17 de maio de 2018, quinta-feira: Tem confiança. Assim como tu deste testemunho de mim em Jerusalém, é preciso que tu sejas também minha testemunha em Roma

Leitura: At 22,30; 23,6-11

A leitura de hoje nos apresenta Paulo preso pelo tribuno romano por causa do tumulto que sua chegada causou no templo de Jerusalém (cf. 21,17-22,23). Quando o tribuno mandou torturá-lo (interrogar sob açoites) para saber o motivo do tumulto, Paulo se apresentou como cidadão romano. Então não foi acoitado e colocado em custodia mais leve (vv. 24-29).

Depois desta tensão, o narrador nos oferece uma cena que parece bastante inverossímil, como drama que termina em comedia para o leitor.

A Bíblia do Peregrino (pag. 2687s) comenta: Um conselho judeu, submisso ao comandante romano que dá a ordem de comparecimento, apresenta o suposto réu, assiste vigiando ao processo. O sumo sacerdote age contra a lei, sem averiguar nada. Um conselho dividido por dimensões doutrinais graves que se deixa empurrar para elas. Na frente, um Paulo profético diante de seu juiz, astuto com os membros que se diverte em incitá-los mutuamente. Diverte-se também o narrador olhando de fora as claras divisões judaicas?

Querendo saber com certeza por que Paulo estava sendo acusado pelos judeus, o tribuno soltou-o e mandou reunir os chefes dos sacerdotes e todo o conselho dos anciãos. Depois fez trazer Paulo e colocou-o diante deles (22,30).

O sinédrio foi presidido por Ananias (23,2), filho de Nebedeu, nomeado sumo sacerdote cerca do ano 47; ele seria preso, enviado a Roma e destituído; depois recuperado as boas graças, em 66, no começo da guerra judaica, ele seria assassinado dentro de um esgoto pelos judeus.

No tempo dos acontecimentos (cf. 5,21; 6,12; Lc 22,66p), o Grande Conselho (sinédrio) se compunham de sacerdotes, em sua maioria do conservador partido “saduceu”, de letrados, na maioria do partido “farisaico” e de membros da aristocracia civil (“anciãos”).

Segundo o anúncio de Jesus aos discípulos (Mc 13,9-10p; Lc 21,12), Paulo vai comparecer diante dos “sinédrios” (At 22,30-23,10), dos ”governadores” (Félix, cap. 24), e dos “reis” (Agripa, caps. 25-26).

O texto da nossa liturgia salta os vv. 22,1-5. Não está claro se trata-se de um interrogatório conduzido pelo comandante ou de um processo conduzido pelo conselho. Não há verdadeiro dialogo nem testemunhas, nem sentença. Diríamos que também a autoridade romana olha de fora, atenta apenas a manter a ordem num povo dominado.

Sabendo que uma parte dos presentes eram saduceus e a outra parte eram fariseus, Paulo exclamou no conselho dos anciãos: “Irmãos, eu sou fariseu e filho de fariseus. Estou sendo julgado por causa da nossa esperança na ressurreição dos mortos.” Apenas falou isso, armou-se um conflito entre fariseus e saduceus e a assembleia se dividiu. Com efeito, os saduceus dizem que não há ressurreição, nem anjo, nem espírito, enquanto os fariseus sustentam uma coisa e outra (23,6-8).

Quando Lucas escreveu os At (por volta do ano 85), só o grupo farisaico ainda sobrevivia da Guerra Judaica (66-70) e conseguia organizar-se para garantir a continuidade. Lucas pode recordar neste ponto a discussão de Jesus no templo, pouco antes da paixão: com os fariseus sobre sua autoridade, com os saduceus sobre a ressurreição (Lc 20,27-40p).

A descrição das crenças dos saduceus está simplificada. É certo que não admitiam a ressurreição, porque não a encontravam nos livros da lei de Moisés (Torá ou Pentateuco), ou seja, nos primeiros cinco livros da Bíblia, os únicos que os saduceus consideravam sagrados. Nisso eram mais tradicionais que os fariseus que aceitavam também os profetas e escritos sapiências onde se desenvolveu o conceito da ressurreição.

A doutrina da ressurreição (cf. Ez 37,1-14; Dn 12,2s; 2Mc 7,9) e a dos anjos (cf. Tb 5,4 etc.) se firmaram no judaísmo em data relativamente recente. Conforme este texto, os saduceus teriam rejeitado tanto a segunda (a invocação dos anjos; mas admitiam a existência do “anjo de Javé” em Gn 16,7; 22,11; Ex 3,2 etc.) como a primeira (negavam mesmo a retribuição no além). Quanto a esses dois pontos, Paulo encontra aliados nos fariseus (cf. 4,1s; 24,15). Ele mesmo era fariseu antes da sua conversão (cf. 5,34; 22,3; Fl 3,5).

