17 de setembro de 2017 – 24º Domingo Ano A

 

1ª Leitura: Eclo 27,33-28,9 (27,3-28,7)

A 1ª leitura foi escolhida em vista do evangelho de hoje sobre o perdão que queremos de Deus, mas devemos também dar também aos nossos devedores (Mt 18,21-35).

“Eclesiástico” é um livro sapiencial que falta na Bíblia dos protestantes, porque? Foi escrito em hebraico entre 190-164 a.C. por Jesus Ben Sirac (50,27; 51,30), mas chegou até nós graças à tradução grega (chamada “Sirácida”) feita pelo seu neto em 132 a.C., que escreveu o prólogo deste livro.

O nome provém do uso oficial que a Igreja (em grego e latim Ecclésia) faz desse livro, em contraposição à Sinagoga judaica que o rejeitou quando formou seu cânone (regra, norma) dos livros sagrados em 90 d.C.  Como consequência, o texto original se perdeu, mas partes (dois terços) do texto hebraico foram encontrados, no Egito em 1894 e em Israel em 1964. Na Bíblia protestante falta Eclo, porque no séc. 16 Martinho Lutero aceitou como Antigo Testamento (AT) apenas a Bíblia Hebraica dos judeus.

Não devemos confundir Eclo com Ecl, ou seja, o livro Eclesiastes cujo texto inteiro é hebraico e assim aceito por todos.

No Novo Comentário Bíblico São Jerônimo (p. 981), Alexander A. Di Lella comenta: Um livro deuterocanônico, Eclo, embora escrito em hebraico e publicado em Jerusalém antes de Daniel (ca. de 165 a.C.), não foi incluído na cânone judaico provavelmente porque os fariseus que definiram este cânon perto do fim do sec. I d.C. discordaram em algumas teologias de Ben Sirac (por exemplo, o fato de negar retribuir aqui por diante) … A igreja primitiva … considerou Eclesiástico canônico. Há muitas alusões ao livro no NT, especialmente em Tiago.

Nossa leitura de hoje é um comentário ao mandamento do amor ao próximo (Lv 19,17s). A Bíblia do Peregrino (p. 1634) comenta: Os primeiros versos dão a motivação suprema: Deus se vinga do vingativo e perdoa quem perdoa; depois, a motivação desenvolve o aspecto humano da solidariedade; finalmente, o fim do homem e os mandamentos da aliança são o motivo.

O rancor e a raiva são coisas detestáveis, até o pecador procura dominá-las. Quem se vingar encontrará a vingança do Senhor, que pedirá severas conta dos seus pecados (27,33/30; 28,1).

Há diferenças na numeração dos versículos por causa das traduções em grego e latim: Eclo 27,30-28,7 é o mesmo texto da citação litúrgica que segue uma versão em latim: 27,33-28,9. Nesta leitura temos um avanço na maneira pela qual as pessoas lidavam antigamente com ofensas. Quem tem um relacionamento mais íntimo com o Senhor, deve cultivar um espírito de misericórdia, já que a proximidade com Deus revela tanto as faltas humanas quanto o perdão divino. Somente as pessoas afastadas de Deus nutrem a ira, o desejo de vingança no coração. O mesmo ensinamento se encontra também na literatura sapiencial (Pr 20,22; 25,21).

O autor viveu nas vésperas da revolta dos macabeus contra o helenismo, a cultura grega que se impunha depois das conquistas de Alexandre Magno no Oriente Médio. Ben Sirac era nativo de Jerusalém (50,27 grego) onde administrou uma academia para jovens judeus (51,23-30). Seu ensino vincula a sabedoria/sensatez com o respeito/reverência de Deus. A sabedoria dos velhos é melhor do que a raiva dos jovens insensatos (cf. os conselhos em 1Rs 12,1-11).

Perdoa a injustiça cometida por teu próximo: assim, quando orares, teus pecados serão perdoados. Se alguém guarda raiva contra o outro, como poderá pedir a Deus a cura? (vv.2-3).

Todos estes versos (e o evangelho de hoje) são como comentário ao pedido no Pai-Nosso: “Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem tem nos têm ofendido” (Mt 6,14; Lc 11,4; cf. Mc 11,25; Lc 6,37). O mesmo ensinamento se encontra na lei (Lv 19,17s) e também na literatura sapiencial (Pr 20,22; 25,21).

