1º de Março de 2020, 1º Domingo da Quaresma: Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus’” (vv. 3-4).

1º Domingo da Quaresma

 1ª Leitura: Gn 2,7-9; 3,1-7

Nas primeiras leituras dos domingos da Quaresma percorre-se a história da salvação no AT. Hoje, no primeiro domingo da Quaresma ouvimos da primeira tentação no paraíso, correspondendo a de Jesus no deserto pelo diabo (cf. evangelho de hoje).

Depois do relato da criação escrita pela redação sacerdotal (Gn 1,1-2,4a: Deus cria através da sua palavra em sete dias = sete estrofes), a Bíblia tem uma narrativa de outro autor (antigamente chamado javista porque usa o nome de Deus Yhwh (cf. Ex 3,14), em português Javé na Bíblia Pastoral, ou Iahweh na Bíblia de Jerusalém, ou traduzido por “Senhor”, já na versão grega da LXX e na maioria das edições como também em nossa liturgia.

Este segundo relato apresenta a criação do homem (hebraico: adam, Adão) a partir do pó da terra (adamá) no jardim de Éden, e da mulher a partir da costela de Adão (2,4b-25). Não é um relato científico, mas poesia, uma narrativa simbólica (mito) na qual o autor se inspira em associações de palavras da sua língua hebraica.

A Bíblia de Jerusalém (p. 33s) comenta a seção 2,4b-3,24: Não é, como se diz frequentemente, uma “segunda narrativa da criação”, seguida de uma “narrativa da queda”; são duas narrativas combinadas que utilizam tradições diversas: uma narrativa da criação do homem, distinta da criação do mundo e que só completa com a criação da mulher e com o aparecimento do primeiro casal humano (2,4b-8.18-24), e uma narrativa do paraíso perdido, da queda e do castigo, a qual começa em 2,9-17 e continua em 3,1-24.

A Bíblia do Peregrino (p. 18) comenta: O estilo difere totalmente do procedente. O autor consegue sintetizar a impressão de um mundo fantástico, primigênio, com notável grandeza psicológica. É obra literária madura, provavelmente tardia (anteriormente, se costuma atribuir ao Javista e situar no século X). Vejam-se alguns dos motivos mitológicos em Ez 28,1-19.

Outros exegetas consideram Gn 2 anterior a Gn 1, porque apresenta Javé Deus de forma mais rústica: Ele cria não apenas através da palavra (como rei ou intelectual em Gn 1), mas como agricultor, plantando um jardim (v. 8), com mãos de artesão (oleiro) modela Adão e os animais (vv. 7.19), e com mãos de anestesista e cirurgião forma a Eva (vv. 21-22); ainda atua como alfaiate depois da queda da casal (3,21). Não se fala de dias nem do sábado como na redação sacerdotal de Gn 1. Também a sequência da criação é diferente: em Gn 1, primeiro as plantas, depois os animais, ao final o casal humano; em Gn 2, primeiro o homem, depois as plantas (jardim), os animais e ao final só a mulher. Estas diferenças entre os dois relatos mostram que a Bíblia não pretende dar explicações científicas. Se fosse ciência, precisaria unificar os dois relatos numa única teoria com coerência lógica. Mas o relato bíblico é mais poesia, menos lógico, mais psicológico (sonho, mito).

Reconhecer estes relatos bíblicos como mitos simbólicos quer dizer que não são mais verdadeiros quando confrontados com a ciência? Mas o simbolismo da Bíblia revela verdades mais profundas do que o mero fato científico (da mesma maneira, a psicanálise analisa os símbolos dos sonhos, que são mitos pessoais, e descobre coisas importantes para a vida da pessoa). Assim o simbolismo da Bíblia nos diz muito sobre a posição do homem na criação e a convivência ideal de homem e mulher (Adão e Eva somos todos nós), constitui valores enquanto a ciência só observa.

É desta maneira simbólica que se deve interpretar o relato da criação do ser humano, não ao pé da letra. “O literalismo propugnado pela leitura fundamentalista constitui uma traição…, evita a íntima ligação do divino e do humano nas relações com Deus.” (Bento XVI em Verbum Domini, n.º 44)

O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida e o homem tornou-se um ser vivente (2,7).

O autor não se baseia em observação científica, mas na associação da língua hebraica: Adão (adam em hebraico significa simplesmente homem, ser humano) foi criado a partir do solo (adamáh é a terra vermelha, cultivável) do qual depende a vida dele (cf. 3,19). Este nome coletivo vai se tornar o nome próprio do primeiro ser humano, Adão (cf. 4,25; 5,1.3).

Javé Deus trabalha à maneira de oleiro, não com a mera palavra (vv. 7.19; Is 29,16; 45,9; 64,7; Sl 33,15; 94,9; Tb 8,6; Jr 18,1-9; Rm 9,20-21). No Egito, conhecia-se o gesto do deus oleiro Hnum, que modelava segundo os seus contornos. Javé Deus “formou o homem do pó da terra” (para onde este voltará depois da queda cf. 3,19; Jó 10,8-11).

Seu alento é princípio de vida (Is 42,5; Zc 12,2b); não produz apenas uma imagem (cf. o fabricador de ídolos em Sb 15-7-11), mas transforma a estátua de argila em ser vivo. “Ser vivente” traduz aqui o vocábulo nefesh, que designa o ser animado por um sopro vital (manifestado também pelo “espírito”, ruah: 6,17; Is 11,2; cf. Sl 6,5). “O sopro da vida” (neshama) anima a vida carnal do homem (cf. Pr 20,27; Jó 27,3; 34,14…); outros textos falam da nefesh (alma?), princípio vital que está na garganta (respiração) ou no sangue (9,4-5; Lv 17,11), ou ainda do “sopro” ou “atmosfera” (ruah, o ar em movimento), externo ao homem, embora seja necessário à vida e o homem possa assimilá-lo (cf. 6,3; Jó 27,3; 34,14; Sl 104,29-30).

Depois, o Senhor Deus plantou um jardim em Éden, a oriente, e ali pôs o homem que havia formado (2,8).