A Bíblia do Peregrino (p. 2688) comenta: Na ótica de Paulo, a ressurreição dos mortos e a de Jesus estão vinculadas inseparavelmente (1Cor 15). Os saduceus não admitem nenhuma, os fariseus não admitem a de Jesus. Colocada a questão com essa amplitude, a afirmação de Paulo é verdadeira e profunda: seu juízo versa sobre a ressurreição e ele é uma testemunha da vida. Ao rejeitar Jesus glorificado, a questão vital se reduz a discussão de partidos. Que discutam: Paulo não entra em discussão, embora alguns fariseus pretendam usar seu testemunho como argumento para discutir, não para crer.

Houve, então, uma enorme gritaria. Alguns doutores da Lei, do partido dos fariseus, levantaram-se e começaram a protestar, dizendo: “Não encontramos nenhum mal neste homem. E se um espírito ou anjo tivesse falado com ele?” (v. 9).

É a segunda intervenção dos fariseus (cf. 5,34) em favor de um cristão. A hipótese “espírito ou anjo” parece querer explicar a aparição no caminho de Damasco (9,4s). Havia uns fariseus (como Saulo-Paulo) que se tornaram cristãos (15,5), mas também um grupo considerável de sacerdotes tinha abraçado a fé (6,7). Uns doutores fariseus fazem uma declaração de inocência, como a de Jesus pelos romanos (Lc 23,4.14.47).

E o conflito crescia cada vez mais. Receando que Paulo fosse despedaçado por eles, o comandante ordenou que os soldados descessem e o tirassem do meio deles, levando-o de novo para o quartel (v. 10).

Outra vez é o romano quem salva a vida de Paulo (cf. 21,31-36; cf. 18,12-17; 19,35-40). Talvez por isso, Paulo defende com lealdade a autoridade romana (Rm 13,1-7; cf. 1Tm 2,1s; Tt 3,1).

Na noite seguinte, o Senhor aproximou-se de Paulo e lhe disse: “Tem confiança. Assim como tu deste testemunho de mim em Jerusalém, é preciso que tu sejas também minha testemunha em Roma” (v. 11).

Já em 19,21, na primeira estadia em Éfeso, Paulo manifestou seu desejo de ver Roma (depois de ter passado por Jerusalém). Agora o Senhor (Jesus, cf. 1,8) confirma esta idéia numa visão ou audição noturna (cf. 16,9; 18,9s). O autor dos Atos quer mostrar que a evangelização é guiada por Deus, Jesus e o Espírito. A palavra do Senhor dá certeza e força a Paulo, pela “necessidade” (“é preciso”) do desígnio divino (Lc 2,49; 4,43; 19,5; 9,22; 24,26.46; At 1,21; 27,24). Esse desígnio abrange Jerusalém e Roma num magnífico arco.

Antes em 22,17-21, no seu discurso diante dos judeus amotinados, Paulo narrou uma visão do Senhor num êxtase (do qual não temos outra notícia, talvez 2Cor 12,1-4): No templo de Jerusalém após sua conversão, o Senhor lhe disse: “Vai, porque é para os gentios, para longe que eu quero enviar-te” (22,21).

A meta da evangelização são os confins do mundo (1,8; cf. Mc 13,10; Mt 28,19; Lc 24,17s), o livro dos Atos termina em Roma, que será a nova capital da religião cristã e de onde o evangelho se difundirá por todo mundo. Mas isso, o autor dos Atos não sabe ainda, talvez o pressinta.

 

Evangelho: Jo 17,20-26

Continuamos ouvindo a chamada “oração sacerdotal” de Jesus antes de sair da última ceia. Jesus presta conta ao Pai e intercede por seus discípulos e pelos futuros cristãos (cf. v. 20). Este texto é propício na Semana da Oração pela Unidade dos Cristãos porque demonstra que já Jesus desejava e rezava pela unidade dos nele acreditam.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2032) comenta: Jesus, por fim, ora (vv. 20-26) pela Igreja dos fieis congregados pelo testemunho dos apóstolos (3,11; 15,27; cf. Rm 1,1), a fim de que a sua unidade suscite a fé na missão de Jesus: cf. 1Jo 1,1-3; 2,24.

Eu não te rogo somente por eles, mas também por aqueles que vão crer em mim pela sua palavra, para que todos sejam um como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, e para que eles estejam em nós, a fim de que o mundo creia que tu me enviaste. Eu dei-lhes a glória que tu me deste, para que eles sejam um, como nós somos um: eu neles e tu em mim, para que assim eles cheguem à unidade perfeita e o mundo reconheça que tu me enviaste e os amaste, como me amaste a mim (vv. 21-23).

