17 de Março 2019, Domingo: Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago,e subiu à montanha para rezar (v. 28b).

1ª Leitura: Gn 15,5-12.17-18

Nas primeiras leituras dos próximos domingos da Quaresma percorremos a história da salvação. Hoje ouvimos sobre a primeira “aliança” de Deus com Abrão (chamado Abraão a partir de 17,5). As repetições no diálogo (cf. vv. 2.3), as duas cenas noturnas, uma serena (v. 5) e outra dramática (vv. 12.17) indicam uma mescla de tradições com os temas da terra, descendência e aliança.

O que um nômade e criador de animais como Abrão precisa para seu sustento, além de pastos e poços de água (cf. cap. 13; 21,25)? Um filho e herdeiro que o sustenta na velhice, porque não existia previdência nem segurança social como hoje no INSS. É o que falta a Abrão, homem já com mais de 75 anos, e à sua mulher Sara estéril (cf. 11,30; 12,4). Mas ele foi chamado por Javé Deus para sair da sua terra e da sua família com a promessa de terra e descendência e tornar-se uma benção para todas as famílias e nações da terra (12,1-6; 13,14-17; 22,18).Deus promete e o homem aspira; mas nada ainda acontece.

(Naqueles dias, o Senhor) conduziu (Abraão) para fora e disse-lhe: “Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz!” E acrescentou: “Assim será a tua descendência” (v. 5).

Nossa liturgia omitiu o diálogo com Deus (vv. 1-4) e introduz “Abraão”, mas até cap. 17 é chamado Abrão. Ele está encerrado na sua tenda com os problemas domésticos com a herança. Mas o Senhor, “conduzindo-o para fora” (transcendência é um “sair” de si, palavra chave do êxodo), mostra a tenda celeste, dizendo: “Olha para o céu e conta as estrelas se fores capaz… Assim será tua descendência”. Na primeira promessa, Deus só falou (12,1-3), na segunda convidou para olhar a terra ao redor (13,14-17). Nesta terceira, convida para olhar para o alto (cf. Cl 3,1-2), para o poder do próprio criador do “exército” do céu (2,1). As estrelas são exemplo de multidão (22,17; 26,4; Dt 1,10; cf. 17,5: o nome de Abraão significa “pai de uma multidão”). Deus não só conhece o número das estrelas, mas o nome de cada uma (Is 40,26; Sl 147,4). Com toda crítica da razão, o filósofo Immanuel Kant (1724-1804) confessou: “O céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim fazem me acreditar que Deus existe”.

Abrão teve fé no Senhor, que considerou isso como justiça (v. 6).

A fé de Abraão é confiança numa promessa humanamente irrealizável. A palavra “fé” aparece aqui pela primeira vez na Bíblia. Tem a mesma origem que o termo litúrgico “amém” e a mesma raiz hebraica de verdade, fidelidade, firmeza. A fé de Abraão se mostra também na obediência (12,4a; cf. cap. 22). Paulo se refere a ela citando a frase de Gn 15,6 em Rm4,3.9.22 e Gl 3,16: o apóstolo dos pagãos usa o texto para provar que a justificação depende da fé e não das obras da lei (a fé de Abraão é anterior a lei de Moisés). Mas a fé de Abraão guia a sua conduta, é princípio de ação das obras, e Tiago pode invocar o mesmo texto para condenar a fé “morta”, sem as obras da fé (Tg 2,22s).

Deus reconhece o mérito (“justiça”) deste ato (cf. Dt 24,13; Sl 106,31), coloca-o na conta de sua justiça, sendo “justo” o homem cuja retidão e submissão o tornam agradável a Deus. A justiça do homem consiste numa entrega confiante ao Deus que garante cumprir o que promete, quando ainda nada pode ser verificado (cf. Hb11,1.8-12). A justiça aqui não é uma virtude moral, ela implica uma concordância com a vontade de Deus (expressa nas promessas dele). Ela se refere a uma palavra divina e dela decorrem a vida e a prosperidade.