Começa com o movimento clássico de libertação, “tirar de… introduzir em…” (vv. 21-22). O primeiro homem é tirado da terra (v. 7) e levado para ser introduzido no parque expressamente plantado para ele (v. 8). Aqui Javé Deus age como agricultor, plantando um “jardim” (cf. Sl 80,9-16; Is 5,2-7; Jr 2,21).

O “Éden” é a estepe, mas evoca uma palavra hebraica que significa “prazer, delícia”: é um parque de recreação. A Bíblia de Jerusalém (p. 33) comenta: “Jardim” é traduzido por “paraíso”, na versão grega, e depois em toda a tradição. “Éden” é um nome geográfico que foge de qualquer localização, e inicialmente pode ter tido o significado de “estepe”. Mas os israelitas interpretam a palavra segundo o hebraico “delícias”, raiz ‘dn. A distinção entre Éden e o jardim, expressa aqui e no v. 10, se esfuma em seguida: fala-se do “jardim de Éden” (v. 15; 3,23.24). Em Ez 28,13 e 31,9, Éden é o “jardim de Deus”, e em Is 51,3, Éden, o “Jardim de Iahweh”, é o oposto ao deserto e à estepe.

Segundo 2,7 e 4,16, Éden é situado “a oriente” da Mesopotâmia, por onde passam os rios Eufrates e Tigre (v. 14) tornando a terra fértil, num “jardim de Éden” (v. 15). Uns pesquisadores o situam no sul da Arábia (hoje Iêmen), por onde deviam passado os primeiros seres humanos para fora da África.

E o Senhor Deus fez brotar da terra toda sorte de árvores de aspecto atraente e de fruto saboroso ao paladar, a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do conhecimento do bem e do mal (2,9).

Duas árvores se destacam no meio do jardim. A “árvore da vida” (Pr 3,18; 11,30; 13,12; 15,4) e que tornou-se símbolo da imortalidade (cf. 3,22) e a “árvore do conhecimento do bem e do mal” (v. 9). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 26) comenta: Este texto recebeu numerosas interpretações. A “árvore da vida” (ou planta da vida) era conhecida no Antigo Oriente que dava este nome à vegetação de que se alimentavam animais e homens, e até os deuses nos seus santuários; como os deuses não morriam, podia-se ver nela um alimento de imortalidade. O livro dos Provérbios (3,18) associa a árvore da vida à aquisição da sabedoria divina.

“Conhecimento do que seja bom ou mau”, isto é, o saber que permite ser feliz ou infeliz, melhor que a tradução comum, “a árvore de conhecimento do bem e do mal”, que dá a esta árvore um significado excessivamente moral ou intelectual. O conhecimento era entre os israelitas mais experimental que teórico. A ciência da felicidade e da infelicidade (Dt 1,39; 1Rs 3,9; Is 7,15) é um discernimento (2Sm 19,36) de caráter universal (Gn 24,50; 31,24) que permite julgar tudo (2Sm 14,17), para a felicidade e a infelicidade própria dos outros. O Antigo Oriente, que conhecia “árvores da verdade”, ao que parece, não menciona tal árvore antes da Bíblia. 

Para ser breve, nosso texto na liturgia omite a parte da criação da mulher (2,18-25) e a proibição de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, sob pena de morte (2,16s). A fórmula do mandamento, “podes …, não podes …”, e a lei com cláusula penal, “serás réu de morte”, procedem dos códigos israelitas (cf. Ex 20,9s; 21,12-17). “Sem dúvida, hás de morrer (lit. “de morte hás de morrer”), isto é, morrerás com certeza. O homem tirado do pó da terra (solo) está sujeito à morte como toda criatura terrestre, mas teria podido escapar a ela pela fidelidade a Deus. Ao negligenciar a advertência divina, o homem se expõe fatalmente à morte (cf. 3,19).  

“Bem e mal” significa a totalidade na esfera dos valores. A Bíblia de Jerusalém (p. 33) comenta: Este conhecimento é um privilégio que Deus se reserva e que o homem usurpará pelo pecado (3,5.22). Não se trata, pois, nem da onisciência, que o homem decaído não possui, nem do discernimento moral, que o homem inocente já tinha e que Deus não pode recusar à sua criatura racional. É a faculdade de decidir por si mesmo o que é bem e o que é mal, e de agir consequentemente: reivindicação de autonomia moral pela qual o homem nega seu estado de criatura (cf. Is 5,20). O primeiro pecado foi um atentado à soberania de Deus, um pecado de orgulho. Esta revolta exprimiu-se concretamente pela transgressão de um preceito estabelecido por Deus e representado sob a imagem do fruto proibido.

A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “É verdade que Deus vos disse: “Não comereis de nenhuma das árvores do jardim?” E a mulher respondeu à serpente: “Do fruto das árvores do jardim, nós podemos comer. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus nos disse: ‘Não comais dele nem sequer o toqueis, do contrário, morrereis.’” A serpente disse à mulher: “Não, vós não morrereis. Mas Deus sabe que no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal” (3,1-5).

A serpente serve aqui de máscara para um ser hostil a Deus e inimigo do homem. Nela a Sabedoria, e depois o NT, e toda a tradição cristã, reconheceram o Adversário, o Diabo, Satanás (cf. Jó 1-2). Personificação do mal ativo, sedutor ou agressor. Ben Sirac não a menciona (Eclo 15,11-20: origem do pecado); Sb 2,24 fala da “inveja do diabo”; Ap 12,8-9 acumula nomes, identificando e interpretando: “dragão, serpente primordial, satanás, diabo, acusador” (“acusador” traduz o grego diábolos, o qual traduz o hebraico satan).

Primeiramente, a serpente distorce a bondade de Deus apresentando-o como alguém que proíbe tudo e tira a liberdade do homem. Ainda hoje é uma tentação de apresentar e entender Deus assim (cf. a luta de Jesus e de Paulo contra a interpretação da lei pelos fariseus). Gramaticalmente a frase da serpente fica suspensa. Ela é voluntariamente ambígua, podendo igualmente significar: “Não comereis de todas as árvores do jardim?”, o que a mulher vai logo retificar. O mandamento de Deus se refere apenas à árvore do conhecimento do bem e do mal: “Não comais dele nem sequer o toqueis, do contrário, morrereis” (cf. 2,17).

