17 de Setembro de 2018, Segunda-feira: De fato, não é para comer a Ceia do Senhor que vos reunis em comum (v. 20). 

Leitura: 1Cor 11,17-26.33

Depois de se posicionar a respeito das carnes sacrificadas aos ídolos (cap. 8 e 10,14-22), Paulo critica a maneira como acontecem as assembleias litúrgicas em Corinto. Em 11,2-16 permite que mulheres profetizem nas assembleias, desde que cubram seus cabelos com um véu, conforme costume da época e do lugar (em 1Tm 2,11s, este direito é negado, provavelmente por outro autor posterior: as mulheres devem ficar em silêncio).

Nos vv. 17-34, Paulo orienta para a celebração da eucaristia, primeiramente enfrenta dois abusos dos coríntios (vv. 18-20.21-22) e oferece depois síntese densa do seu ensinamento (vv. 23-29).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1398) comenta: A ceia cristã compreendia uma refeição normal juntamente com a comunhão eucarística. Para as pessoas mais pobres, essa celebração era a oportunidade para saciar a fome. Mas o que ocorre em Corinto é que alguns, sobretudo mais abastados, se reúnem no seu canto mais separado e comem sua refeição. Dessa forma, não sobra nada para quem chega mais tarde. Paulo reprova os dois comportamentos; um, de criar divisões na hora da partilha; outro, o fato de cada qual comer a própria ceia. Nesse contexto, relembra a instituição da eucaristia, que é a memória da morte de Jesus como dom de vida para a humanidade. Esse relato da ceia é o mais antigo testemunho sobre eucaristia, escrito bem antes dos evangelhos (Mt 26,26-29 e paralelos).

No que tenho a dizer-vos, eu não vos louvo, pois vossas reuniões não têm sido para o vosso bem, mas para o mal. Com efeito, e em primeiro lugar, ouço dizer que, quando vos reunis em assembleia, têm surgido divisões entre vós. E, em parte, acredito. Na verdade, convém que haja até cisões entre vós, para que também se tornem bem conhecidos aqueles dentre vós que resistem à prova (vv. 17-19).

A Bíblia do Peregrino (p. 2756) comenta: Muitas vezes no AT se denuncia um culto invalido pela situação de injustiça dos ofertantes e participantes. Is 1,10-20 o declara “detestável”; Is 58 denuncia o jejum; Jr 7 a transformação no templo em “covil de ladrões”; Sl 50 propõem um discurso apaixonado do Senhor; Eclo 34,18-35,9 emprega as expressões violentas. De modo semelhante, a falta de caridade invalida a eucaristia cristã… O primeiro pecado são as divisões (das quais falou no começo da carta). É verdade que as divisões são inevitáveis, especialmente numa comunidade heterogênea como a de Corinto; mas os “autênticos” devem fazer todo o possível para manter a unidade, expressa e robustecida na celebração eucarística.

De fato, não é para comer a Ceia do Senhor que vos reunis em comum (v. 20). 

A afirmação é a categórica: há, sim, uma reunião comunitária, mas não há “ceia do Senhor”.

Pois cada um se apressa a comer a sua própria ceia; e enquanto um passa fome o outro se embriaga. Não tendes casas onde comer e beber? Ou desprezais a Igreja de Deus e quereis envergonhar aqueles que nada têm? Que vos direi? Hei-de elogiar-vos? Neste ponto, não posso elogiar-vos (vv. 21-22).

O segundo abuso é a relação entre refeição profana e celebração litúrgica. Paulo coloca a “própria ceia” de cada um em contraste com a “Ceia do Senhor” do v. 20, que exige celebração “em comum” no amor e repele as divisões inspiradas pelo egoísmo.

A Bíblia do Peregrino (p. 2756) comenta: A “ceia do Senhor”, celebrada em casas particulares e apropriadas, costumava ser precedida de uma ceia em comum, a qual os abastados levavam suas provisões. Sem esperar que chegassem os mais necessitados e atrasados, comiam e bebiam, de modo que os pobres, com uns satisfeitos e até ébrios e outros famintos, procedia-se à celebração da eucaristia. E esta era ocasião de discriminação entre os pobres e abastados, com fome e humilhação dos necessitados. Uma divisão grave, na qual culminavam as facções e processos antes mencionados (1,10-17; 6,1-11). Seria melhor cada um comer em sua casa e depois reunir-se para a liturgia (melhor ainda esperar e partilhar, v. 33).

O que eu recebi do Senhor foi isso que eu vos transmiti (v. 23a).