E lhe disse: “Eu sou o Senhor que te fez sair de Ur dos Caldeus, para te dar em possessão esta terra” (v. 7). 

Deus se identifica solenemente com o nome Javé (Yhwh, traduzido por “Senhor”)e com a intervenção decisiva na vida de Abrão: “Eu sou o Senhor que te fez sair de Ur dos caldeus para te dar em possessão esta terra”; cf. Ex 20,2: “Eu sou o Senhor, teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão”). Ur fica na Baixa Babilônia, os caldeus são os babilônios. Para uns exegetas, esta origem de Abraão (cf. 11,31; Ne 9,7) é da redação exílica que quer criar um paralelo com os exilados na Babilônia(cf. Is 48,20) e motivá-los a voltar à terra de Israel atualizando para eles as promessas e bênçãos garantidas a Abrão.

Abrão lhe perguntou: “Senhor Deus, como poderei saber que vou possuí-la?” E o Senhor lhe disse: “Traze-me uma novilha de três anos, uma cabra de três anos, um carneiro de três anos, além de uma rola e de uma pombinha”. Abrão trouxe tudo e dividiu os animais pelo meio, mas não as aves, colocando as respectivas partes uma frente à outra (vv. 8-10).

Abrão pede um sinal (v. 8, cf. Lc1,18.34) e Deus sela uma aliança, pedindo que Abrão fizesse um ritual que se parece com “macumba”, ou seja, rituais de magia: dividir animais ao meio formando um corredor (vv. 9-10). Temos aqui a terceira grande aliança no Pentateuco (primeiros cinco livros da Bíblia, chamados Torá, ou seja, Lei de Moisés), depois da criação com Adão (1,38-30) e da aliança com Noé (9,1-17).

Ora, a aliança era um acordo em que ambos os contraentes se empenhavam entre si; era concluída com um rito.É um velho rito de aliança (cf. os reis em Jr 34,18s): os contraentes passavam entre as carnes sangrentas e chamavam sobre si a sorte que coube a esses animais mortos, se transgredissem seu compromisso. É um compromisso solene selado por um juramento imprecatório (a passagem entre os animais divididos). Hoje se cumpre um contrato por medo de consequências jurídicas, antigamente não havia sistema jurídico, cumpria-se por medo do ritual mágico. Daí a expressão bíblica “cortar” a aliança (v. 18) em vez de fazer, assinar, concluir, firmar ou selar como é traduzido geralmente.

Aves de rapina se precipitaram sobre os cadáveres, mas Abrão as enxotou. Quando o sol já se ia pondo, caiu um sono profundo sobre Abrão e ele foi tomado de grande e misterioso terror (vv. 11-12).

As “aves de rapina” (v. 11) podem ser mau agouro que anuncia o futuro da escravidão dos filhos de Abrão no Egito (vv. 13-16, omitidos pela leitura de hoje). O sono profundo e o grande e misterioso terror que caiu sobre Abrão (v. 12; cf. Jó 4,12-17) pode se referir ao mesmo anúncio ou à teofania em seguida.

Quando o sol se pôs e escureceu, apareceu um braseiro fumegante e uma tocha de fogo, que passaram por entre os animais divididos (v. 17).

Quem passa aqui pelo corredor dos pedaços, sob o símbolo do fogo (elemento da divindade), é o Senhor (Javé Deus) e ele passa sozinho, porque sua aliança é um pacto unilateral (cf. 9,9). A aliança com Abrão é um empenho exclusivo de Deus: só Deus pode realizar aquilo que prometeu.