A Bíblia de Jerusalém (p. 33) comenta: A mesma expressão é empregada nas leis e nas sentenças que preveem uma pena de morte. Comer o fruto não provoca uma morte instantânea: Adão e Eva sobrevivem, e a condenação de 3,16-19 não fala da morte, senão como termo de uma vida miserável. O pecado, simbolizado pelo fato de comer o fruto, merece a morte: o texto não diz mais que isso (cf. 3,3).

“Não morrereis!”. Com astúcia, a serpente faz da morte inevitável (2,17) uma morte imediata (3,4). Distorcendo a declaração de Deus, ela transforma uma advertência salutar em uma mentira. “Sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal”. Este conhecimento (cf. 2,9) é o privilégio dos elohim (deuses), seres mais inteligentes e mais poderosos que o homem (3,22). O Senhor é o Deus único, o Elohim por excelência. O que o relato condena não é a posse do conhecimento, pois Deus o outorgará ao homem, mas a maneira como ele foi adquirido, pela violação da prescrição divina (cf. Ez 28,2)

Além disso, o nome hebraico de “serpente” coincide com “vaticínio”. O falso oráculo é arma da serpente contra Eva: tira a base da proibição de Deus, dando-lhe intenções escusas, promete como bem o que é mal, pois conhecer o mal por experiência é um mal (sobre semelhantes oráculos: Sl 14; Hab 2,18: “mestre de mentiras”). Em Jo 8,44 o diabo é o “pai da mentira”, enquanto Jesus é “verdade e vida” (14,6; cf. 8,32; 18,37s).

Há uma aproximação desejada pelo autor, entre os seres humanos pelados, “nus” (´arummim) de 2,25 e o animal mais “astuto” (´arum) de 3,1. No Antigo Oriente, a serpente simbolizava potência (Canaã) e força política (Egito). Na epopeia babilônica de Guilgamesh (que influenciou também a narrativa do dilúvio), a serpente roubava ao herói a planta da imortalidade. Seduzidos pela astúcia da serpente (v. 4), o homem e a mulher vão adquirir um saber que efetivamente lhes revelará a sua nudez, isto é, a sua fraqueza (v. 7).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 25) comente o contexto: No Egito antigo, a serpente na tiara do faraó simbolizava o olho do deus Sol, que com seu hálito podia destruir os inimigos. Em Canaã e Israel, a serpente era símbolo de Baal, deus da fertilidade das plantas e animais. Na religião oficial, legitimava a concentração do poder nas mãos do rei. Conflitos, violência e opressão se aninham nas estruturas sociais dominadas pelo faraó e pelos reis de Israel, e na acumulação de poder e riqueza que os sustenta, interferindo duramente na vida do povo: a dignidade diminui (vv. 7-8); a solidariedade enfraquece (vv. 9-13); as relações entre pessoas e animais, o parto e o trabalho, podem incluir violência e dominação, trazendo sofrimento e morte (vv. 14-19.22).

Por trás dessa roupagem mítica, pode-se ouvir a voz das comunidades camponesas e o anúncio dos profetas que denunciam o poder da serpente nas monarquias de Israel (1Rs 9,16; 16,31-32; 2Rs 18,4; Os 2,10-15). Ainda hoje muitos seguem a lógica da serpente, gerando tantos males que atingem a nós e a todos as outras formas de vida no planeta. Mas a última palavra não é da serpente. Javé veste o homem e a mulher e os coloca novamente para cultivar o solo, de ontem tinham sido tirados, dando-lhes assim a chance de religar-se com o projeto centrado na vida digna para todos.

A mulher viu que seria bom comer da árvore, pois era atraente para os olhos e desejável para obter conhecimento. E colheu um fruto, comeu e deu também ao marido, que estava com ela, e ele comeu (3,6).

A árvore proibida é tentação sensível e intelectual, “atraente para os olhos e desejável para obter conhecimento” Diferente das outras árvores do jardim, esta dá acesso a uma perspicácia extraordinária que garante o sucesso. Paulo se refere em 2Cor 11,3: “Receio, porém, que, como a serpente seduziu Eva por sua astúcia, vossos pensamentos se corrompam, desviando-se da simplicidade devida a Cristo”

“Deu também ao marido, que estava com ela”; a união entre o homem e a mulher volta-se contra as intenções do Criador. A tradição machista culpou Eva e com ela as mulheres (cf. v. 12; 1Tm 2,14), mas a serpente se aproxima a Eva por ser a parte mais fraca (na sociedade machista). Depois, Adão cede igualmente à tentação.

Então, os olhos dos dois se abriram; e, vendo que estavam nus, teceram tangas para si com folhas de figueira (3,7).

Parte da propaganda falsa da serpente se cumpriu: “os olhos dos dois se abriram”, mas não por serem “como Deus”, mas reconhecendo sua própria condição humana, a fraqueza que precisa de proteção, a nudez que não é mais inocência (2,25), precisa-se esconder com roupas (em 3,21, Deus faz para o casal túnicas de pele).

É o despertar da concupiscência (cf. Tg 1,13-15), primeira manifestação da desordem que o pecado causa na harmonia da criação. A relação mútua se turba com a vergonha, e surge o encobrimento. Também a relação com Deus se turba com a cautela e o medo (agora o casal se esconde de Deus (v. 8; cf. Ap 3,17s; Eclo 23,18s).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 28) comenta: Com este relato bem antropomórfico, no qual todas as imagens se encaixam e equilibram, o autor mostra as consequências da infidelidade do homem à palavra de Deus. O que o homem e a mulher descobrem é apenas a sua fraqueza e, a partir de agora, escondem-se um do outro, como se esconderão de Deus.