“Pedir a Deus a cura”, trata-se da cura espiritual pelo perdão dos pecados. A elevação moral desta doutrina prepara para as exigências no NT.

Se não tem compaixão do seu semelhante, como poderá pedir perdão dos seus pecados? Se ele, que é um mortal, guarda rancor, quem é que vai alcançar perdão para os seus pecados? (vv. 4-5)

“Se ele, que é um mortal (lit.: apenas carne) … ”, cf. 17,31; Gn 6,3.

Lembra-te do teu fim e deixa de odiar; pensa na destruição e na morte, e persevera nos mandamentos (vv. 6-7/6).

“Pensar na destruição e na morte” (v. 7) não significa “pensar num castigo eterno” (Ben Sirac ainda não tem a crença na ressurreição), mas conscientizar-se de que a morte iguala a todos (cf. Sl 49). Todos morreremos, isso significa que ninguém é melhor do que o outro e todos nós somos muito mais devedores de Deus do que de uns para os outros.

Pensa nos mandamentos, e não guardes rancor ao teu próximo. Pensa na aliança do Altíssimo, e não leves em conta a falta alheia! (vv. 8-9/7).

O autor comenta os “mandamentos” de Lv 19,17s (amor ao próximo, cf. o resumo da lei por Jesus em Mc 12,31p), que é parte da “aliança do Altíssimo”, ou seja, da aliança do Sinai (cf. também no código da aliança: Ex 23,4s).

É um aspecto de retribuição divina à conduta humana (cf. a respeito dos pais: 3,1-16). Quem perdoa as injustiças do próximo, também recebe o perdão de Deus. Esta máxima aparece no comentário judaico Talmud, que reúne leis e tradições judaicas.

2ª Leitura – Rm 14,7-9

Quer vivamos, quer morramos,
pertencemos ao Senhor.

Leitura da Carta de São Paulo aos Romanos 14,7-9

Irmãos:
7Ninguém dentre nós vive para si mesmo
ou morre para si mesmo.
8Se estamos vivos, é para o Senhor que vivemos;
se morremos, é para o Senhor que morremos.
Portanto, vivos ou mortos, pertencemos ao Senhor.
9Cristo morreu e ressuscitou exatamente para isto,
para ser o Senhor dos mortos e dos vivos.
Palavra do Senhor.

com os outros.

Na 2ª leitura (Rm 14,7-9) Paulo quer que os fortes na fé não julguem com dureza os mais fracos que observem certas práticas (judaicas ou pagãs) de jejum. O fato de que fortes e fracos pertencem igualmente ao Senhor (v.4) é mais importante que as opiniões éticas particulares.

A imagem do servo e do patrão (senhor, cf.v.4) leva Paulo a lembrar aqui que foi em sua ressurreição dentre os mortos que o Cristo se tornou Senhor glorioso diante do qual todo joelho se deve dobrar (Fl 2,10-11). “Senhor” é aqui título de Cristo, segundo a confissão cristã primitiva; está ligado à ressurreição (Fl 2,6-11). Só Senhor dos vivos? (Mt 22,32); também Senhor dos mortos, para vida. A morte e assumida na experiência cristã, graças ao fato de Jesus ter experimentado a morte e tê-la vencido ressuscitando.

A respeito do evangelho de hoje esta leitura sublinha que estamos endividados com o Senhor: Não compramos a nossa vida no mercado, mas foi Ele que nos criou e nos libertou, nos resgatou (da escravidão, do pecado, da morte) por um preço muito alto (o sangue do Filho; At 20,28; Hb 9,12; 1 Pd 1,18-19; Cl 2,13-14: Ap 5,9), portanto não pertencemos a nós mesmos, mas ao Senhor (1 Cor 6,19-20; 7,23; Rm 3,24).