O Antigo Oriente conhece o braseiro como sinal de infelicidade e a tocha como sinal favorável. É uma teofania misteriosa: Deus passa sem imagem, ao mesmo tempo fulgor e escuridão (v. 17). No êxodo, Deus se manifestará novamente neste elemento, na sarça ardente (Ex 3,2), numa coluna de nuvem e fogo (Ex 13,21; 14,24; cf. Ex 40,38 prefigurando o culto no templo), no monte Horeb/Sinai (Ex 19,18). Chama atenção que já era noite quando Abrão olhou as estrelas (v. 5), no entanto volta a ser dia em que ele arruma e prepara os animais e depois o sol se põe de novo (vv. 12.17), são indícios de uma mescla de tradições.

Naquele dia o Senhor fez aliança com Abrão, dizendo: “Aos teus descendentes darei esta terra, desde o rio do Egito até o grande rio, o Eufrates” (v. 18). 

Aqui o ritual é usado para reforçar as promessas já dadas em 12,6 e 13,15s. Descendência incontável (v. 5; cf. 13,16; 22,17; 1Rs 4,20) e “esta terra, desde o rio do Egito até o grande rio, o Eufrates” revelam os projetos do rei Josias (640-609 a.C.; cf. 2Rs 22,1-23,30; Dt 11,24; 20,17; Js 1,4; 3,11; 15,4; z 3,5; 1Rs 5,1; Ne 9,8; Esd 9,1).

O esquema do êxodo (“saída”) é fortemente representado no texto: das entranhas “sairá” o herdeiro de Abrão (v. 4) que é “conduzido para fora” para ver as estrelas (v. 5). O Senhor fez Abrão “sair” de Ur para dar-lhe a terra (v. 7); da mesma forma, os descendentes de Abrão serão escravos no Egito por 400 anos e depois “sairão” para a terra prometida (vv. 13-20). A presença de Deus em forma de fogueira e tocha é a mesma no êxodo: sarça ardente, coluna de fogo, teofania no monte Sinai (Ex 3,3; 13,21; 19,18). Sair para: é o movimento de libertação que torna possível, tanto para o indivíduo, como para o povo ao qual ele pertence, caminhar para a vida.Para os profetas e judeus redatores no exílio, a volta à sua terra é um novo êxodo (cf. Is 40,3-5; 43,16-21; 51,1-3).

 

2ª Leitura: Fl 3,17-4,1(ou 3,20-4,1)

Na 2ª leitura de hoje, o apóstolo Paulo, apesar de estar preso, convida a comunidade a lhe seguir o exemplo, no esforço ruma à “perfeição”, com os olhos fitos na “meta” final (v. 14; cf. Rm 6,12-14; Hb 12,2).

Sede meus imitadores, irmãos, e observai os que vivemde acordo com o exemplo que nós damos (3,17).

Os nossos santos imitam as atitudes (sentimentos, cf. 2,5) de Cristo. Paulo pode propor-se como exemplo, porque segue o de Cristo (1Cor 11,1; cf. Jo 13,15). Não imitar algo acabado, mas um esforço constante como Paulo vive de Cristo e luta por ele (4,9; 1Cor 4,16; 1Ts 1,6; cf. Gl 2,20). Paulo escreve esta carta na prisão (1,7.13s.17), provavelmente em Éfeso, e já passou um tempo preso em Filipos (cf. At 16,16-40).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.2307) especifica: Vê se portanto, que nos primeiros escritos paulinos, “imitar” não significa “procurar reproduzir as atitudes ou virtudes morais de alguém”, mas se trata para o discípulo de Cristo, de aceitar a condição de “servo sofredor” que foi a de Jesus: “Se eles me perseguiram, hão de perseguir também a vós” (Jo 15,20; cf.Mt 10,18 e par).

Já vos disse muitas vezes,e agora o repito, chorando: há muitos por aíque se comportam como inimigos da cruz de Cristo.O fim deles é a perdição,o deus deles é o estômago,a glória deles está no que é vergonhoso e só pensam nas coisas terrenas (vv. 18-19).

