antigo (mas não contém esta oração, a não ser um pedido em Mc 14,36). Aliás, muita coisa indica que Mt não foi escrito por um apóstolo, porque usava todo o Mc (até a própria vocação Mt 9,9-13 é cópia de Mc 2,13-17).

Portanto, podemos supor que Mt aumentou o número de pedidos de cinco (Lc 11,2-4) para sete. Mt escreveu para judeu-cristãos; para estes, “sete” é o número sagrado da perfeição (cf. a criação em Gn 1,1-2,4a; no culto Lv 4,6-17; 8,11; Nm 28,11; Ez 45,23; cf. Zc 3,9; Tb 12,15; Ap 1,20; 3,1; 5,1s; 8,6). É número predileto por Mt: 2 vezes 7 (14) na geneologia (1,17); sete parábolas (cap. 13), 70 vezes 7 perdoar (18,21s). Aqui, Mt acrescenta no final de cada parte da oração uma prece, o 3º e o 7º pedido.

Pai nosso que estás nos céus (v. 9b),

Jesus autoriza os discípulos a invocarem Deus como “Pai” (cf. a oração do rei em Sl 89,27 e de um particular em Eclo 51,10). Em Lc 11,2 só “Pai”, que equivale o novo nome de Deus (“Abbá”) que implica a consciência da filiação testemunhada no Espírito (no batismo, cf. Rm 8,15-16; Gl 4,6-7; Mc 1,11).

Chamar Deus de “Abba” (papai em aramaico; cf. 14,36; Rm 8,15; Gl 4,6) revela a intimidade do próprio Jesus com Deus (Mc 14,36; cf. 11,25-26p; Jo 3,35; 5,19s; 8,28s etc.). Em Mt, os discípulos dirigem-se ao Pai comum (“nosso”) que é único (23,9) e “está nos céus”. Não é uma localização no espaço, mas expressa que Deus domina a terra inteira e ao mesmo tempo está perto (“nosso”) dos homens (cf. Mc 11,25; Mt 5,16,45,7,21; 10,32-33 etc.).

Santificado seja o teu nome (v. 9c).

“Santificar a Deus” ou “seu nome” é expressão clássica na Bíblia. O nome representa a pessoa e no judaísmo é usado para designar o próprio Senhor, cujo nome não se pronunciava mais (Yhwh, “Javé”, depois traduzido por “Senhor”) para não violar o segundo mandamento (Ex 20,7). Já que Deus é o Santo por excelência (cf. Is 6,3; Sl 99 etc.), santificá-lo não é dar ou acrescentar algo a sua santidade, mas reconhecer, que se proclame o que ele é, que se preste glória (cf. Jo 12,28; 17,6.26).

Não mostrar a santidade de Deus foi o delito de Moisés (Nm 27,14). Os legistas e rabinos convidam os fiéis a santificar Deus pela obediência aos seus mandamentos e com isso reconhecer sua autoridade (Lv 22,32; Dt 32,51; Is 8,13; 19,13). Além disso, os profetas anunciam que Deus mesmo vai santificar seu nome, manifestando-se aos olhos de todos como justo juiz e salvador (Is 5,16; 29,23; Ez 20,41; 28,22.25; 36,23; 38,16.23; 39,27), apesar dos pecados do povo.

Ao lado do próximo pedido da vinda do reino, que só Deus pode realizar, a forma passiva, “seja santificado teu nome”, indica esta intervenção de Deus discretamente sem nomeá-lo (passivo divino, cf. 5,6.7.9; 7,1.2.7.8…). O contrário é seu nome ser ignorado e profanado, manipulado e banalizado por interesses humanos o que de fato aconteceu muitas vezes na história humana e ainda acontece (cf. guerras “religiosas” por motivos econômicos ou políticos).

Venha o teu Reino (v. 10a),

“Venha o teu reino” é o pedido que a realeza permanente de Deus sobre o mundo (Sl 93,1-3; 95,3; 99,1-4…) se manifeste plenamente no tempo da salvação (Is 52,7; Sl 96,10; 97,1; 98,6-9…). “Venha” é símbolo espacial que se resolve na realização histórica final (Sl 98,6-9). Este pedido corresponde ao anúncio primordial da Boa Nova (Evangelho) por João Batista e Jesus (3,2; 4,17; sobre o reino, cf. o comentário do 1º domingo da quaresma ou da 2ª feira da 1ª semana do Tempo Comum). Aliás, quando não se lê “entrar no reino” (5,20; 7,21; 18,3; 19,23), convém traduzir por “reinado” para não confundi-lo com uma área geográfica, já que se trata do exercício do poder de Deus e sua soberania.

Seja feita a tua vontade, assim na terra como nos céus (v. 10b).

