18 de Outubro de 2019, Sexta-feira – Festa de São Lucas Evangelista: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Por isso, pedi ao dono da messe que mande trabalhadores para a colheita. Eis que vos envio como cordeiros para o meio de lobos” (vv. 2-3).

Festa de São Lucas Evangelista 

Leitura: 2Tm 4,10-17

A leitura nos apresenta parte do final da segunda carta a Timóteo em que aparece o nome de Lucas (além de Cl 4,14: “Lucas, o médico amado”, e Fm 24), o único que está com Paulo nas suas últimas horas (v. 17). Sem dúvida, Lucas era companheiro de Paulo. Se ele realmente escreveu o terceiro evangelho e os Atos dos Apóstolos, como diz a tradição da Igreja, é discutido hoje, porque todos os evangelhos e os Atos são obras anônimas e seus nomes são apenas atribuições posteriores. Esta obra dupla, o terceiro Evangelho e sua continuação nos Atos dos Apóstolos (cf. Lc 1,1-4; At 1,1-2), tem o melhor estilo na língua grega do NT, só podia ser escrita por um grego de formação superior. O “médico Lucas” (Cl 4,14) preenche este critério, mas as diferenças à teologia das cartas de Paulo deixam algumas dúvidas (umas partes a partir de At 16 que falam na primeira pessoa “nós”, podem ser atribuídas a Timóteo).

As duas cartas a Timóteo e a carta a Tito formam um conjunto à parte na literatura do NT. Não se dirigem a uma comunidade, mas a seus pastores, pessoas individuais que possuem uma responsabilidade no governo, no ensino e no comportamento destas comunidades cristãs. Porque apresentam diretrizes para estes pastores, desde o séc. 18 são chamadas “Cartas Pastorais”. São escritas em nome de Paulo e comumente atribuídas a ele, mas muitos exegetas (peritos na interpretação da Bíblia) atribuem-nas à terceira geração cristã, porque estas cartas apresentam uma igreja com características e desafios bem diferentes das primeiras comunidades de Paulo.

A segunda carta a Timóteo apresenta Paulo na prisão aguardando a sua morte que aconteceu na perseguição do César Nero em Roma (64 ou 67 a.C.). O apóstolo sente a solidão pelo abandono ou desvio de alguns colaboradores e a hostilidade de um conhecido. Nesta mistura de nomes (alguns conhecidos; quatro constam em CI) e de dados sobre o processo não sabemos quanto é reflexo de autos que o autor conhecia e quanto é contribuição sua.

(Caríssimo,) Demas me abandonou por amor deste mundo, e foi para Tessalônica. Crescente foi para a Galácia, Tito para a Dalmácia. Só Lucas está comigo. Toma contigo Marcos e traze-o, porque me é útil para o ministério. (vv. 10-11).

O nome de Demas sempre consta ao lado de Lucas (Fm 24; Cl 4,14), como também Marcos, filho de Maria, primo de Barnabé e também companheiro de Pedro (cf. At 12,12-13,13; 1Pd 5,13), suposto autor do segundo evangelho (o mais antigo dos quatro). Havia uma reconciliação entre Paulo e Marcos (em At 15,37-39, Paulo não o achou apto para a segunda viagem missionária)?

Crescente não é mencionado em nenhum outro lugar. Tito é colaborador de Paulo (2Cor 8,23; Gl 2,3), bispo da ilha de Creta e destinatário de outra carta pastoral (Tt 1,4s).

Mandei Tíquico a Éfeso. Quando vieres, traze contigo a capa que deixei em Trôade, em casa de Carpo, e os livros, principalmente os pergaminhos (vv. 12-13).

O nome de Tíquico é mencionado em At 20,4; Ef 6,21; Cl 4,7; Tt 3,12. É estranho, se o apóstolo está para morrer, que peça a capa (o manto) e material para escrever, talvez seja uma homenagem à suas incansáveis viagens (de Trôade passou da Ásia à Europa, At 16,8-11) e suas cartas. Pode ser também uma alusão ao manto dos profetas (por ex. na morte de Elias; cf. 2Rs 2,8.13s). 2Tm se considera como testamento de Paulo.