A emoção leva Paulo às lágrimas: Quem são estes “muitos por aí que se comportam como inimigos da cruz de Cristo”? Outra vez, Paulo permanece no vago: é que então era compreendido por meias-palavras. A semelhança das censuras expressas e da inquietude sentida permite pensar nos mesmo adversários judaizantes dos vv. 2-5 que não aceitam o esvaziamento de Cristo (v. 18), ao afirmarem a necessidade da circuncisão e das práticas da Lei mosaica (cf. At 15,1).

Os vv. 18-19 podem referir-se a estes judaizantes ou a outros em geral. Para Paulo, os judaizantes são inimigos da cruz de Cristo, porque buscam sua segurança em ritos e desempenhos puramente humanos e “terrenos” (segundo 3,3 “confiam na carne”).

“O deus deles é o estômago (ventre)”, alusão às observâncias alimentares que ocupavam um lugar importante na religião judaica (Lv 11; cf. Rm 14; 16,18; Gl 2,12; Cl 2,16.20s; Mt 15,10p; 23,23-26; At 15,20). “A glória deles está no que é vergonhoso”, alusão provável ao membro que recebe a circuncisão. No culto material (“coisas terrenas”) colocam a salvação futura.

Outros comentaristas pensam que se refere a libertinos (gregos e romanos com suas orgias), talvez como os descritos em Sb 2. Em Corinto, são dois os grupos que não entendem o significado da “cruz de Cristo” (1Cor 1,17): “para os judeus é um escândalo, para os pagãos é loucura” (1Cor 1,23). Aqui também, Paulo pode pensar igualmente nos judaizantes e nos libertinos pagãos.

Nós, porém, somos cidadãos do céu.De lá aguardamos o nosso Salvador, o Senhor, Jesus Cristo.Ele transformará o nosso corpo humilhadoe o tornará semelhante ao seu corpo glorioso,com o poder que tem de sujeitar a si todas as coisas (vv. 20-21).

Em vez de se deixar captar pelo mundo pagão ou escravizar pelos judaizantes (cf. Gl 5), o cristão pertence ao Senhor Jesus Cristo, e sua pátria é o reino dos céus (cf. v. 14; 1,27). Paulo era judeu e também cidadão romano (cf. At 22,3.25-29), mas como cristão é cidadão do reino de Deus.

A Bíblia do Peregrino (p.2822) comenta: “Céu” substitui com frequência o nome de Deus e representa imaginativamente a morada divina. Somos “cidadãos” de uma cidade onde o próprio Deus governa (Hb 12,22), o qual do alto (3,14) enviará Jesus Cristo para que leve a bom o termo a salvação começada, transformando gloriosamente todo o nosso ser, à imagem de sua glória consumada (Rm 8,29). A representação espacial importa pouco; o que importa é nossa glorificação à imagem do Ressuscitado e por sua “eficácia”.

“Semelhante ao seu corpo”, lit. “da mesma forma que seu corpo…” O corpo ressuscitado de Jesus Cristo no qual resplandece a glória de Deus é a “forma” à qual o nosso próprio corpo será conformado, configurado, “transformado” (v. 10; Cl 3,1-4; cf. 1Cor 15,42-49: “corpo espiritual”; cf. a transfiguração em Mc 9,2-10p; 2Cor 3,17s; Rm 8,11).

Assim, meus irmãos, a quem quero beme dos quais sinto saudade,minha alegria, minha coroa, meus amigos, continuai firmes no Senhor (4,1).

Para Paulo, a comunidade, que vive sua fé, é sua “alegria” e sua “coroa”(cf. 1Ts 2,19s). Depois das lágrimas (3,18), o último cap. (4) é só alegria, com o repetido refrão “alegrai-vos” (4,4).

 

Evangelho: Lc 9,28b-36

Esta evangelho sempre é lido no segundo domingo da Quaresma e repetido na festa da Transfiguração do Senhor (06 de agosto), na versão do evangelista do ano A, B ou C.