Paulo aproveita agora a ocasião para expor seu ensinamento positivo (os vv. 23-26 são a 2ª leitura de Quinta-Feira Santa). As fórmulas empregadas são de grande riqueza teológica, que a reflexão posterior se encarregou de desenvolver.

Diferente dos doze apóstolos, Paulo só conheceu Jesus ressuscitado, não andava e comia com ele como os doze. “O que recebi do Senhor” se refere então à tradição dos apóstolos que introduziram Paulo no mistério eucarístico após sua conversão. Mas o mistério pascal, ou seja, que Jesus está vivo no céu e se faz presente de maneira misteriosa e sacramental, Paulo experimentou diretamente na sua conversão espetacular (At 9,5; 22,8; 26,15; Gl 1,11-24).

No entanto, escreveu um relato sobre a instituição da Eucaristia já antes dos evangelistas (Mc foi o primeiro deles por volta de 70 d.C.). Paulo passou em Corinto nos anos 50 a 52 d.C. e, provavelmente em 56, escreveu esta carta em Éfeso, dirigida “à Igreja de Deus que está em Corinto” (cf. 1,2).

Na noite em que foi entregue o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória”. Do mesmo modo, depois da ceia, tomou também o cálice e disse: “Este cálice é a nova aliança, em meu sangue. Todas as vezes que dele beberdes, fazei isto em minha memória” (vv. 23b-25).

Paulo não narra toda história da paixão como os evangelistas, por isso resume no início: “Na noite em que foi entregue” (v. 23). Nos evangelhos, o verbo “entregar” é comumente empregado em sentido pejorativo (Mt 4,12; 5,25; 10,17.19), principalmente nos anúncios da paixão (Mc 9,31p; 10,33p; Mt 26,2; cf. Mc 14,10s.18.21p).

Como anfitrião ou pai para sua família, Jesus como mestre dos seus discípulos, “tomou o pão” e fez a oração de benção (beraká) como os judeus costumam fazer antes de partir e distribuir o pão. A oração do padre sobre as ofertas (pronunciada geralmente em silêncio) e as Orações Eucarísticas são inspiradas neste “dar graças” (a palavra grega “eucaristia” significa “ação de graças). O nome mais antigo da Eucaristia era “partir o pão” (At 2,42; 20,7; 27,35s; cf. Lc 24,30s.35).

Jesus associa o pão com seu corpo e o vinho com seu sangue. Se foi uma ceia pascal (nos evangelhos sinóticos sim, em Jo não), podemos relacioná-la ao costume judaico de celebrar e atualizar o êxodo (cf. Ex 12) com gestos simbólicos e didáticos.

Depois da destruição do templo em 70. d.C., os rabinos criaram a seder (ordem) da ceia pascal com diversos gestos simbólicos: por ex. mergulha-se karpas (batata, ou outro vegetal), em água salgada. Recita-se a benção e a karpas é comida em lembrança às lágrimas (água salgada) dos antepassados israelitas. Depois divide-se a matzá (pão ázimo) do meio em duas partes desiguais. São comidas as ervas amargas (raiz forte, escarola, endívia e a alface romana) relembrando a escravidão e o sofrimento amargo dos hebreus no Egito. Depois o chefe da casa fala: “Olhemos, pois, a matzá que está sobre a mesa. Este é pão da pobreza que comeram os nossos antepassados na terra do Egito. Quem tiver fome, e muitos são os que tem fome neste mundo em que vivemos, que venha e coma…”

Jesus anuncia mais uma vez, mas desta vez com um gesto profético (simbólico, misterioso, sacramental), a sua morte que beneficiará os discípulos (“por vós”; Mc e Mt: “por muitos”, cf. Is 53,12; as palavras da missa “para todos” se inspiram p. ex. em Jo 6,51: “para vida do mundo”). Sua morte não é um acidente, mas tem sentido: dará vida aos homens, como um alimento que se desfaz ao ser consumido; como o cordeiro pascal cujo sangue colocado nas portas salvou os israelitas no Egito (cf. Ex 12).

Se a última ceia foi uma ceia pascal, porque não se fala do cordeiro? Antes já, na mesma carta, Paulo já escreveu: “Pois nossa páscoa, Cristo, foi imolada” (5,7). Na eucaristia cristã, o pão e o vinho substituem como elementos a carne do cordeiro da páscoa judaica.

O vinho tinto alude ao sangue. Assim Jesus anuncia indiretamente que sua morte será violenta (na cruz). Na ceia pascal, os judeus costumam passar quatro vezes o cálice. O cálice ao qual Jesus se refere é o cálice da paz (cf. Cl 1,20; Ef 2,13s). Aliança se faz para firmar a paz, e muitas vezes, a aliança é selada com uma refeição ou um sacrifício (cf. Gn 15; Ex 24,1-11).