 

2ª Leitura: Rm 5,12-19 (ou 12.17-19)

Ouvimos hoje um texto que se tornou importante na evolução da doutrina do “pecado original” na igreja ocidental (St.º Agostinho). Ainda que não se encontre este termo na carta de Paulo, é conceito válido de reformular o conteúdo central desta leitura. Uns detalhes deste texto, porém, são difíceis de traduzir e interpretar (cf. o comentário extenso na Tradução Ecumênica da Bíblia, p. 2180s).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1374) comenta: A carta recorre a duas figuras-símbolo, como tipos ou modelos: Adão e Jesus. São protótipos ou antítipos em mútuo contraste entre lei e liberdade, pecado e graça, morte e vida. Adão prefigura o ser humano falido, e Cristo representa a humanidade agraciada por Deus (1Cor 15,21)

O pecado habita o homem (7,14-24); ora, a morte, castigo (salário) do pecado (6,23), entrou no mundo a partir da falta de Adão (Sb 2,23s: pela inveja do diabo); disso Paulo conclui que o próprio pecado entrou na humanidade por meio desta falta inicial (pecado original); Paulo vê um paralelo entre a obra nefasta do primeiro Adão e a reparação superabundante de Cristo, o “segundo Adão” (vv. 15-19; 1Cor 15,21s.25). É na qualidade de novo chefe da humanidade, imagem na qual Deus restaura sua criação (8,29; 2Cor 4,4.6; 5,17) que Cristo salva a humanidade.

Em todo trecho é central a relação numérica “um só” e “todos”.

(Irmãos, consideremos o seguinte:) O pecado entrou no mundo por um só homem. Através do pecado, entrou a morte. E a morte passou para todos os homens, porque todos pecaram (v. 12).

O texto original começa com um “como”, mas termina sem membro correspondente. A Bíblia do Peregrino (p. 2714) comenta: Como se Paulo se detivesse para limpar o terreno antes de chegar à sua afirmação central. Contudo, já no primeiro v. deixa estabelecido um fato, “por um só homem entrou”, sem tentar explicá-lo. Também afirma sem mais a vinculação entre pecado e morte (cf. 1Jo 4,10). Todos pecaram, também pessoalmente: 2,12; 3,9.23; 1Cor 6,18; Ef 4,26). Ainda que se difunda como um contágio, não é uma fatalidade, e sim uma responsabilidade (cf. Tg 1,13-15).

Paulo expõe a libertação do pecado e da morte, na grande comparação entre Adão e Cristo. “Adão” (v. 14) em hebraico significa simplesmente “homem, ser humano”, não é um nome próprio, mas um protótipo.

“Porque todos pecaram”, sentido controvertido: seja por uma participação no pecado de Adão (“em Adão todos pecaram”), seja por seus pecados pessoais (3,23). A Bíblia de Jerusalém (p. 2127) comenta: Neste caso, a expressão grega se traduziria melhor “mediante o fato de que”, introduzindo a condição realizada que permitiu à morte (eterna) atingir todos os homens. Com efeito, no caso do adulto, único aqui visado, o poder do pecado que entrou no mundo com Adão produziu seu efeito de morte através dos pecados pessoais que ratificam de certa maneira a revolta de Adão.

Pecado e Morte são personificações literárias das quais se predicam os verbos: “entrou, passou, difundiu-se, estava em, reinou”. Podemos comparar estas personificações com outras imagens, como a serpente de Gn 3 – não citada por Paulo (desmitizada em Eclo 21,2) ou com o animal acuado que espreita (Gn 4,7); a pastora Morte em Sl 49,15; o oráculo em Sl 36,2.

Deve-se entender pecado e morte em sentido forte: Pecado que escraviza (6,12) e faz romper com Deus. O pecado separa o homem de Deus. Esta separação já é uma “morte”: morte espiritual e “eterna”, da qual a morte física é sinal (cf. Sb 1,13; 2,24; Hb 6,1). Morte total não é só física, mas a primeira e a “segunda” (1Cor 15,56; Ap 2,11). Nos próximos vv., deve-se entender o contraste da dupla Pecado e Morte, isto é Justiça e Vida, no sentido forte de relação positiva com Deus (justiça) e vida eterna.

Na realidade, antes de ser dada a Lei, já havia pecado no mundo. Mas o pecado não pode ser imputado, quando não há lei. No entanto, a morte reinou, desde Adão até Moisés, mesmo sobre os que não pecaram como Adão, – o qual era a figura provisória daquele que devia vir – (vv. 13-14).

A Bíblia do Peregrino (p. 2714) comenta: Em Gn 2-3, Adão recebeu e violou um preceito positivo, “não coma”; isso porém não é a lei que Paulo se refere. A imputação de um reato supõe uma lei promulgada.

No raciocínio jurídico, Paulo pensa: Como os seres humanos antes de Moisés, mesmo sendo pecadores, podiam ser punidos com a morte, se não havia lei promulgada que lhe diz respeito pessoalmente? A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2180) comenta: No v. 14, Paulo responde: os pecados cometidos pelos homens que viveram entre Adão e Moisés tinha em si mesmos um poder de morte: a morte não é uma sanção puramente exterior, ela é uma consequência da natureza mesma do pecado, cujo reino se instaurou pela culpa de Adão … se a morte reinou sobre todos os homens, mesmo antes de Moisés, é porque, sabendo ou não, os homens estavam encerrados dentro de uma economia de morte (Rm 11,32; Gl 3,22), inaugurada em Adão, que representa e inclui toda humanidade pecadora, sujeita ao poder da morte até o dia da vitória do Cristo.

A lei de Moisés chegou mais tarde e transformou a falta ética em delito jurídico, podendo conter cláusulas penais. Na visão de Paulo, a lei provocou ainda a multiplicação das transgressões (v. 20a), cf. Pr 9,17: “A água roubada é mais doce”.

Adão era a “figura provisória” (lit. tipo; cf. 1 Cor 10,6) “daquele que devia vir”, de Cristo “primogênito de toda criatura” (Cl 1.15; cf. Rm 8,29). Também a comparação, acenada no v. 12 (e interrompida pelos vv. 13-14) se transforma num contraste no v. 15.

Mas isso não quer dizer que o dom da graça (de Deus) seja comparável à falta (de Adão)! A transgressão de um só levou a multidão humana à morte, mas foi de modo bem mais superior que a graça de Deus, ou seja, o dom gratuito concedido através de um só homem, Jesus Cristo, se derramou em abundância sobre todos (v. 15).