Também em Lc, depois da profissão de Pedro (v. 20: “[Tu és] o Cristo de Deus”) e anúncio da paixão, morte e ressurreição de Jesus (v. 22), a transfiguração ilumina a subida do Filho do Homem a Jerusalém, onde é situada pela tradição pré-sinótica. Aos discípulos, que não podem compreender o caminho que seu mestre quer seguir, Deus faz vislumbrar a glória misteriosa do seu Filho e exige deles que escutem seu ensinamento. O relato de Lc é uma cópia de Mc 9,2-10 (com algumas mudanças) seguindo esquema primitivo de uma revelação de apocalipse (cf. Dn 10,1-6; Mt 17,2)

Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago,e subiu à montanha para rezar (v. 28b).

Lucas acrescenta “para rezar”, porque gosta de apresentar Jesus rezando continuamente (5,16; 6,12; 9,18; 11,1; 22,32.39-46; 23,34). Com isso o evangelista mostra que Jesus, através de sua palavra e ação, está realizando a vontade do Pai. Na transfiguração aparece claramente esse sentido da oração (cf. v. 35).

Nos três evangelhos sinóticos, Pedro, João e Tiago são os discípulos mais íntimos (cf. 5,10; 8,51; 24,34; cf. At 3-5; 12). A “montanha” pode ser simbólica. Na tradição é o monte Tabor perto de Nazaré, outros pensam num monte mais alto, o Hermon(altitude: 2.814 m)no Líbano, onde nasce o Rio Jordão e fica perto Cesareia Filipe, onde Pedro professou sua fé (Mc 8,27ss).  Mas junto com as figuras ilustres em seguida (v. 30), Moisés (Ex 3; 19s; 24) e Elias (1Rs 19), lembra o monte Horeb/Sinai, onde Deus se manifestou em fogo, raios e nuvens e falou ao seu povo (Ex 19,16; 20,18-21). Moisés subiu ao monte Sinai também com três homens escolhidos (Ex 24,1).

Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparênciae sua roupa ficou muito branca e brilhante (v. 29).

Mc e Mt usaram o verbo “transfigurar” que, em outras passagens, designa uma transformação espiritual (Rm 12,2; 2Cor 3,18). Aqui, a transformação é visível. Por isso, Lc mudou o verbo para “mudar de aparência” (cf. seu destaque da forma visível e corporal em 3,22; 24,37-42; At 1,3-4). Os três sinóticos (Mc, Mt e Lc) assinalam a transformação perceptível da roupa; Mt e Lc mencionam que ela afeta também o rosto. Como nos apocalipses judaicos, vestes tão deslumbrante (cf. Dn 7,9; Mc 16,5p; Jo 20,11; Ap 3,4; 4,4; 7,9.13) são um dos sinais da “glória”( v. 31) celeste que é concedida aos eleitos tornando-os semelhantes aos anjos (2,9; 10,18; 11,36; 17,24; 24,4; At 9,3; 12,7; 22,6; 26,13; cf. Jo 8,12). Esta cena misteriosa só adquire sentido na perspectiva da ressurreição gloriosa de Cristo, da qual é evidentemente uma antecipação.

Eis que dois homens estavam conversando com Jesus:eram Moisés e Elias.Eles apareceram revestidos de glóriae conversavam sobre a morte,que Jesus iria sofrer em Jerusalém (vv. 30-31).

“Moisés e Elias”representam o AT (Antigo Testamento): Moisés, a Lei, e Elias, os Profetas (no culto da sinagoga se lê uma leitura da Lei, outra dos Profetas, cf. At 13,15). Eles aparecem aqui como precursores ou testemunhas da Aliança. Conversando com eles, Jesus se demonstra mais do que um simples carpinteiro, médico ou pregador. No pé da igualdade com estas autoridades do passado, Jesus parece pertencer a este mundo da eternidade divina. Abre-se uma janela no céu, ou seja, antecipa-se a ressurreição. Elias devia ser precursor do Messias (Ml 3,23; cf. Eclo 48,10), papel identificado com João Batista (1,17; Mc 8,11-13; Mt 17,12). Ao mesmo tempo aparece Moisés (cf. Ap 11,3-6), cujo rosto se tornava luminoso no monte Sinai (Ex 34,29s) e cuja assunção o judaísmo admite, tanto quanto a de Elias (2Rs 2,11) e de Henoc (Gn 5,24).