31ª semana 5ª feira impar

Leitura: Rm 14,7-12

Não se esperava que numa carta tão maciça em doutrina de fé (caps. 1-11), ou depois de uma exortação tão dispersa (caps. 12-13), Paulo entrasse na discussão de um problema particular e aparentemente secundário como tabus alimentares e detalhes de calendário. Mas nisso, ele nos ensina como tratar as nossas diferenças na comunidade.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2196) comenta: Neste cap., Paulo encara o caso de certos cristãos que ainda não tiraram todas as consequências da sua conversão ao evangelho. Embora tenham abraçado a fé, eles se julgam sempre obrigados a cumprir as prescrições legais do judaísmo (cf. Cl 2,16-23; 1Tm 4,3-5; Tt 1,15). Como fez em 1Cor 8,7-14; 10,14-33, a respeito das carnes sacrificadas aos ídolos (deuses pagãos), Paulo pede, de um lado, que cada um aja conforme suas convicções pessoais (vv. 5-6) e, por outro, que fortes e fracos na fé evitem julgarem-se mutuamente (cf. v. 10).

Também nessas questões é o amor fraterno (cf. 12,10; 13,8-10) que permite a todos, seja qual for o seu grau de adiantamento da fé, viver em paz e unidade.

Ninguém dentre nós vive para si mesmo ou morre para si mesmo (v. 7).

Para as sociedades antigas não havia dúvidas sobre a pertença de cada um pertencia a uma família, um clã, uma classe social, uma religião, etc. A modernidade, porém, enfatizou a autonomia do indivíduo e com isso sua mobilidade social ou falta de compromisso. O Concílio Vaticano reconhece a liberdade do indivíduo e sua consciência, mas também sua obrigação social com o bem comum (cf. DH, GS). Hoje, mais do que nunca, somos conectados um ao outro, seja na informática ou na ecologia em mútua dependência.

Se estamos vivos, é para o Senhor que vivemos; se morremos, é para o Senhor que morremos. Portanto, vivos ou mortos, pertencemos ao Senhor. Cristo morreu e ressuscitou exatamente para isto, para ser o Senhor dos mortos e dos vivos (vv. 8-9).

O fato de que fortes e fracos pertencem ao Senhor é mais importante que as opiniões éticas divergentes. Segundo a confissão cristã primitiva (ligada à ressurreição, cf. Fl 2,6-11; At 2,36), “Senhor” é aqui título de Cristo. Só Senhor dos vivos (Mc 12,27p; cf. Lc 20,38)? Ele é também Senhor dos mortos, para a vida. A morte é assumida na experiência cristã, porque Jesus tem experimentado a morte e tê-la vencido ressuscitando. “Ele morreu por todos a fim de que aqueles que vivem, não vivem mais para si, mas para aquele que morreu e ressuscitou por eles” (2Cor 5,15).

A pertença a Cristo é um dos traços mais importantes da vida cristã. O cristão se une profundamente ao amor de Cristo. Para expressar essa verdade, Paulo se vale da realidade social presente no seu tempo: a escravidão. O servo era propriedade do seu senhor. Nós somos “servos” de Deus, mas no sentido positivo (cf. 6,16-23). Somos seus filhos, somos e temos parte de sua propriedade (cf. 8,14-17). Isso deve se manifestar no agir. Em que sentido? Agimos livremente, segundo a nossa consciência, mas construindo as nossas ações somente para a glória de Deus. Se pertencermos ao Senhor, o nosso viver se transfigura, porque agiremos de acordo com as regras do amor. Já que estamos vivendo, vivamos para o Senhor (cf. 6,10; Gl 2,19s).

E tu, por que julgas o teu irmão? Ou, mesmo, por que desprezas o teu irmão? Pois é diante do tribunal de Deus que todos compareceremos.

Recomenda-se acolher, nunca desprezar ou julgar. O forte e o fraco são ambos, servos do Senhor (cf. v. 4) a quem é reservado o julgamento final (12,19). Ele vai julgar a nós todos com justiça e não com preconceitos (2,1-2; 1Cor 4,5; At 10,42). Nos evangelhos, Jesus também adverte de não julgar nem desprezar o outro (cf. Mt 7,11-5; Lc 6,37s; 18,9-14). Todos vão “comparecer” diante de Deus depois da morte (2Cor 5,10; Hb 9,27; At 17,31). Cristo ressuscitado, Senhor dos vivos e dos mortos, compartilha com o Pai a prerrogativa do juízo final (cf. 2,16; 12,19; 2Cor 5,10; Mt 25,31-46; At 17,31).