Mt encontrou a oração de Jesus agoniado no Jardim das Oliveiras já em Mc 14,36, a adaptou e também trouxe para dentro da oração do Pai-Nosso. Assim Mt acrescentou o terceiro pedido “seja feita a tua vontade” (falta em Lc 11,2-4). Esta prece equivale àquela anterior (cf. Is 44,28; 46,10-11; 48,14; Ez 1,5,9) que Deus exerça seu reinado. Não é fatalismo, nem resignação, porque a vontade divina não se poderá cumprir sem a adesão por parte dos seres humanos, tanto no fim do tempo por sua concordância perfeita entre as vontades humanas e a dele (Jr 31,31-33; Ez 36,27), como agora, pelo cumprimento dos mandamentos, cuja necessidade Mt acentua tantas vezes (5,17-20 7,21.24-27; 12,50; 21,30…).

O sentido de “assim na terra como no céu” é que se realize na terra o que já existe no céu, da mesma forma que no esquema apocalíptico (cf. Dn 4,31; 1Mc 3,60). O céu é concebido como reinado de Deus totalmente realizado, a terra deve ser imagem dele (como o homem deve ser imagem de Deus; cf. Gn 1,26s). Aliás, é possível que esta frase não se refira só as últimas palavras, mas ao conjunto dos três pedidos.

O pão nosso de cada dia dá-nos hoje (v. 11).

No pedido pelo “pão nosso” (v. 11), há dificuldade de traduzir a palavra grega. A Bíblia latina (Vulgata de S. Jerônimo) traduz de forma diferente a mesma palavra, em Mt supersubstancialem e em Lc, cotidianum. Pode ser, então, o pão cotidiano para hoje (Sl 136,25; cf. Pr 27,1; 30,8-9) e também o pão do amanhã escatológico (o banquete do mundo vindouro; cf. 8,11; 22,2-14; 26,29; Is 25,6; 55,1-2; Sl 22,27; Lc 14,15; Ap 3,20; 19,9), antecipado no pão eucarístico (cf. 26,26; Jo 6,32-35).

Embora a tradução exata permaneça incerta, fica claro que tal pedido não é uma exigência de segurança para o futuro. Jesus convida seus discípulos missionários a pedirem dia após dia (cf. 6,34; Mc 6,8) o alimento de que precisam, na certeza de que Deus proverá cada dia, assim como alimentava Israel no deserto com o “maná” colhido um dia após outro (Ex 16).

Perdoa as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido (v. 12).

Mt usa no pedido pelo perdão a palavra “dívidas” (v. 12). No mundo antigo, uma dívida podia acarretar até a perda da liberdade (cf. Mt 18,23-28). Desconhecida no AT, esta figura é usada no judaísmo para indicar a situação do ser humano diante de Deus: é devedor insolente, é o estado de pecador. No mundo moderno, onde se recorre habitualmente ao crédito e empréstimo, perde-se o sentido dessa tradução. Talvez a palavra “faltas” indique melhor a ofensa feita pessoalmente como situação miserável do pecador. Jesus une nossas obrigações para com Deus e para com nossos irmãos (cf. 22,34-40), adaptando-se ao tema da aliança: assim devemos perdoar aos nossos devedores, aos que nos ofendem, aos que tem faltas contra nós, para que Deus nos perdoe (cf. Eclo 28,1-7; Mt 5,7; 6,14-15; 18,23-35; Mc 11,25; Ef 4,32). Este perdão fraterno não compra o perdão de Deus, mas atesta a nossa sinceridade.

E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal (v. 13).

Com formulação negativa, “não nos deixes cair em tentação” (lit. “não nos conduzas/exponhas à tentação”), pedimos para superá-la (cf. 26,41). A provação é condição do ser humano, particular do religioso (Eclo 2,1-5; 23,1; 33,1). No AT, é o próprio Deus que tenta e sujeitou à prova Abraão (Gn 22,1; 1Mc 2,52; Eclo 44,20) ou experimenta seu povo (Ex 15,25; 16,4; 20,20; Dt 8,2.16; 13,4; Jz 2,22; 3,1.4; 2Cr 32,31; Sb 11,9s), se este é fiel e obediente fazendo a vontade de Deus ou foge dos seus compromissos escolhendo o caminho mais fácil. Nos textos posteriores, há uma tendência de distinguir Deus como sujeito soberano que quer o bem, de outro sujeito que quer o mal e tenta, Satanás (Deus tenta em 2Sm 24,1 e Satanás no paralelo 2Cr 21,1; cf. Jó 1-2 e já a serpente em Gn 3). Na literatura sapiencial, a tentação pode ser vista de maneira positiva como meio pedagógico, como prova (Sb 3,5s; 11,9; Eclo 2,1.6; 4,17; 1Mc 2,52; Jt 8,25s; cf. Sl 26,2), mas aqui a situação é mais dramática.