Só em Lc, o conteúdo da conversa é revelado: “conversavam sobre a morte (lit. êxodo),que Jesus iria sofrer em Jerusalém” (v. 32b).Êxodo significa “saída”; o livro de Êxodo trata da saída da escravidão no Egitoque o judeus comemoram na páscoa. Mas êxodo significa também saída (fim) da vida. Pode-se interpretar a respeito do fim da vida de Jesus na ocasião da páscoa em Jerusalém, sua “passagem” (páscoa significa passagem em Ex 12,11s; Jo 13,1) pela morte na cruz à ressurreição (cf. 24,26). E a vontade do Pai é que Jesus realize o êxodo, isto é, que ele realize o ato supremo de libertação do povo, superando a opressão exercida pelo sistema implantado em Jerusalém, vencendo o pecado mediante sua própria morte, ressurreição e ascensão.

Pedro e os companheiros estavam com muito sono.Ao despertarem, viram a glória de Jesuse os dois homens que estavam com ele.E quando estes homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui.Vamos fazer três tendas:uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias.” Pedro não sabia o que estava dizendo(vv. 32-33).

Lc explica a falta de compreensão dos discípulos (muito frequente em Mc) pelo sono; assim lembra também sua atitude posterior durante a oração no horto das Oliveiras (23,45-46p; cf. 19,29; 21,37; 22,39; At 1,12). A sugestão de construir tendas deve-se a Mc que aludiu com sua indicação “após seis dias” (Mc 9,2) ao transcurso da Festa das Tendas, festa alegre e popular dos judeus (Ex 28,16; Lv 23,28-34; Dt 16,13). Ela começa seis dias depois do grande dia das Expiações e dura sete dias (Lv23,34.36). Lc tinha mudado a cronologia para “oito dias depois” (v. 28a), talvez em alusão a ressurreição que os cristãos comemoram (cf. Jo 24,26)

Ele estava ainda falando,quando apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra.Os discípulos ficaram com medoao entrarem dentro da nuvem.Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido.Escutai o que ele diz!” (vv. 34-35).

Não basta só o testemunho de Moises e Elias, agora o próprio Deus se manifesta sobre Jesus. A nuvem é sinal de teofania (cf. 2Mc 2,7-8), numa coluna de nuvem e fogo (Ex 13,21; 14,24; cf. Ex 40,38 prefigurando o culto no templo), a mesma forma como no monte Sinai (Ex 19,16; 24,15s), como sobre a Tenda do encontro (Ex40,34.35) e sobre o Templo (1Rs 8,10-12).

No batismo de Jesus (3,22p), a voz do céu designara Jesus como o seu Filho (cf. Sl 2,7), lembrando o Servo de Javé (Is 42,1). Na transfiguração, ela o designa antes como o profeta que todosdo povo “devem escutar” (At 3,22 citaDt 18,15).

Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-se sozinho.Os discípulos ficaram caladose naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto(v. 36).

Lc omite a recomendação de guardar segredo que Jesus deu em Mc 9,9. Para Lc, o segredo messiânico de Mc não tem mais importância. Para Mc era importante não confundir o messias com um guerreiro nacionalista igual a Davi, porque escreveu durante a guerra judaica contra os romanos (66-70 d.C.). Em Lc, os discípulos ficam calados ainda, mas depois da ressurreição (cf. Mc 9,9s) recebem o mandato de anunciar como testemunhos até os confins da terra (cf. 24,46-48; At 1,8). No seu segundo volume, os Atos dos Apóstolos, Lucas conta como o Espírito Santo os encorajou de dar conta deste recado.

 

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