Alexandre, o ferreiro, tem-me causado muito dano; o Senhor lhe pagará segundo as suas obras! Evita-o também tu, pois ele fez forte oposição às nossas palavras (vv. 14-15).

A retribuição pelas obras é doutrina comum (cf. Sl 28,4; 62,12; Mt 16,27). O nome de Alexandre se encontra entre os excomungados de 1Tm 1,20.

Na minha primeira defesa, ninguém me assistiu; todos me abandonaram. Oxalá que não lhes seja levado em conta. Mas o Senhor esteve a meu lado e me deu forças, ele fez com que a mensagem fosse anunciada por mim integralmente, e ouvida por todas as nações (vv. 16-17a).

Na “primeira defesa” todos o abandonaram (1,15), depois “só Lucas” está com ele (v. 11). O tema do justo abandonado (cf. Jó) encontra um paralelo entre a morte de Jesus e de Paulo. Mas para ambos, esta solidão está povoada pela presença de Deus.

“Ouvida por todas as nações” pode-se traduzir também “por todos os pagãos” (concentrados em Roma). A leitura de hoje omitiu o final do v. 17, “e me arrancou da boca do leão”. O “leão” é o perseguidor (Sl 22,14.22; este salmo combina com o abandono de Jesus e de Paulo antes da morte). Paulo não foi jogado aos leões como outros cristãos foram nos circos de Roma, nem foi crucificado como Pedro, mas decapitado por ter a cidadania romana (cf. At 22,25-29).

 

Evangelho: Lc 10,1-9

Jesus enviou os doze apóstolos (“apóstolo” quer dizer “enviado”, cf. 6,13) para anunciarem o reino de Deus e curar os doentes (cf. v. 9) nos povoados da Galileia. Este envio dos doze foi transmitido duas vezes por escrito, pelo evangelista Marcos (Mc 6,6-13) e por uma fonte perdida chamada Q (uma coleção de palavras de Jesus que Mt e Lc usavam além de copiarem de Mc). Enquanto Mt combinou estas duas versões num discurso único (Mt 10,7-16), Lc as manteve distintas em dois discursos: um dirigido aos doze apóstolos (9,1-6) – doze é o número das tribos de Israel, cf. Ex 1,1-5; 24,4; Ap 7,4-8) – e outro dirigido aos 72 (ou 70) discípulos, número tradicional das nações pagas (cf. Gn 10). Para Lc é importante a participação de outros discípulos e discípulas além dos Doze (cf. 8,1-3; 24,9-10.13-35; At 1,14.21-22; 2,1.41 etc.).

O Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos e os enviou dois a dois, na sua frente, a toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir (v. 1).

Jesus os enviou “dois a dois” (Mc 6,6), “na sua frente” (não para preparar hospedagem e comida como em 9,52, mas como precursores espirituais, cf. Lc 24,29-32; Ap 3,20). Lc pensa aqui já na futura missão pelos países pagãos (cf. At 1,8).

E dizia-lhes: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Por isso, pedi ao dono da messe que mande trabalhadores para a colheita. Eis que vos envio como cordeiros para o meio de lobos” (vv. 2-3).

Estes vv. 2-3 sobre a falta dos trabalhadores na grande messe (missão) e dos cordeiros no meio dos lobos são da fonte Q (faltam em Mc 6, mas estão em Mt 9,37-38; 10,16).  À imagem da pesca (5,1-10; Mt 4,19p) se acrescentam a do ceifador (Sl 126) e a clássica do pastor (Jr 23; Ez 34; Sl 23; 80) e que continuam a ser usadas para se descrever o apostolado na Igreja. Jesus assume o ofício de fazendeiro e bom pastor e deixará a seus discípulos a tarefa de colher (cf. Jo 4,37-38; 10).