Nossa liturgia traduz por “falta” e “transgressão” o grego paráptoma cuja etimologia é “queda mais além”. Seu oposto não é manter-se de pé, mas receber um favor (graça, perdão), que, por vir de Deus e ser concedido por meio de Cristo, supera imensamente a “queda” humana. “A multidão à morte” (lit.: morreu) inclui todos os seres humanos (cf. v. 18; Mc 10,45p; Is 53,11s).

Também, o dom é muito mais eficaz do que o pecado de um só. Pois a partir de um só pecado o julgamento resultou em condenação, mas o dom da graça frutifica em justificação, a partir de inúmeras faltas (v. 16).

O julgamento de Gn 3,14-19. A oposição é aqui julgamento/condenação e graça(perdão)/justificação. A última é “muito mais eficaz” e supera em quantidade (“um só pecado” / “inúmeros faltas”).

Por um só homem, pela falta de um só homem, a morte começou a reinar. Muito mais reinarão na vida, pela mediação de um só, Jesus Cristo, os que recebem o dom gratuito e superabundante da justiça (v. 17).

Os sujeitos do verbo “reinar” se opõem assimetricamente: de um lado “a morte começou a reinar”, do outro lado “reinarão na vida” (lit. “vivos”) os que recebem “o dom gratuito e superabundante da justiça” (ou: o favor abundante de uma justiça gratuita).

Como a falta de um só acarretou condenação para todos os homens, assim o ato de justiça de um só trouxe, para todos os homens, a justificação que dá a vida (v. 18).

Nesse v., Paulo chega à formulação definitiva numa oposição (rimada em grego: paraptómatos/dikaiómatos), equivalente a transgressão (“falta”) e cumprimento (“justificação”) da justiça; ao contrário, evita a consonância da outra oposição, que equivale à condenação/sentença de vida.

Com efeito, como pela desobediência de um só homem a humanidade toda foi estabelecida numa situação de pecado, assim também, pela obediência de um só, toda a humanidade passará para uma situação de justiça (v. 19).

Aqui Paulo repete a mesma ideia nas categorias de desobediência/obediência (cf. Fl 2,8 na dimensão cristológica). A justificação é atual, não somente no juízo final, mas à medida que os homens forem renascendo em Cristo (na fé batismal, cf. 6,3-11).

Nossa liturgia omite o resumo nos vv. finais 20 e 21 (“… onde o pecado abundou, superabundou a graça. Enfim, como o pecado tem reinado pela morte, que a graça reine pela justiça, para a vida eterna, por Jesus Cristo, Senhor nosso”).

Entre todas as outras interpretações, há uma autorizada pelo Concílio de Trento no ano 1546 (DS 1510-1516) que a Bíblia do Peregrino (p. 2714) comenta: Em resumo afirma: que o pecado de Adão não afetou a ele apenas, mas toda a sua descendência; e não só nas consequências de penas e morte, mas também no próprio pecado; que se transmite por propagação e não por imitação; que o único remédio é Cristo.

Esta doutrina do “pecado original”, desenvolvida por St.º Agostinho a partir de Rm 5 (e sobre o batismo do qual Paulo fala em Rm 6), teve efeitos colaterais negativas como interpretações que favoreceram conversões e batismos à força e o medo de que crianças não batizadas não pudessem entrar no céu. Bento XVI corrigiu este último detalhe, abolindo o “limbo”, espaço imaginado (antessala do paraíso) onde ficariam as crianças mortas que não foram batizadas.

Mas há de assegurar dois pontos importantes da doutrina do pecado original: Todo ser humano nasce dentro de uma história marcada por um complexo de limitações e culpas e não consegue simplesmente se ausentar ou redimir desse por si próprio, portanto é necessitado de salvação (remissão, redenção, libertação). Todo ser humano, porém, sem exceção, pode ser redimido pela fé em Cristo.

 

Evangelho: Mt 4,1-11

Como de costume, lê-se a tentação de Jesus no primeiro domingo da Quaresma. Mt e Lc já encontraram um relato breve em Mc 1,12s, mas inseriram um diálogo a partir de três tentações específicas. Este acréscimo estava na fonte Q (coleção de palavras) que ambos usaram além de Mc (ou já encontraram inserido numa segunda edição de Mc, Deuteromarcos).

Mc, o evangelho mais velho, apresentou a tentação no deserto em apenas dois versículos (Mc 1,12-13), mostrando que o messias Jesus, com o Espírito Santo recebido pelo batismo, é impelido para o deserto onde estava por “quarenta dias sendo tentado por Satanás”. Mc não falou de jejum nem do conteúdo das tentações, mas indiretamente da vitória de Jesus trazendo de volta a situação do paraíso perdido por Adão (“vivia entre feras e os anjos o serviam”).

Seguindo a fonte Q, Mt apresenta as três tentações numa amplitude crescente: a fome no deserto, o espetáculo religioso no templo e o poder sobre o mundo inteiro (Lc coloca a do templo no final, porque seu evangelho começa e termina em Jerusalém).

Além de copiar de Mc e Q, Mt destaca um tema preferido para seus leitores judeu-cristãos: Jesus, como novo Moisés (cf. a infância no cap. 2; o sermão na montanha no cap. 5; a despedida no monte em 28,16-20), é obediente à Palavra do Antigo Testamento (cf. 5,17) e cumpre a vontade do Pai (cf. 3,15; 6,10b etc.).

A Bíblia do Peregrina (p. 2323) comenta: O evangelho encena dramaticamente o grande confronto, entre o projeto salvador do Pai e o antiprojeto apresentado pelo rival (“diábolos”, o “Satã” do AT; cf. Jó 1-2). O milagre fácil e injustificado, o espetáculo gratuito abusando dos anjos, e sobretudo o poderio universal, submetendo-se às regras do jogo impostas pelo pretenso soberano do mundo. Contra isso, três citações tiradas do contexto do êxodo: Dt 8,3; 6,16; 6,13 (cf. Ex 17,1-7 e Nm 20,7-13).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1861) comenta: Esta narração deriva de uma tradição remota, quanto ao essencial, a Jesus (cf. Mc 1,12-13): de fato, a recusa do messianismo terreno, que é sua afirmação central, data do tempo pré-pascal, e o combate com Satanás só chegou ao termo com a morte e a ressurreição de Jesus. Esta recordação foi reassumida por Mt e Lc num estilo de controvérsia, mostrando a superioridade de Jesus sobre seu adversário. Aí Jesus aparece como o novo Israel tentado no deserto, como indicam as citações expressas do Deuteronômio (8,3; 6,16; 6,13).