Com efeito, está escrito: “Por minha vida, diz o Senhor, todo joelho se dobrará diante de mim e toda língua glorificará a Deus”. Assim, cada um de nós prestará contas de si mesmo a Deus (vv. 11-12).

A imagem do servo e do patrão (senhor, v. 4) leva Paulo a lembrar aqui que foi em sua ressurreição dentre os mortos (v. 9) que Cristo se tornou Senhor glorioso “diante do qual todo joelho se deve dobrar”. Paulo citou a mesma frase de Is 45,23 já no hino de Fl 2,10-11.

Temos aqui a responsabilidade individual, “cada um de nós” (cf. Ez 18; cf. Mt 25,14-30p) em vista do bem comum de todos e do amor fraterno na comunidade.

Evangelho – Mt 18,21-35

Não te digo perdoar até sete vezes,
mas até setenta vezes sete.

+ Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 18,21-35

Naquele tempo:
21Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou:
‘Senhor, quantas vezes devo perdoar,
se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?’
22Jesus respondeu:
‘Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete.
23Porque o Reino dos Céus é como um rei
que resolveu acertar as contas com seus empregados.
24Quando começou o acerto,
trouxeram-lhe um que lhe devia uma enorme fortuna.
25Como o empregado não tivesse com que pagar,
o patrão mandou que fosse vendido como escravo,
junto com a mulher e os filhos e tudo o que possuía,
para que pagasse a dívida.
26O empregado, porém, caíu aos pés do patrão,
e, prostrado, suplicava:
`Dá-me um prazo! e eu te pagarei tudo’.
27Diante disso, o patrão teve compaixão,
soltou o empregado e perdoou-lhe a dívida.
28Ao sair dali,
aquele empregado encontrou um dos seus companheiros
que lhe devia apenas cem moedas.
Ele o agarrou e começou a sufocá-lo, dizendo:
`Paga o que me deves’.
29O companheiro, caindo aos seus pés, suplicava:
`Dá-me um prazo! e eu te pagarei’.
30Mas o empregado não quis saber disso.
Saiu e mandou jogá-lo na prisão,
até que pagasse o que devia.
31Vendo o que havia acontecido,
os outros empregados ficaram muito tristes,
procuraram o patrão e lhe contaram tudo.
32Então o patrão mandou chamá-lo e lhe disse:
`Empregado perverso, eu te perdoei toda a tua dívida,
porque tu me suplicaste.
33Não devias tu também, ter compaixão do teu companheiro,
como eu tive compaixão de ti?’
34O patrão indignou-se
e mandou entregar aquele empregado aos torturadores,
até que pagasse toda a sua dívida.
35É assim que o meu Pai que está nos céus fará convosco,
se cada um não perdoar de coração ao seu irmão.’
Palavra da Salvação.

24ª DOMINGO COMUM (ANO A)

Eclo  27,30-28,7 (=27,33-28,9); Rm 14,7-9; Mt 18,21-35

O evangelho apresenta o final do quarto discurso no Evangelho de Mt (em cap. 19 Mt segue Mc 10, mas continuando a temática da vida em comunidade). O tema do perdão é caro a Mt, como já vimos na ênfase que deu repetindo o quinto pedido do Pai-Nosso (6,9-15). Este pode-ser traduzido “perdoai-nos as nossas ofensas” (versão católica) ou “Perdoa-nos as nossas dívidas” (evangélica), ambos é possível (cf. Lc 11,4: “Perdoa-nos  os nossos pecados”). Veremos os dois significados neste evangelho de hoje:

No contexto da correção fraterna e do perdão pela Igreja (cf. evangelho do domingo passado), Pedro pergunta “Se meu irmão pecar contra me (me ofende), quantas vezes deve perdoar? Até sete vezes?” – Jesus responde com número simbólico (significa indefinidamente) “Não, setenta vezes sete!” Se observamos o texto de Gn 4,23-24, veremos que estão em jogo os mesmos números, só que no contexto da vingança: Por uma ferida, matarei um homem… Se a vingança de Caim valia por sete, a de Lamec vale por setenta e sete.” Este excesso de vingança será limitada pela lei de talião, documentada pelo código de Hamurábi (1750 a.C.) e também no Código da Aliança no Sinai: “Olho por olho, dente por dente,… ferida por ferida. (Ex 21,23-25). A espiral da violência, porém, continua aumentando se não tiver perdão. “Se todos seguissem a lei de talião, ao final todos estariam cegos e sem dentes.” Isso se verifica, olhando para os conflitos indetermináveis na Terra Santa até hoje. Jesus, porém, tem uma proposta radical, de não retribuir a ofensa: “Se alguém lhe dá um tapa na face direita, ofereça também a esquerda!” (Mt 5,39). Quando um guarda bateu em Jesus, ele não ofereceu a outra face, mas perguntou: “Se falei mal, mostre o que há de mal. Mas se falei bem, por que você bate em mim?” (Jo 18,23), Assim Jesus não retribui a violência, mas leva o conflito a outro nível, ao do argumento. Perdoar sempre não quer dizer passividade ou omissão diante do erro e da injustiça, mas sim não guardar mágoa ou rancor, tampouco sentimentos de vingança.

Depois Jesus explica o perdão com uma parábola que se compraz em contrastes extremos. Ofensa e dívida são dois símbolos que expressam a situação negativa do homem diante de Deus. Como no Pai-nosso, adota aqui a imagem da dívida, que permite quantificar a explicação.

“O Reino de Deus é semelhante a um rei que resolveu acertar as contas com seus empregados” (lit. “servos”). Nas narrativas bíblicas, esta palavra nem sempre designa escravos, mas muitas vezes, personagens importantes (1 Sm 8,14; 2 Rs 5,6; Mt 13,27; 25,14-30). “Um lhe devia uma enorme fortuna” (lit. “10.000 talentos”). Esta soma inimaginável (cerca de 20 toneladas de ouro!) deve fazer pensar que este servo se encontra numa situação sem saída: sua salvação só dependerá da compaixão (v.27) do seu senhor. Tal é a situação do homem diante de Deus (cf. v. 33). O relato não explica como o funcionário pôde endividar-se a tal ponto; imaginemos um governador de província corrupto. Este não se recusa a pagar, só pede paciência (Eclo 29,1-13); o patrão responde cheio de compaixão (talvez pense que o outro não poderá pagar), e perdoa. Já perdoado, deveria imitar, em escala reduzida, o exemplo do rei. Aquele companheiro que devia apenas 100 denários, pediu compaixão exatamente da mesma maneira: “caindo aos pés, suplicava: Dá me um prazo e eu te pagarei!”

100 denários é o salário de 100 dias de trabalho de diarista; 10.000 talentos (um talento= uns 35kg) em comparação são cem milhões de denários. O homem, destinatário da imensa misericórdia de Deus (Sl 86,5; 103,3-12), deve aprender a exercer sua pequena misericórdia com o próprio devedor (cf. Sl 112,4b.5a; Sb 12,18-19 e tantos textos que recomendam a piedade e a compaixão: Pr 14,21; 19,17; Sl 37,21.26 etc.).

Seguindo o exemplo de Deus e de Jesus, e assim como já faziam os israelitas entre si (Lv 19,18-19; Eclo 10,6; 27,20-28,7), os cristãos devem perdoar uns aos outros (Mt 5,39; 6,12p, cf. 7,2; 2Cor 2,7; Ef 4,32; Cl 3,13). No entanto, “o próximo” aplica-se a todos os homens (cf. Lc 10,29-37), compreendendo também aqueles aos quais é preciso pagar o mal com o bem (Mt 5,44-45; Rm 12,17-21; 1Ts 5,15; 1Pd 3,9; cf. Ex 21,25; Sl 5,11). Assim, o amor cobre uma multidão de pecados (Pr 10,12 citado por Tg 5,20; 1Pd 4,8).

 

Evangelho: Mt 18,21-19,1 par

Continuamos no quarto discurso de Jesus no evangelho de Mt que finaliza este sermão sobre a comunidade com uma parábola a partir de uma pergunta e traduz um pedido do Pai-nosso em narrativa.

Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” Jesus respondeu: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete (18,21-22)

Mt encontrou uma frase na fonte Q (coleção de palavras em comum com Lc) que recomenda o perdão “sete vezes num só dia” (Lc 17,4). Mt a coloca na boca de Pedro em forma de pergunta. “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” (v. 21). À pergunta matemática de Pedro, Jesus responde ao mesmo terreno saltando de um numero generoso a outro indefinido. “Não lhe digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (v. 22). Quer dizer, na comunidade de Jesus não existem limites para o perdão.