Jesus não só intercede pelos apóstolos que estão com medo e se dispersarão quando ele for preso (16,32), mas pelas próximas gerações, pelos leitores de então e de hoje, “por aqueles que vão crer em mim pela sua palavra” (e que serão bem-aventuradas, se crerem na Palavra sem terem visto, cf. 20,29). Como Jesus, eles são enviados para levar ao mundo a verdade de Deus (cf. vv. 17-19) e constituirão, no tempo e no espaço, a comunidade dos crentes, a Igreja (cf. 4,35-42; 10,16; 11,52; 12,20,32; 17,2).

A Bíblia do Peregrino (p. 2607s) comenta: A unidade em Jo procede de Deus, é Jesus que a cria comunicando a glória do Pai; é comunicação de vida partilhada com Deus e numa comunidade. Ou seja, não é fruto de agregação ou de “contrato social”. A unidade se deve “manter” dentro do mundo, frente aos perigos internos e externos. Os At e algumas cartas testemunham as tensões graves entre comunidades e dentro de uma comunidade. A unidade tem que ser visível como reflexo ou irradiação da unidade transcendente.

Todos os crentes devem entrar na mesma unidade que une o Pai e o Filho. Mas esta união tem uma finalidade não só para dentro (amor mútuo, alegria,…), mas para fora: “a fim de que o mundo creia que tu me enviaste” (cf. 13,35).

Quatro vezes, Jesus pede aqui pela unidade dos cristãos (entre si e com Deus) e duas vezes com a esperança de que, através desta unidade cristã, o mundo chegue ainda a crer e reconhecer que Jesus é o enviado de Deus (assim o mundo se possa salvar ainda depois da morte de Jesus; cf. 3,16s).

Primeiro Jesus roga (vv. 20s), depois se justifica (vv. 22s; cf. vv. 4.6.14). Jesus pede pela união dos cristãos entre si (cf. 13,34s; 15,12-17). Modelo dessa união é a unidade do Pai e do Filho (cf. 10,30.38; 14,10). Não se deve pensar em uniformidade: a união divina não nega as diferenças, mas as une. Também no nível das Igrejas, certo pluralismo pode permanecer. Mas no amor, os que são diferentes se reconhecem nos outros, em solidariedade mútua. Mas este amor, em Jo, vai até ao extremo de dar a própria vida (13,1; 15,13).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2084) comenta: Aderindo a Jesus, os crentes participam da comunhão de amor que une o Pai com o Filho (5,19-20; 10,15.30; 1Jo 1,3); eles estão por conseguinte unidos entre si, de modo a se tornarem para o mundo o sinal por excelência, tanto da intervenção escatológica de Deus, como da autenticidade da missão de Jesus.

Se Jesus colocou os discípulos no seu lugar da missão e lhes deu a palavra de Deus (vv. 8.14), também deu sua glória que tinha durante sua passagem na terra (1,14; 2,11; 11,4). Eles estão envolvidos nessa mesma glória (vv. 4s; 11,4; 13,31s).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2084) comenta: A glória que o Cristo obtém do Pai para além da cruz (vv. 1-5) é a manifestação aos homens da sua comunhão com o Pai. Os fiéis que a percebem são eles mesmos associados a ela e se tornam, pro sua vez, manifestação da glória de Cristo; isto se opera concretamente pela unidade que realizam, amando-se uns aos outros.

Na “unidade perfeita” do Pai e do Filho, a glória de Deus se manifesta. A unidade dos cristãos (com Deus e entre si) reflete esta glória ao mundo e os mostra como amados por Deus. “Deus é amor” (1Jo 4,8,16), ama seu Filho e ama os que estão unidos a este Filho. Assim os discípulos participam da glória divina e do amor que une o Pai e o Filho “já antes da fundação do universo” (v. 24; cf. v. 5).

Pai, aqueles que me deste, quero que estejam comigo onde eu estiver, para que eles contemplem a minha glória, glória que tu me deste porque me amaste antes da fundação do universo (v. 24).

A quinta prece pede a união escatológica dos seus, „aqueles que me deste“, num certo lugar “onde eu estiver”. Não fala da aparição do ressuscitado aos apóstolos, mas de um lugar escatológico, para onde ele voltou (na perspectiva do leitor) às “moradas do Pai” (14,2s) onde Jesus já estava desde o início (1,1s).