(Naquele tempo) O Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo. Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e, depois disso, teve fome (vv. 1-2).

“Naquele tempo” é introdução costumeira da nossa liturgia. Nos dois vv. anteriores (3,17s), o Espírito Santo desceu sobre Jesus no batismo e o Pai o declarou “Filho”. A tentação no deserto segue logo em seguida (já em Mc). Em Mt e Lc, é o Espírito pelo qual já foi concebido no ventre de Maria e que desceu sobre ele no batismo como sinal de começar atuar como messias (cf. Is 11,2; 42,1; 61,1). O Espírito, “sopro” e energia criadora de Deus, já dirigia os profetas (Is 11,2; Ez 3,12; 11,1) e líderes libertadores (Jz 3,10; 1Sm 16,3). Ele dirige o próprio Jesus no cumprimento da sua missão (cf. 3,16s; Lc 4,1) como também irá incentivar e acompanhar a Igreja no seu início e no seu desenvolvimento (At 1,8).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1842) comenta: Jesus é conduzido ao deserto para ser tentado durante quarenta dias, como outrora Israel foi tentado por quarenta anos (Dt 8,2.4; cf. Nm 14,34). Aí passa por três tentações análogas, reforçadas pelas citações: a de buscar seu alimento sem o auxílio de Deus (Dt 8,3; cf. Ex 16), a de tentar a Deus para satisfazer-se (Dt 6,16; cf. Ex 17,1-7), a de renegá-lo para seguir os deuses falsos que asseguram o poder deste mundo (Dt 6,13; cf. Dt 6,10-15; Ex 23,23-33).

A Bíblia do Peregrino (p. 2323) comenta: Deve-se evitar chama-las de tentações, porque são provações. Como o povo de Israel, passado ao mar Vermelho e guiado por Moisés, é posta à prova repetidas vezes no deserto, assim Jesus, depois do batismo, é guiado pelo Espírito e enfrenta provações no deserto. O povo falhou várias vezes, Moises uma vez. Jesus supera todas as provas.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1861) comenta: O número “quarenta” (= os anos de uma geração) designa um período bastante longo, cuja duração exata não se conhece (Gn 7,4; Ex 24,18). Aqui, este prazo talvez evoque o tempo que Moisés passou no alto do monte (Ex 34,28; Dt 9,9.18); provavelmente simbolizava os quarenta anos passados por Israel no deserto (Nm 14,34), aos quais já se referiam os quarenta dias da caminhada de Elias (1Rs 19,8).

Mt destacou o jejum de Jesus, não apenas por “quarenta dias” (Lc 4,2), mas também “quarenta noites”, como Moisés (Ex 34,28; Dt 9,1.18) e Elias (depois de ser alimentado por um anjo, cf. 1Rs 19,5-8); “depois disso, teve fome”, como o povo.

“Diabo”, grego diábolos, é tradução do hebraico satan (“Satanás”, adversário, acusador, cf. Jó 1-2), é caluniador (cf. Gn 3,1-7; Sb 2,24; Jo 8,44) que causa confusão e destruição. A Bíblia de Jerusalém (p. 1842) comenta: O portador desse nome – visto que se dedica a levantar os homens à transgressão – é considerado como responsável por tudo aquilo que se opõe à obra de Deus e de Cristo (13,39p; Jo 8,44; 13,2; At 10,38; Ef 6,11; 1Jo 3,8; etc.). A sua derrota assinalará a vitória final de Deus (Mt 25,41; Hb 2,14; Ap 12,9.12; 20,2.10).

Então, o tentador aproximou-se e disse a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães!” Mas Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus’” (vv. 3-4).

A fome de Jesus é ocasião para fazer um milagre egoísta, não ordenado por Deus. Em 14,14 e 15,32, Jesus multiplicará os pães para o povo faminto, porque sentiu compaixão.

Mt chama aqui o diabo o “tentador”; outros, principalmente os fariseus, também o serão (16,1; 19,3; 22,18.35): a narrativa atual quer fornecer o sentido dessas diversas tentações que Jesus enfrentará ainda. No contexto de Dt 8,3 é Deus que tenta seu povo no deserto, ou melhor, o coloca à prova como Pai que educa. Um pai não dá a seu filho uma pedra quando lhe pede pão (Mt 7,9; cf. também Sb 2,18 e o contexto).

