19 de Maio de 2020, Terça-feira – Pascoa: E quando vier, ele demonstrará ao mundo em que consistem o pecado, a justiça e o julgamento: o pecado, porque não acreditaram em mim; a justiça, porque vou para o Pai, de modo que não mais me vereis; e o julgamento, porque o chefe deste mundo já está condenado (vv. 8-11).

6ª Semana Páscoa 

Leitura: At 16,22-34

Depois de um começo agradável (pelo batismo e acolhida da comerciante Lídia), desencadeia-se uma perseguição contra os missionários que trouxeram o evangelho à cidade de Filipos, primeira cidade europeia no caminho de Paulo. Irritado e cansado, Paulo expulsou um espírito adivinho de uma criada (escrava) que gritava atrás deles por muitos dias. O espírito saiu e com ele o lucro (como o dos porcos em Lc 8,26-39p) que os patrões tinham com as adivinhações dela. Eles agarraram Paulo e Silas e os acusaram diante dos magistrados de perturbar a cidade e pregar costumes estranhos aos romanos (vv. 16-22; cf. as acusações em 17,6-8; 19,24-27).

A multidão dos filipenses levantou-se contra Paulo e Silas; e os magistrados, depois de lhes rasgarem as vestes, mandaram açoitar os dois com varas. Depois de açoitá-los bastante, lançaram-nos na prisão, ordenando ao carcereiro que os guardasse com toda a segurança. Ao receber essa ordem, o carcereiro levou-os para o fundo da prisão e prendeu os pés deles no tronco (vv. 22-24).

Sem interrogatório nem processo, os magistrados cedem ao motim popular, infligem a Paulo e Silas uma pena dolorosa e vergonhosa e os lançam ainda na prisão (cf. sorte semelhante de Jeremias, 37,14-16).

À meia noite, Paulo e Silas estavam rezando e cantando hinos a Deus. Os outros prisioneiros os escutavam. De repente, houve um terremoto tão violento que sacudiu os alicerces da prisão. Todas as portas se abriram e as correntes de todos se soltaram (vv. 25-26).

Mesmo na situação triste da prisão, Paulo e Silas cantam hinos a Deus. A carta aos Filipenses também reflete esta alegria apesar de ser escrita numa outra prisão (cf. Fl 1,4.14; 3,1; 4,1.4.10).

O episódio da libertação milagrosa (vv. 25-34; cf. 5,19-21; 12,1-19) parece inserido posteriormente na narração do exorcismo da escrava, porque os vv. 35-40 retomam o fio da narração sem a menção da libertação milagrosa. Embora terremotos não sejam raros na  região, trata-se de um milagre para o autor.

A Bíblia do Peregrino (p. 2671) comenta: Lucas aproveita essa noite vazia e os acontecimentos para enchê-la com um relato de libertação em que Paulo segue as pegadas de Pedro (12,1-19). Os traços realistas fazem sentir mais as incoerências. Em que calabouço estão Paulo e Silas para serem ouvidos pelos demais presos? E para ficar a par do que acontece no cárcere, para gritar do seu lugar ao carcereiro? Que terremoto é esse que abre as portas e solta corpos sem produzir outros danos? Por que não escapam, como fez Pedro? Temos de entrar no espaço fantástico do relato para escutar o que nos transmite o narrador. Antes de tudo, a serenidade e a alegria dos dois presos espancados, que transformam o cárcere em casa de oração (cf. Sl 77,7; como os três jovem na fornalha da Babilônia, Dn 3). O terremoto é teofania, manifestação da divindade em ação (cf. Ez 38,19). Abrem-se as portas como o profeta promete (Is 45,1), e saem livres (Sl 124,7).

O carcereiro acordou e viu as portas da prisão abertas. Pensando que os prisioneiros tivessem fugido, puxou da espada e estava para suicidar-se. Mas Paulo gritou com voz forte: “Não te faças mal algum! Nós estamos todos aqui.” Então o carcereiro pediu tochas, correu para dentro e, tremendo, caiu aos pés de Paulo e Silas. Conduzindo-os para fora, perguntou: “Senhores, que devo fazer para ser salvo?” (vv. 27-30).

O carcereiro que permanece anônimo queria se matar, porque os carcereiros da época deviam sofrer a mesma pena daqueles que tinham deixado fugir. Mais maravilhosa do que a libertação pelo terremoto é a conversão do carcereiro, libertado por Paulo da tentativa de suicídio: o preso acabava sendo o libertador.