Se os discípulos já estão na terra vivendo no amor e na comunhão do Pai e no Filho (v. 21), o estarão também no fim (14,2s; 16,16.22s; cf. 12,26). Participarão da glória de Jesus e vão vê-lo como Palavra eterna (logos, cf. 1,14). O pedido de Jesus pela sua glorificação (v. 5) não era egoísta, mas visava, como a toda a sua atuação, a participação dos seus na vida divina.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2084) comenta: O discípulo compartilha a condição do Senhor, a sua obediência na humilhação (13,33.36) e sua exaltação na glória  (12,26; 14,3). A contemplação da glória do Cristo (cf. 2Cor 3,18-4,6) é também conhecimento (na participação) do amor que une o Pai e o Filho: aí se encontram o fundamento e o termo de qualquer existência humana.

Alarga-se a visão até a consumação final, quando será fixado o destino definitivo. De um lado estará o mundo que não o reconheceu, do outro os que creram nele. A “vontade” última de Jesus é que eles, como indivíduos e como comunidade, estejam ou vivam com ele (2Cor 5,8; Fl 1,23; Lc 24,43), contemplem sua glória (que Moises não pôde contemplar, Ex 33,19-20). Entretanto, Jesus embora glorificado, ficará com eles ou neles, e o amor do Pai ao Filho lhes será comunicado.

Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu te conheci, e estes também conheceram que tu me enviaste. Eu lhes fiz conhecer o teu nome, e o tornarei conhecido ainda mais, para que o amor com que me amaste esteja neles, e eu mesmo esteja neles” (vv. 25-26).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2084) comenta: Aplicado a Deus, o termo “justo” exprime a retidão e a integridade do seu julgamento (Sl 119,137; Dt 32,4); ele pode também sublinha a sua fidelidade e misericórdia (Sl 7,18; 9,5; 96,13; 116,5; 129.4; 145,17). É provavelmente este aspecto que se encontra aqui (cf. Rm 3,26; Ap 16,5).

O fim desta oração sacerdotal é uma retrospectiva à obra de Jesus (cf. vv. 6-8). O mundo não conheceu Jesus (1,10), portanto, “não reconheceu” a Deus. O mundo permanece na ignorância (cf. 5,37; 8,19.27.55) da qual o enviado de Deus podia ter libertado (3,11.32; 4,22.24; 6,46; 8,55). Somente os discípulos chegaram ao conhecimento de Deus (cf. 10,30.38; 14,7ss; 20,28), porque “conheceram que tu me enviaste” (cf. 16,30). Jesus revelou-lhes a realidade divina, o nome de Deus (cf. vv. 6.11), e continuará fazendo isso “ainda mais”, pelo Espírito Santo (cf. 14,26; 16,13ss).

Com a frase final “para que o amor com que me amaste esteja neles, e eu mesmo esteja neles” não só termina a oração, mas leva ao ponto de partida (no início da ceia em 13,1) e lembra todo fio do discurso de despedida (v. 23; 14,20s; 15,4.9; 16,27).

O site da CNBB comenta o evangelho de hoje: Jesus nos pede para viver a unidade de tal modo que possamos testemunhar a unidade da Trindade. Esta vivência da unidade não significa uma uniformidade, mas que todos vivamos de acordo com as nossas condições e de diferentes formas os mesmos valores. Assim, encontramos na Igreja diferentes formas de espiritualidade e de ação evangelizadora totalmente diferentes entre si, mas essas diferenças não ferem a unidade dos cristãos porque são formas diferentes e não essências, são formas diferentes de viver a mesma fé e participar no mesmo projeto anunciado por Jesus.

A Bíblia do Peregrino (p. 2608) resume o cap. 17: Olhando agora o conjunto do capitulo, observamos o triângulo do Pai, Jesus e os discípulos com uma série de relações simétricas, assimétricas ou contínuas. Primeiro, a relação de Jesus com o Pai: Mútua glorificação (vv. 1-4), tudo em comum (v. 10). Segundo, o Filho recebe do Pai: mútua glorificação (vv1-4), tudo em comum (v. 10). Segundo o Filho recebe do Pai e transmite aos discípulos: as palavras (vv. 8.14), o nome (vv. 6.11.26), a missão (v. 18), a glória (v. 22); a relação do Filho com o Pai se reproduz na deles com Jesus ou entre eles (vv. 21.22). Terceiro, o Pai os trata como trata o Filho: amor (vv. 24.26), como o Filho os trata, guarda (vv. 11,15), santifica (vv. 17.19). Quarto, eles são como Jesus: não são do mundo (vv. 14,16); como tratam a Jesus, assim também ao Pai (conhecem, creem, v. 8). Acrescentando o que foi dito do Espírito nos capítulos precedentes, encontra-se aqui material para elaborar uma teologia trinitária.

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