“Se és Filho de Deus” ou seja: Já que és o Filho de Deus.  A argumentação repete a palavra celeste pronunciada no batismo (3,17). A Bíblia de Jerusalém (p. 1843) comenta: O título bíblico “Filho de Deus” não indica necessariamente uma filiação natural; antes, pode sugerir simplesmente uma filiação adotiva, que resulta de uma escolha divina, estabelecendo relações de intimidade especial entre Deus e a criatura. Assim, a expressão se aplica aos anjos (Jó 1,6), ao povo eleito (Ex 4,22; Sb 18,13), aos israelitas (Dt 14,1; Os 2,1; cf. Mt 5,9.45; etc.), aos seus chefes (Sl 82,6). Segue-se que, quando usado a respeito do Rei-Messias (1Cr 17,13; Sl 2,7; 89,27), não se conclui necessariamente que este seja mais do que humano; e não há necessidade de ver mais do que isso no pensamento de Satanás (Mt 4,3.6), dos endemoniados (Mc 3,11; 5,7; Lc 4,41) e, com tanto mais razão, do centurião (Mc 15,39; cf. Lc 23,47). Mesmo a voz ouvida do batismo de Jesus (Mt 3,17) e na transfiguração (17,5) por si só não sugeriria mais do que o favor especial concedido ao Messias-Servo; e a pergunta do Sumo Sacerdote (26,63) não ia certamente além desse sentido messiânico. Entretanto, o título “Filho de Deus” pode ter o sentido mais elevado de filiação propriamente dita. Ora, Jesus sugeriu claramente essa significação especial ao designar-se como “o Filho” (21,37), superior aos anjos (24,36), tendo Deus por “Pai”, em sentido todo especial (Jo 20,17; e cf. “meu Pai”, Mt 7,21; etc.), pois que mantinha com ele relações únicas de conhecimento e de amor (Mt 11,27). Essas declarações, reforçadas por outras a respeito da natureza divina do Messias (22,42-46) e a respeito da origem celeste do “Filho do Homem” (8,20+), confirmadas finalmente pelo triunfo da ressurreição, deram à expressão “Filho de Deus” o sentido propriamente divino que se encontra, por exemplo, em São Paulo (Rm 9,5). Se os discípulos não tiveram uma consciência bem clara do fato durante a vida de Jesus (entretanto Mt 14,33 e 16,16, acrescentando essa expressão ao texto mais primitivo de Mc, refletem, sem dúvida, uma fé mais evoluída), nem por isso a fé que alcançaram definitivamente após a Páscoa, com o auxílio do Espírito Santo, apoia-se menos realmente sobre as palavras históricas do Mestre, que revelou – até onde podiam suportá-lo os seus contemporâneos – a consciência de ser ele o próprio Filho do Pai.

Mt é consciente da citação de Dt 8,3 do hebraico: “Não só de pão vive o homem” (cf. Lc 4,4), mas o amplia, citando do grego (LXX): “mas de toda palavra que sai da boca de Deus”. Assim ele pode apresentar Jesus como verdadeiro Filho de Deus que resiste à tentação (a contrário de Israel), porque “vive de cada Palavra que sai da boca Deus”, ou seja, é obediente à Palavra de Deus.

Então o diabo levou Jesus à Cidade Santa, colocou-o sobre a parte mais alta do Templo, e lhe disse: “Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo! Porque está escrito: ‘Deus dará ordens aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”. Jesus lhe respondeu: “’Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus!’” (vv. 5-7).

A segunda tentação se refere à dimensão religiosa, representado pelo templo. Fora desta tentação espiritual, Jesus chegará no templo só em 21,1-17 como messias sem demonstração de poder.

O diabo também conhece a Bíblia e a interpreta no sentido literal (ao pé da letra), cita um Salmo de confiança (Sl 91,11-12 na versão grega) no qual se fala dos anjos a serviço do homem, do filho, contra poderes nefastos. Como em Dt 8,3, essas palavras do Salmo 91 não visam exatamente ao messias, mas a qualquer israelita fiel que espera o socorro só de Deus.

O que era “a parte mais alta do Templo”? A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1861) comenta: A “cumeeira”, em grego diminutivo de uma palavra significando a ala de um edifício, poderia também referir-se à cornija superior de uma das grandes portas, donde Jesus teria precisado atirar-se para manifestar a sua “messianidade” às multidões que geralmente se apinhavam neste lugar. Celso Loraschi (revista Vida Pastoral, março/abril 2017) comenta: O “pináculo”, para além da parte física mais alta do templo, representa os elevados cargos que um judeu poderia galgar na hierarquia religiosa, proporcionado a Jesus prestígio e proteção muito especiais. A pessoa envolvida na “auréola” de uma espiritualidade legitimada pela ideologia do sistema religioso oficial, como era o caso do templo de Jerusalém, sente-se assegurado pela “blindagem” que seu status religioso proporciona.

Jesus não faz espetáculos miraculosos com Simão Mago (cf. At 8,9-24) que voava pelo ar (PsClemRec 2,9,3; 3,37,2; cf. ActPd 31s). Na resposta, Jesus cita novamente do Deuteronômio: “Não tentarás o Senhor teu Deus!” (Dt 6,16). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1861) comenta: Tentar a Deus é um tema corriqueiro no AT (Ex 17,2-7; Nm 14,22; Sl 78,18 etc.), em dois sentidos complementares: desobedecer-lhe para ver até onde chega sua paciência ou, como aqui, recorrer a sua bondade com objetivo interesseiro.

Mt apresenta a tentação no deserto prefigurando a obediência de Jesus na vida e na paixão. O verbo “tentar (colocar a prova)” reaparece em Mt 16,1 onde Jesus se recusa novamente a realizar “um sinal vindo do céu” exigido pelos fariseus e saduceus. Jesus chama a atenção de Pedro que quer impedir a prisão do mestre: “Ou pensas tu que eu não poderia apelar para meu Pai, para que ele pusesse a minha disposição doze legiões de anjos?” (26,53), e não atende o desafio dos transeuntes: “Se és filho de Deus, desce da cruz!” (27,40; cf. 27,43; Sb 2,18-20).

Novamente, o diabo levou Jesus para um monte muito alto. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e sua glória, e lhe disse: “Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar.” Jesus lhe disse: “Vai-te embora, Satanás, porque está escrito: ‘Adorarás ao Senhor teu Deus e somente a ele prestarás culto’” (vv. 8-10).

O “monte” tem significado especial em Mt. Em 5,1s, Jesus sobe para seu sermão da montanha lembrando Moisés no monte Sinai. Em 17,1 Jesus sobe a um “monte alto” para ser transfigurado e na presença de Moisés e Elias e dos três discípulos ser proclamado por Deus “Este é meu Filho amado” (17,5), como já antes no batismo (3,17). Mais importante é a alusão ao final do Ev quando o ressuscitado aparece, novamente num “monte” (28,16). Depois de ter renunciado ao poder político e militar do messias e morrido como servo e filho obediente de Deus, pode proclamar: “Todo poder sobre o céu e a terra foi entregue a mim” (28,18), isso é mais do que “todos os reinos do mundo e sua glória” que o diabo pode oferecer.