Comparando os quatro relatos da instituição da Eucaristia (1Cor 11,23-25; Mc 14,22-26; Mt 26,26-29; Lc 22,19-20) consta-se o seguinte: Nas palavras de Jesus sobre as espécies de pão e vinho, há semelhanças e diferenças: Mt e Mc tem uma versão, Lc e Paulo outra. Daí se fala de duas versões: a tradição da Palestina (Mt e Mc) e a tradição helenista (da cultura grega: 1Cor 11,23-25 e Lc 22,19-20).

Paulo escreveu em 56 d.C. O primeiro evangelista Mc só escreveu em 70 d.C., Mt o segue cerca de 80 d.C.; Lc escreve também em 80 d.C., mas independentemente de Mt. Mas Mt e Lc já usam Mc como fonte e acrescentam mais conteúdo. Lc escreve os Atos dos Apóstolos em 85 d.C. conhecendo a vida e as viagens de Paulo.

Qual das duas versões é mais original? É difícil dizer. Paulo diz que “que eu o recebi do Senhor”, isto é, não diretamente, mas através de uma tradição, que remonta ao Senhor. Talvez Mc (e Mt seguindo-o) transmita a palavra mais original sobre o pão, enquanto Paulo tenha a palavra mais autêntica sobre o cálice. As palavras de Paulo e Lc têm mais simetria: duas vezes “fazei isto em minha memória” (falta em Mc e Mt). É memória que atualiza o fato, é comemoração festiva (cf. Ex 12,14). O que Mc e Mt anotam sobre cálice “derramado por vós”, Paulo e Lc já expressam sobre o pão “dado por vós”; “por vós” significa o valor redentor da morte de Jesus (cf. Is 53; cf. Mt 26,28: “para remissão dos pecados”). Enquanto Mc e Mt lembram mais a antiga aliança do Sinai, “o sangue da aliança” (cf. Ex 24,8; Zc 9,11), Paulo e Lc lembram também a profecia de Jr 31,31, a “nova aliança”.

Todas às vezes, de fato, que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor, até que ele venha (v. 26).

No final, Paulo sublinha a seriedade desta memória contra a banalização e profanação que os coríntios faziam através de divisões e falta de partilha (cf. v. 21: “enquanto um passa fome, outro fica embriagado”). Quem participa da eucaristia, deve ter consciência: “Todas às vezes, de fato, que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor, até que ele venha” (v. 26). Quer dizer, Cristo morreu por nós, mas está vivo e voltará cf. a aclamação aramaica dos primeiros cristãos “Maranatá” – “Senhor nosso, vem” ou: “Vem, Senhor” (16,22; Ap 22,20; cf. Rm 13,12; Fl 4,5; Tg 5,8; 1Pd 4,7).

Portanto, meus irmãos, quando vos reunirdes para a Ceia, esperai uns pelos outros (v. 33).

Depois de lembrar a necessidade de comer dignamente da ceia do Senhor e se examinar seriamente para não comer e beber a própria condenação (vv. 27-32 omitidos pela nossa liturgia), Paulo dá um último conselho prático: esperar até que sejam todos para cear juntos. Em caso excepcional, de alguém que não possa resistir tanto, que coma em casa antes de compadecer à reunião: “Se alguém tiver fome, coma em sua casa; assim não vos reunireis para ser condenados” (v. 34a).

É possível que este texto de Paulo teve influência na separação da refeição comum do sacramento da Eucaristia que se pode celebrar também pela manhã (cf. Jo 21). Assim se evita abusos, mas se pode perder a ligação entre fé e vida, ou seja, a eucaristia é elevada em esferas espirituais (místicas, celestiais; adoração) que pouco têm a ver com a realidade terrena e concreta, com a partilha de vida na comunidade. Isto, porém, seria contra a intenção de Paulo.

 

Evangelho: Lc 7,1-10

Depois do discurso da planície (em Mt é o sermão da montanha), segue-se uma narrativa que destaca a eficácia e o alcance da palavra de Jesus.

Quando acabou de falar ao povo que o escutava, Jesus entrou em Cafarnaum (v. 1).

Ao discurso da planície (evangelhos da semana passada; cf. o sermão da montanha em Mt 5-7) seguem-se dois milagres notáveis em Lc. O primeiro é a cura à distância em Cafarnaum (cf. os paralelos Mt 8,5-13; Jo 4,43-54) a favor de um pagão. O segundo é a ressurreição do filho de uma viúva (próprio de Lc, cf. evangelho de amanhã) na cidade de Naim. Lc destaca a condição dos beneficiários.