No NT, é a prova pela qual satanás procura arruinar aquele contra quem investe (1Cor 7,5; 1Ts 3,5; 1Pd 5,5-9; Ap 2,10; cf. Lc 22,31; Jó 1,2). Nunca se diz no NT que o próprio Deus tenta e Tg 1,13 o excluí expressamente (cf. Eclo 15,11s; cf. 2Sm 24,1 e 1Cr 21,1). Nada, porém, escapa da soberania de Deus, nem sequer a tentação nem o poder de satanás. Ele não quer que o homem peque, mas pode conduzir ou confrontar alguém a uma situação crítica (prova), como “o Espírito impeliu Jesus ao deserto para ser tentado por Satanás” (4,1; cf. Hb 2,18; 4,15). Também no jardim Getsêmani, a oração de Jesus é exemplar; para Mt é ocasião de lembrar dois pedidos da oração do Pai-Nosso (26,41s).

Na oração do Pai-Nosso rezamos que nos poupe de uma provação tal que corramos risco de não poder suportá-lo e “cair” (cf. 1Cor 10,13: o próprio Deus nos oferece uma “saída”). Sabemos da nossa fraqueza e culpa (pedido anterior); agora pedimos que Deus não nos coloque diante de situações tal tentadoras que possamos perder a salvação eterna.

Para chegar ao número sete, Mt (ou a comunidade antes dele) acrescentou o pedido final (v. 13b): “mas livra-nos do mal” ou “do maligno”, isto é satanás (identificado como o tentador de v. 13a). Os dois sentidos são possíveis (quanto ao primeiro, cf. 5,11; 6,23; cf. 2Tm 4,18; quanto ao segundo, cf. 13,19; 5,37; 13,38; Jo 17,15; 2Ts 3,3). Pelo pedido anterior, o sentido pessoal é preferível (cf. “o tentador” em 4,3; 1Ts 3,5) e restitui a situação dramática da tentação, o qual se perde hoje pelo uso da propaganda publicitária que associa a palavra “tentação” à uma coisa desejável de consumo.

Em Mt, estes dois últimos pedidos reduzem-se num só. A última prece também está incluída de certo modo na segunda: quando vier o reino de Deus em plenitude, o mal (maligno) desaparece (cf. Lc 10,18; Ap 12,7-11; 20,1; 21,3-4).

De fato, se vós perdoardes aos homens as faltas que eles cometeram, vosso Pai que está nos céus também vos perdoará. Mas, se vós não perdoardes aos homens, vosso Pai também não perdoará as faltas que vós cometestes (vv. 14-15).

Depois das palavras da oração, Mt repete a importância do perdão (citando Mc 11,25; cf. Mt 18). Assim ele volta ao estilo e a simetria das recomendações anteriores sobre esmola, oração e em seguida sobre o jejum (“se vós…, vosso Pai que está nos céus…”).

O Pai-Nosso é chamado “o evangelho dentro do evangelho” porque está no centro do sermão da montanha e resume o ensino de Jesus em forma de oração. A Bíblia nos ensina a ter fé, ou seja, responder à Palavra de Deus na ação e na contemplação. Os pedidos do Pai Nosso lembram também a experiência de Israel no processo de sua libertação, provações no deserto, o maná cotidiano, a vontade de Deus promulgada como lei, a santidade do nome (Yhwh, Javé) revelado a Moises, e o reinado de Deus pela aliança na terra prometida e entregue.

O Pai-Nosso não é só uma oração cristã, é uma oração na espiritualidade judaica. Não é nada nesses pedidos que contrarie um judeu hoje, porque não fala que Jesus é o Messias. Portanto, nós cristãos podemos rezá-la, não só os católicos, protestantes, ortodoxos juntos, mas juntos também com os judeus, nossos irmãos mais velhos na fé (cf. Vaticano II, NA 4).

O site da CNBB comenta: A eficácia da oração não é determinada pela quantidade de palavras nela presentes, pelo seu volume ou pela sua visibilidade, mas antes de tudo pela capacidade de estabelecer um relacionamento sério, profundo e filial com Deus. Quem fala muito, grita e fica repetindo palavras é pagão, que não é capaz de reconhecer a proximidade de Deus e ter uma intimidade de vida com ele. A oração também deve ter um vínculo muito profundo com o próprio desejo de conversão e de busca de vida nova, de modo que ela não seja discursiva, mas existencial e o falar com Deus signifique estabelecer um compromisso de vida com ele e para ele.

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