Estranha conduta do bom pastor (cf. Sl 23; Jo 10) de enviar cordeiros no meio de lobos! Mas ele precisa prepará-los para a realidade inevitável de hostilidades futuras (cf. o segundo volume de Lc, os Atos dos Apóstolos, e as palavras de Paulo em 1Cor 15,31; 2Cor 4,10s). Como cordeiro no meio de lobos, assim os judeus descreviam sua situação no meio das nações, assim as testemunhas de Jesus vão enfrentar situações semelhantes ao anunciar o evangelho em Israel e no mundo (cf. At 1,8). Como cordeiros não devem usar de violência (cf. 6,27-36p; 22,35-38; At 7,60 etc.). “Eu vos envio” indica a presença eficaz do Senhor.

Não leveis bolsa, nem sacola, nem sandálias, e não cumprimenteis ninguém pelo caminho! Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: “A paz esteja nesta casa!” Se ali morar um amigo da paz, a vossa paz repousará sobre ele; se não, ela voltará para vós. Permanecei naquela mesma casa, comei e bebei do que tiverem, porque o trabalhador merece o seu salário. Não passeis de casa em casa (vv. 4-7).

As recomendações de não levar quase nada pelo caminho estavam em Mc 6,8-9 (lá pelo menos sandálias e um cajado são permitidos) e em Q (Mt 10,9-10), mas Q afirmou ainda que ”o trabalhador é digno do seu salário” (v. 7b; Mt 10,10), ou seja, o missionário pode contar com o sustento pela comunidade (cf. 1Tm 5,17-18 que estabelece dois salários para presbíteros; em  1Cor 9,14 Paulo afirma estas palavras de Jesus, mas não se vale deste direito nos vv. 15-18 seguintes).

Também a ordem de desejar a paz que voltaria se não fosse um amigo da paz (vv. 5-6) foi transmitida pela fonte Q (Mt 10,11-13). “Shalom” (Paz em hebraico) é a saudação comum em Israel até hoje e significa não só o silêncio das armas, mas a plenitude dos bens (saúde, educação, trabalho, prosperidade, …)

Além da introdução com os novos enviados, nosso evangelista Lc acrescentou mais dois detalhes. O primeiro: “Não cumprimenteis ninguém pelo caminho” (v.4b). Certamente Lc não quer que o missionário seja mal educado, mas a urgência da Boa Nova não permite que se perca no caminho em conversas fúteis (cf. a radicalidade no episódio anterior em 9,57-62). O segundo detalhe, “permanecei naquela mesma casa, comei e bebei do que tiverem” (v. 7a), quer evitar missionários vagabundos e pede humildade e adaptação. Hoje chamamos isso de “inculturação”. A pregação da Boa Nova deve-se adaptar à língua e aos costumes do povo que a recebe. Isso significa certo desprendimento do missionário, mas os valores de cada povo também enriquecem a ele como a toda a Igreja católica.

Quando entrardes numa cidade e fordes bem recebidos, comei do que vos servirem, curai os doentes que nela houver e dizei ao povo: “O Reino de Deus está próximo de vós” (v. 9).

“O reino de Deus está próximo de vós” (v. 9) é a mensagem central de Jesus (cf. Mc 1,15p e o comentário da segunda-feira da primeira semana); o anúncio dos discípulos deve corresponder a esta boa nova. Os missionários devem seguir o exemplo de Cristo, levar uma vida simples junto com o povo sofrido, confiando em Deus e não nas coisas materiais nem na violência, ao final devem anunciar o reino de Deus e não o estilo de vida consumista.

O comentário no site da CNBB resume: O Evangelho de hoje, reconhecidamente vocacional, nos traz frases chaves, que são essenciais para que a nossa missão tenha êxito: “pedi ao dono da messe”, ou seja, a prática da oração; “eis que vos envio”, porque agimos em nome de Jesus e na sua obra; “não leveis bolsa…” porque os valores materiais não dão garantia do sucesso do trabalho evangelizador; “dizei primeiro: ‘a paz…’”, porque devemos ser anunciadores do Evangelho da paz; “permanecei”, pois se não há comunhão, não pode haver evangelização; “curai os doentes”, ou seja, entregue-se à prática libertadora para que haja vida em abundância; “e dizei ao povo”, para que a Palavra seja anunciada, mas o anúncio seja acompanhado da prática evangélica.

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