Este número, porém, lembra o canto da vingança ilimitada de Lamec, descendente de Caim: “Caim é vingado sete vezes, mas Lamec, setenta e sete vezes” (Gn 4,15.24). No Código de Hamurabi (1772 a.C.) e depois na Bíblia, a vingança foi limitada pela lei do talião: “(um) olho por (um) olho, (um) dente por (um) dente…” (Ex 21,23-25; Lv 24,19s; Dt 19,21). Perdão, porém, é o contrário da vingança. O que deve ser sem limites é a misericórdia e o perdão (cf. 5,38-42; Lc 23,34; At 7,60).

Seguindo o exemplo de Deus e de Jesus (Lc 15), os cristãos devem perdoar uns aos outros (5,39; 6,12p; cf. 7,2; 2Cor 2,7; Ef 4,32; Cl 3,13). Os israelitas já o faziam entre si (“com seu próximo”; cf. Lv 19,18-19; Ex 21,25). No contexto cristão, porém, “o próximo” aplica-se a todos os seres humanos compreendendo também aqueles aos quais é preciso pagar o mal com o bem (5,44-45; Rm 12,17-21; 1Ts 5,15; 1Pd 3,9; cf. Ex 21,25; Sl 5,11). Assim, o amor cobre uma multidão de pecados (Pr 10,12 citado por Tg 5,20; 1Pd 4,8).

Porque o Reino dos Céus é como um rei que resolveu acertar as contas com seus empregados. Quando começou o acerto, trouxeram-lhe um que lhe devia uma enorme fortuna (vv. 23-24).

É uma parábola sobre o reino, ou seja, sobre um rei que “resolveu acertar as contas”, símbolo também do juízo final (cf. 25,19). Ofensa e divida são dois símbolos que expressam a situação negativa do homem diante de Deus. Como na oração do Pai-nosso, adota-se aqui a imagem de “dívida” (pecado) que permite quantificar a explicação: “10.000 (dez mil) talentos” (traduzidos aqui apenas por “uma enorme fortuna”) são quase 174.000 kg (cento e setenta e quatro toneladas) de ouro! Uma quantia exorbitante, escolhida intencionalmente.

O relato não explica como o funcionário pôde endividar a tal ponto; podemos imaginar um governador de província corrupto, por ex. Quintílio Varo, o governador romano da Síria (entre 5 a.C. até 1 a.C.), dele se dizia: “Ele veio como homem pobre à uma província rica, e saiu como homem rico de uma província pobre”. De lá foi transferido para a fronteira norte do império e perdeu três legião inteiras numa batalha contra as tribos germânicas em 9 d.C.

Como o empregado não tivesse com que pagar, o patrão mandou que fosse vendido como escravo, junto com a mulher e os filhos e tudo o que possuía, para que pagasse a dívida. O empregado, porém, caiu aos pés do patrão, e, prostrado, suplicava: “Dá-me um prazo! e eu te pagarei tudo” (vv. 25-26).

Era comum vender-se (ou parte da família) como escravo para pagar uma dívida (Ex 22,2). O devedor não se recusa a pagar, só pede paciência (Eclo 29,1-13), mas pagar esta soma enorme dentro de um prazo razoável, não parece realista.

Diante disso, o patrão teve compaixão, soltou o empregado e perdoou-lhe a dívida (v. 27).

O patrão responde cheio de “compaixão” (talvez pense que o outro não poderá pagar) e perdoa. Já o perdoado, deveria imitar, em escala reduzida, o exemplo do rei, ou seja, a compaixão de Deus (cf. Ex 34,6). Mas não é assim que a história continua.

Ao sair dali, aquele empregado encontrou um dos seus companheiros que lhe devia apenas cem moedas. Ele o agarrou e começou a sufocá-lo, dizendo: “Paga o que me deves.” O companheiro, caindo aos seus pés, suplicava: “Dá-me um prazo! e eu te pagarei” (vv. 28-29).