O fato de Mt e Lc, embora escrevendo independentemente um do outro, colocam a narrativa do centurião logo em seguida daquele sermão, leva a pensar que a cura já estava na fonte comum que Mt e Lc usaram, mas que desapareceu na história: uma coleção de palavras chamada Q, ou esta combinada à uma segunda e ampliada edição de Mc, chamada Deutero-Marcos. Obviamente a função desta cura à distância já na fonte era mostrar a eficiência da Palavra de Jesus logo após o sermão.

Havia lá um oficial romanoque tinha um empregado a quem estimava muito,e que estava doente, à beira da morte.O oficial ouviu falar de Jesuse enviou alguns anciãos dos judeus,para pedirem que Jesus viesse salvar seu empregado.Chegando onde Jesus estava,pediram-lhe com insistência: “O oficial merece que lhe faças este favor,porque ele estima o nosso povo.Ele até nos construiu uma sinagoga” (vv. 2-5).

A figura do “oficial romano”, lit. “centurião”(que comanda cem soldados) é toda descrita com traços significativos. Ele está a serviço do governador da Galileia, Herodes Antipas, mas não necessariamente romano. Herodes Antipas recrutava suas tropas em todas as regiões circunvizinhas (em Jo 4,46-53, Jesus cura o filho de um oficial de Herodes à distância).Talvez seja um romano, mas com certeza um pagão, porém, simpatizacom a religião e as praticas judaicas, às quais tem dedicado parte da sua fortuna (ou autoridade),“construiu (ou mandando construir) uma sinagoga”.

Lc destaca a simpatia do centurião porque está interessado em superar a divisão entre judeus e pagãos, defendendo a missão aos pagãos criticada pelos judeus.Já em 3,14, soldados mostraram abertura à mensagem de João Batista. Em 4,25-27, Jesus falou na sinagoga de Nazaré sobre os pagãos atendidos pelos profetas de Israel. Já em Mc 15,39, um centurião reconheceu Jesus como filho de Deus (cf. Lc 23,47). Em At 10, Pedro batiza o primeiro pagão, o centurião Cornélio, e Paulo leva o evangelho às nações (cf. ainda o Concílio de Jerusalém em At 15 e os conflitos em Gl 2).

O centurião do evangelho de hoje é “temente a Deus” como o centurião Cornélio (At 10,2.4.31), embora não pertencesse oficialmente aos seus quadros religiosos do judaísmo. Não é “prosélito”, os prosélitos são aqueles que, não sendo judeus de origem, abraçaram a religião judaica e aceitaram a circuncisão tornando-se assim membros do povo eleito (cf. At 6,5; 13,43; Mt 23,15). Os “tementes a Deus“simpatizavam com o judaísmo e frequentavam as sinagogas, mas não chegavam até a circuncisão e a prática ritual da Lei.

Em Mt 8,6 o doente (“à beira da morte”, cf. Jo 4,47)é um menino (ou criado, mas pode ser traduzido por “filho”), em Lc é claramente um “empregado”, servo ou escravo, mas “a quem estimava muito”. Lc, como Paulo, quer superar os conflitos entre classes sociais (cf. Gl 3,28; Rm 8,15; Fm 10-19 etc.). ”Se tens somente um servo, trata-o como a ti mesmo, considera-o um irmão” (Eclo 33,31).

O centurião pagão, mas temente a Deus, reclama a mediação dos judeus, de acordo com predições proféticas (Zc 8,23). Os “anciãos dos judeus” são notáveis da localidade que não devem ser confundidos com os “anciãos” de Jerusalém, membros do sinédrio (cf. 20,1p etc.).

Em Mt e Jo, é o próprio oficial que dialoga com Jesus, mas em Lc não, porquê? A intermediação, primeiro pelos “anciãos” e depois pelos “amigos” (judeus?, v. 6), é própria de Lc. Ele não fala mal dos costumes, da lei e do povo judeu como os outros evangelistas (Lc omite Mt 8,11s), ao contrário, mostra a unidade que devia ter na igreja formada de judeus e pagãos. Por isso, introduz os intermediários judeus nesta cura, cf. Jerome Kodell no Comentário Bíblico III (p. 84): Se os judeus praticantes de seu tempo trouxeram um não-judeu até Jesus e este foi a ele sem evasivas – o argumento da igreja deve ter surtido efeito – porque os cristãos judeus não haveriam de aceitar os pagãos?