A primeira reação do carcereiro é ainda de um pagão diante do prodígio acontecido: Assustado e “tremendo”, porque percebe que tratou como malfeitores a enviados do céu, cai aos pés porque esses homens devem ser protegidos por algum deus, é preciso respeitá-los e escutá-los; talvez a divindade queira por meio deles comunicar uma mensagem. Sua pergunta se abre ao maior sentido, graças à ambiguidade, “para salvar-me” (Lc 3,10-14), de salvar a vida à salvação eterna (cf. 4,9.12).

Paulo e Silas responderam: “Crê no Senhor Jesus, e sereis salvos tu e todos os de tua família.” Então Paulo e Silas anunciaram a Palavra do Senhor ao carcereiro e a todos os da sua família. Na mesma hora da noite, o carcereiro levou-os consigo para lavar as feridas causadas pelos açoites. E, imediatamente, foi batizado junto com todos os seus familiares. Depois fez Paulo e Silas subirem até sua casa, preparou-lhes um jantar e alegrou-se com todos os seus familiares por ter acreditado em Deus (vv. 31-34).

Em Jesus morto e ressuscitado, “Senhor” de todos, a salvação é oferecida a todo aquele que crer, judeu ou pagão (cf. 10,43; 11,17; cf. a profissão breve de fé em Rm 10,9: “Se confessas que Jesus é Senhor … serás salvo”): “Sereis salvos tu e todos os de tua família (lit. casa)” Em rápida alternância, a família do carcereiro está presente, escuta, crê, ele cuida dos feridos (Lc 10,34) e se batiza “com todos os seus” e festeja o acontecimento com um banquete (cf. v. 15). A fé no Senhor Jesus traz liberdade, alegria e comunhão.

Quatro vezes mencionam-se em vv. 31-34 os familiares (lit.: sua casa, os seus). Já antes em Cesareia, o romano Cornélio foi batizado com sua família e seus amigos (10,24.48). Na cidade de Filipos, primeiramente a comerciante Lídia com sua família (16,15), agora o carcereiro “imediatamente”, e depois em Corinto, o chefe da sinagoga com toda sua família (18,8). Interessante que no cap. 16 se acumula o batismo de famílias inteiras, justamente após a decisão do Concílio de Jerusalém (cap. 15) de que o homem não precisa mais circuncidar-se para ser cristão, basta batizar. Assim a circuncisão dos meninos nas famílias dos judeus cede lugar ao batismo nas famílias cristãs. Nossa tradição de batizar crianças pode-se apoiar nesta prática do apóstolo de batizar famílias inteiras. Como não tem rio na prisão, podemos concluir que não precisa mergulhar num rio para batizar validamente (o batismo no dia de Pentecostes também sugere isso pelo número de pessoas, cf. 2,41).

Com certeza, em suas repetidas estadias em prisão, com sua paciência e palavras, Paulo deve ter convertido vários presos e também carcereiros. E esse era o prodígio mais importante e permanente, esse o terremoto que livrara tantos prisioneiros do medo da superstição pagã. “Onde está o Espírito do Senhor, está a liberdade” (2Cor 3,17; cf. Rm 8,2). “É para liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). “A verdade vos libertará” (Jo 8,31; cf. 14,6).

 

Evangelho: Jo 16,5-11

Com as palavras do evangelho de hoje, Jesus retoma o tema da última ceia: a sua partida não é uma separação, é o cumprimento de sua missão. Para ele, é o retorno ao Pai que o enviou (13,1-3); para nós, é a descida do Espírito Santo. Jesus inicia uma nova modalidade de presença: antes estava conosco, agora está em nós. A sua ausência não é morte da comunidade, mas o seu nascimento (cf. vv. 20-22), o seu crescimento.

Agora, parto para aquele que me enviou, e nenhum de vós me pergunta: ‘Para onde vais?’  Mas, porque vos disse isto, a tristeza encheu os vossos corações. No entanto, eu vos digo a verdade: É bom para vós que eu parta; se eu não for, não virá até vós o Defensor; mas, se eu me for, eu vo-lo mandarei (vv. 5-7).

A perspectiva da partida de Jesus ao Pai (“aquele eu me enviou”) enche os discípulos de “tristeza” (cf. vv. 20-22) que afoga qualquer outro pensamento (sobre a pergunta, cf. 13,36; 14,5). À tristeza da despedida se junta dor diante do futuro de perseguições que lhe anunciou. O fato de pô-los de sobreaviso servirá no momento da prova; no momento atual, é motivo de dor intensa.