A Bíblia do Peregrino (p. 2324) comenta a terceira tentação: O monte da visão parece reminiscência do de Abraão, quando se detém no país de Canaã (Gn 13) e do monte de onde Moisés contemplou a terra antes de morrer (Dt 34; cf. Ez 40,2); opõe-se ao monte da transfiguração (Mt 17,1). Os reinos do mundo com seu esplendor se opõem ao reino dos céus com sua gloria. Sobre a homenagem, ver Dn 3,5.10.15.

A Pedro que o professou “Tu é o Cristo, o filho e Deus vivo” (16,16), mas não queria que o messias sofresse, Jesus repreende com as mesmas palavras de 4,10: “Vai-te embora, Satanás” (16,23; acrescido um apelo a segui-lo; retomado aqui por alguns manuscritos, que acrescentam: atrás).

“Se te ajoelhares diante de mim, para me adorar”; lit.: se, caindo (a meus pés), me adorares. Aqui, o verbo adorar significa um ato de submissão total, de consequências concretas e imediatas (cf. 2,2; 8,2; 9,18; Gn 37,7-10), cf. o mesmo sentido no monte diante do ressuscitado (28,17). A resposta da Jesus é de Dt 6,13 em termos de monoteísmo estrito (cf. Ex 34,14; Dt 32,39; Is 43,10s etc.). Ele está acima dos anjos (Hb 1).

Então o diabo o deixou. E os anjos se aproximaram e serviram a Jesus (v. 11).

É o final da tentação como foi relatado em Q (v. 11a; Lc 4,13a) e em Mc (v. 11b). Em Mc 1,13 “Jesus vivia entre as feras e os anjos o serviam”; provavelmente uma alusão ao paraíso onde Adão vivia em paz e harmonia com os animais, alimentado pelos anjos (cf. Gn 2,15.19s; e os apócrifos Apocalipse de Moisés 16.24; Vida de Adão e Eva 4.37-39; cf. o messias em Is 11,1-9). Mt e Lc (ou antes deles, Deuteromarcos) omitem a alusão a Adão. Para Mt e seus leitores judeu-cristãos, Jesus é o novo Moisés (cf. a nova interpretação da Lei no sermão da montanha em cap. 5).

O verbo “servir” significa aqui servir a mesa, dar de comer (cf. a sogra de Pedro em 8,15). Enquanto em Mc, os anjos estavam (alimentando) com Jesus durante toda estadia no deserto, em Mt, só agora os anjos “se aproximaram”. Deles Jesus recebe o alimento que recusou providenciar para si, obedecendo à sugestão de Satanás. Ele ensinará a seus discípulos a pedi-lo na oração e a recebê-lo igualmente do Pai que o providencia (6,11.25-34; 7,7-11).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1842) comenta a alusão a Moisés e a obediência de Jesus, dois temas preferidos de Mt: Como Moisés, Jesus luta por meio de um jejum de quarenta dias e quarenta noites (Dt 9,18; cf. Ex 34,28; Dt 9,9); como ele, Jesus contempla “toda a terra” do alto de um monte elevado (Dt 34,1-4). Deus o assiste com os seus anjos (v. 11), conforme prometeu ao Justo (Sl 91,11-12), e, segundo Mc 1,13, protege-o dos animais ferozes, como ao justo (Sl 91,13) e como fez outrora a Israel (Dt 8,15), graças a essas reminiscências bíblicas, Jesus aparece como o novo Moisés (ver já 2,16. 20 e Ex 4,19), que conduz o novo êxodo (cf. Hb 3,1-4.11); isto é, como o Messias – conforme o diabo já suspeitava em consequência do batismo (“se és Filho de Deus…”) – que abre o verdadeiro caminho da salvação, não o de confiança em si e da facilidade, mas o da obediência a Deus e da abnegação. A apresentação bíblica não impede que o episódio seja histórico. Embora isento do pecado, Jesus podia conhecer seduções externas (cf. Mt 16,23), e era necessário que ele fosse tentado, a fim de tornar-se o nosso chefe (cf. Mt 26,36-46p; Hb 2,10.17-18; 4,15; 5.2.7-9). Era preciso que encarasse a possibilidade de um messianismo político e glorioso, a fim de que ele optasse por um messianismo espiritual pela submissão completa de Deus (cf. Hb 12,2).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1861) resume: Jesus recusa, não só recorrer a forças espirituais para fins terrenos, como também intimar Deus a salvá-lo magicamente por um milagre e submeter-se a Satanás para dominar politicamente o mundo. Ao contrário de Israel, Jesus sai vencedor do combate: não se deixou apartar de Deus… Associada ao batismo, a cena pode fornecer também o sentido da existência cristã: em princípio, todo filho de Deus triunfou do demônio.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1189) comenta: A ordem das três tentações mostra como Jesus enfrenta desafios que vão desde a satisfação de uma necessidade básica, como a fome, até o desejo de poder, passando pela busca de segurança religiosa. A reação de Jesus diante das tentações que lhe são propostas o mostra em sintonia com a vontade de Deus e contra soluções simples e enganadoras, que ao final produzem dominação e violência. Jesus não tenta manipular a Deus, nem age no sentido de conseguir privilégios.

Ulrich Luz (EKK, vol. 1, p. 167) comenta a dificuldade do homem moderno a entender esta tentação pelo diabo, não apenas como provação humana: Faz parte da experiência do “diabo” que o mal não está simplesmente no livre arbítrio do ser humano, mas que o mal pode ter poder sobre ele. Pertence também à dimensão mitológica do texto que as anjos serviram a Jesus (v. 11). Eles ocupam o lugar que o diabo deixou. São expressão da presença e do auxílio de Deus… Nosso texto não trata de experiências cotidianas, mas da questão de quem tem o poder no mundo: o diabo a quem Jesus não serve e que tem que sair, ou Deus que envia seus anjos… Pela sua dimensão mística ela se torna um pedaço de esperança e confiança no Filho de Deus, que venceu o diabo pela obediência, e em Deus, cujos anjos auxiliaram ao obediente. Entendida assim, nosso texto está bem colocado no início do evangelho que desenvolve o que significa obediência diante de Deus. Assim antecipa o caminho que o Filho de Deus andou na frente dos discípulos por todo o Evangelho e que conduz finalmente à ressurreição e ao domínio sobre céu e terra (28,18).

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