Então Jesus pôs-se a caminho com eles. Porém, quando já estava perto da casa, o oficial mandou alguns amigos dizerem a Jesus: “Senhor, não te incomodes, pois não sou digno de que entres em minha casa. Nem mesmo me achei dignode ir pessoalmente ao teu encontro. Mas ordena com a tua palavra, e o meu empregado ficará curado (vv. 6-7).

Lc sublinha a humildade do centurião que reconhece a dignidade especial de Jesus: mais uma vez aproxima-se dele por intermediários e não se atreve a hospedá-lo (sabe da proibição judaica de entrar nas casas de pagãos, cf. Jo 18,28; At 11,3) nem falar com ele pessoalmente. O que mais importa é que crê no poder sobrenatural de Jesus. Enquanto o povo procura tocá-lo para receber dele seu fluido curador (6,19), o centurião reconhece que basta uma palavra, uma ordem de Jesus para que a curaaconteça.

A liturgia cristã conservou a frase de centurião no contexto da eucaristia. Seu pedido (e exemplo de fé e humildade) entrou na liturgia da missa. Antes de receber o corpo de Cristo dizemos: “Senhor, eu não sou digno, que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra, e serei salvo” (o corpo como morada da alma).“Quem ousaria aproximar-se de mim?”, pergunta Deus em Jr 30,21 (cf. Ex 19,12; 33,20).

Eu também estou debaixo de autoridade, mas tenho soldados que obedecem às minhas ordens. Se ordeno a um: ‘Vai!’, ele vai; e a outro: ‘Vem!’, ele vem; e ao meu empregado ‘Faze isto!’, e ele o faz”(v. 8).

A experiência militar é imagem para expressar esse poder de Jesus. Um modo de fazer próprio de soberano e autoridades é por meio da palavra, ou seja, dando ordens: é fazer fazer. Dessa condição são as ordens criadoras de Deus (Gn 1; Sl 33). O centurião o experimentou dentro do regime e da hierarquia militar. Ele chamou Jesus de “Senhor” (v. 6), título que alude a divindade de Jesus (Fl 2,11) e será usado por Lc em v. 13. Em várias ocasiões, os evangelistas citam palavras soberanas de Jesus pronunciadas sobre a criação para melhorá-la ou restaurá-la (cf. Jo 5,17).

Mas curiosamente, o narrador Lc não menciona essa palavra de Jesus (Mt 8,13; Jo 4,50), mas diz apenas que se põe “a caminho com eles” (v. 6; cf. 24,15; a palavra de Jesus em Mt 8,13 destaca a fé) e depois o empregado se recuperou (v. 10).

Ouvindo isso, Jesus ficou admirado. Virou-se para a multidão que o seguia, e disse: “Eu vos declaro que nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé.” Os mensageiros voltaram para a casa do oficiale encontraram o empregado em perfeita saúde vv. 9-10).

O relato desemboca, não na admiração do povo como em outras curas (4,36), mas na admiração de Jesus diante da fé do pagão! (cf. ao contrário, a falta de fé dos nazarenos em Mc 6,5-6p). Porque Lc está interessado em superar a divisão entre judeus e pagãos, a reação de Jesus é menos dura para Israel do que a de Mt 8,10-12. Para a igreja de Lucas (seus leitores eram pagãos gregos e romanos), a fé do pagão é exemplar e consoladora. Fé no poder e na misericórdia de Jesus, na palavra que penetra no tecido da vida humana.

O oficial era «temente a Deus», isto é, simpatizante do judaísmo, embora não pertencesse oficialmente aos seus quadros religiosos. Às vezes pode-se encontrar mais fé em pessoas que não pertencem a uma instituição religiosa do que entre aquelas que dela fazem parte. Por quê? A Igreja deve reconhecer a fé e a boa vontade de pessoas fora da sua instituição e se alegrar e dialogar em vez de condenar (em vez de criticar o cisco no olho do outro e não ver a trave no próprio, cf. 6,42).

O site da CNBB comenta: Uma coisa é a fé em si, e outra coisa é como ela se expressa. Para muitos, a fé em si nem sequer é percebida, de modo que existe uma necessidade muito grande de ritualismo e de formas exteriores de expressão da fé. Quem tem verdadeiramente fé em Jesus, acredita na autoridade do seu nome e na força da sua Palavra, e não necessita de manifestações exteriores para acreditar na eficácia da sua ação. Deste modo, todos nós somos convidados a reconhecer que a grandiosidade da fé do Centurião que acreditou plenamente no poder da Palavra de Jesus e não exigiu dele nenhum rito ou gesto exterior e, porque acreditou, foi atendido naquilo que desejava.

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