Com a generosidade do perdão do patrão contrasta o comportamento mesquinho do empregado com seu colega. Cem moedas de prata (denários) é o salário de cem dias de trabalho (de um diarista), então equivale menos de 30 g (trinta gramas) de ouro. Pagar esta dívida num certo prazo é realista, sim. As mesmas palavras e o mesmo gesto do devedor (cf. v. 26), porém, não surtem o mesmo efeito do perdão do credor de antes (v. 27), ao contrário.

Mas o empregado não quis saber disso. Saiu e mandou jogá-lo na prisão, até que pagasse o que devia (v. 30).

Pagar a dívida através da prisão era prática comum (cf. 5,25s). Na Itália da Idade média, St.º Antônio conseguiu acabar com esta prática injusta em Pádua.

Vendo o que havia acontecido, os outros empregados ficaram muito tristes, procuraram o patrão e lhe contaram tudo. Então o patrão mandou chamá-lo e lhe disse: “Empregado perverso, eu te perdoei toda a tua dívida, porque tu me suplicaste. Não devias tu também, ter compaixão do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?” (vv. 31-33).

Enquanto na primeira parte da parábola surpreendeu a graça de Deus (o perdão generoso), na segunda parte destaca-se o julgamento. O empregado não agiu conforme a graça recebida, mas aplicou sem piedade o princípio da retribuição.

O patrão indignou-se e mandou entregar aquele empregado aos torturadores, até que pagasse toda a sua dívida (v. 34).

Agora se retribui a atitude cruel que o empregado demonstrou com seu colega. A prisão piorou ainda com a presença dos torturadores. Como em outras ocasiões de advertência, Mt destaca no final mais o lado negativo do juízo, a condenação e o castigo (cf. 3,7.10.12; 5,22.25s.29s; 7,19.23; 10,15.28; 11,22.24; 13,41s.49s; 18,8-9; 22,7.13; 23,33; 24-25), mas aqui fica claro, que Deus é imensamente misericordioso (cf. Ex 34,6-7), só quando o homem não demonstra misericórdia alguma, recebe o troco: será tratado como tratou o semelhante  (cf. 5,7; 6,12.14).

É assim que o meu Pai que está nos céus fará convosco, se cada um não perdoar de coração ao seu irmão” (v. 35).

O homem, destinatário da imensa misericórdia de Deus (Sl 86,5) deve aprender a exercer sua pequena misericórdia com o próximo devedor (cf. no Sl 112 a passagem do v. 4 ao v. 5; também a consequência que tira Sb 12,18s; há muitos textos que recomendam a piedade e a compaixão: Pr 14,21; 19,17; Sl 37,21.26 etc.).

Na comunidade de Jesus não existem limites para o perdão (setenta vezes sete). Ao entrar na comunidade (pelo batismo), cada pessoa (adulta) já recebeu do Pai um perdão imenso (dez mil talentos), sem falar que a vida já é um dom que ninguém pode pagar (Sl 49,8s). A vida na comunidade precisa, portanto, basear-se no amor e na misericórdia, compartilhando entre todos esse perdão que cada um recebeu.

Ao terminar estes discursos, Jesus deixou a Galileia e veio para o território da Judeia além do Jordão (19,1).

Ao indicar a mudança do local, Mt segue Mc 10,1. Jesus não voltará mais à Galileia antes da sua ressurreição (cf. 28,7.16). Já se encontra no caminho a Jerusalém (cf. 20,17) que passa por Judeia e pelo outro lado do Jordão (os judeus costumavam evitar o caminho mais curto pelo território da Samaria).

Com esta frase transitória (cf. 11,1; 13,53), Mt conclui mais um discurso, mas o tema da comunidade continua nas instruções do caps. 19-20 (sobre família, propriedade, trabalho, autoridade), seguindo o roteiro de Mc 10.

O site da CNBB comenta: Nós não temos como pagar a Deus para obtermos o perdão dos nossos pecados, de modo que merecemos a paga pelos mesmos que é a morte. Mas o amor misericordioso de Deus não permite que nenhum dos seus filhos e filhas seja entregue à morte, de modo que a verdadeira paga pelos nossos pecados foi a obediência de Jesus, amando-nos até o fim e, assim, apesar dos nossos pecados, temos a eterna aliança com ele. Desse modo, Deus nos dá o exemplo do verdadeiro perdão, nos ensinando que tudo devemos fazer para restaurar a unidade perdida por causa dos males que as pessoas comentem contra nós.

 

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