No quarto evangelho, o Espírito é chamado paráclito (14,16.26; 15,26). Esta palavra grega se pode traduzir por “defensor”, advogado que intercede junto do Pai (cf. 1Jo 2,1) ou que pleita diante dos tribunais humanos (15,26.27; cf. Lc 12,11-12; Mt 10,19-20p; At 5,32) ou por “consolador” que faz superar a tristeza. Os discípulos a superarão quando forem capazes de entender o significado da partida de Jesus: “É bom” que Jesus vá: só sua partida – sua elevação na cruz – lhe permitirá acompanhar seus discípulos pelo Espírito e dar-lhes a vida (cf. 14,2).

O site da CNBB comenta: Os corações sempre se enchem de tristeza diante de uma separação. Os discípulos ficam tristes porque irão separar-se de Jesus. Mas Jesus os consola. Em primeiro lugar, sabemos que não temos mais a presença histórica de Jesus ao nosso lado, mas temos na verdade a presença perfeita de Jesus em nós, que é a presença do Ressuscitado, a qual se dá principalmente na Eucaristia, na Palavra, nos nossos encontros e nos pobres e necessitados, que são por nós acolhidos. Além disso, temos outro grande consolo que é a presença do Espírito Santo que nos foi enviado e veio até nós.

E quando vier, ele demonstrará ao mundo em que consistem o pecado, a justiça e o julgamento: o pecado, porque não acreditaram em mim; a justiça, porque vou para o Pai, de modo que não mais me vereis; e o julgamento, porque o chefe deste mundo já está condenado (vv. 8-11).

Em poucos versículos, Jesus traça a ação futura do Espírito em duas ações complementares: para fora, deixando convicto o mundo (vv. 8-11); para dentro, guiando a comunidade (vv. 12-15, evangelho de amanhã).

A condenação de Jesus e sua execução na cruz deviam aparecer aos homens como prova da sua impostura e do seu pecado, e porão ao mesmo tempo em evidência a legitimidade do proceder do mundo. Mas a intervenção do Espírito vai inverter a situação (p. ex. a conversão de Paulo). O Espírito Santo, que Jesus glorificado enviará (v. 7; 15,26), unirá o seu testemunho ao de Jesus (cf. 3,11), para que a justiça da causa do salvador brilhe aos olhos dos fieis.

O “pecado” do mundo é a incredulidade (8,21.24.46; 15,22). O pecado consiste em afastar-se de Deus e rejeitar seu enviado, na recusa da luz (3,19-21.36; 8,21-24; 9,41; 12,46; 15,21-25). O Espírito manifestará esse pecado em plena luz. Assim o Paráclito manifestará a “justiça”: o direito de Jesus de se chamar “Filho de Deus” (cf. 10,33; 19,7) porque fará sua “passagem” pela cruz para o Pai (13,1; 14,2s; 20,17), que demonstrará sua origem e seu ser celeste (6,62).

Então é o paráclito que revelará o verdadeiro sentido da morte de Jesus que significará a derrota e o “julgamento” (condenação) do “chefe (príncipe) deste mundo” (12,31s; 14,30; 16,33; não é o imperador romano, mas o diabo, cf. 6,70s; 8,41; 13,2.27; 1Jo 2,13). Por mais que os discípulos hão de sofrer pelo mundo hostil, podem ter confiança que o poder (príncipe) do mundo já foi vencido. O mundo hostil não representa o poder de Deus, mesmo que represente a maioria entre os homens, não é a justiça nem a verdade. O paráclito, defensor dos discípulos, torna-se juiz sobre o mundo.

A Bíblia do Peregrino (p. 2603) propõe uma “uma explicação baseada em usos judiciais do AT (especialmente do verbo hwkyh) nos quais as funções estavam menos diferenciadas. Antes de tudo, deve se observar que Jesus está para ser submetido a julgamento e condenado. O Pai abrirá outro processo em instância suprema, e empregará o Espírito como advogado e fiscal, como condutor do processo. Nele se inverterá o resultado. Com seu testemunho e argumentação (elegcsos) convencerá ou deixará convencido o mundo. Em termos judiciais, de uma culpa, de uma inocência e de uma condenação. Os que condenaram são os culpados, o condenado é inocente, o sistema que o condenou sai condenado. A culpa consiste em não ter crido, apesar dos sinais; crer e negar-se a crer são atitudes que comprometem toda a existência: “se não credes, não substituireis” (Is 7,7). A inocência se comprova porque Jesus é acolhido por Deus, “pois o ímpio não comparece perante ele” (Jó 13,16). A glorificação prova que Jesus foi vítima inocente (como o servo de Is 53). A condenação do diabo é pronunciada na morte de Jesus (cf. Sl 82) e começa a executar-se nos fieis (embora segundo 1Jo 5,19, o diabo conserve poder sobre o mundo). O que acontece na morte e ressurreição de Jesus continuará acontecendo pela atividade do Espírito. É um julgamento ao longo da história.

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