2 de Novembro de 2020, Segunda-feira – Todos os Fiéis Defuntos: “Todos os que o Pai me confia virão a mim, e quando vierem, não os afastarei” (v. 37).

Fieis defuntos (finados): Missa 1

A nossa liturgia católica deixa um ampla variedade de textos bíblicos para se escolher nas missas neste dia (50 páginas no lecionário, mas no site da CNBB repetem-se apenas os textos de Todos os Santos!). Apresentamos aqui as leituras sugeridas na Liturgia diária da Editora Paulus (Missa 1 – folheto).

 

1ª Leitura: Jó 19,1.23-27b

Jó é o justo que sofre, não por própria culpa, mas como provação. Nos caps. 1-2, Deus e Satanás fizeram uma aposta: Jó amaldiçoaria Deus se fossem tirados todos os seus bens, seus filhos e sua saúde? Satanás recebeu permissão de tirar tudo isso, mas Jó não amaldiçoou Deus. Seus amigos vieram, mas em vez de consolá-lo, discursam sobre uma eventual culpa dele para merecer tanta desgraça (doutrina da retribuição). A parte central deste livro sapiencial do séc. V e IV a.C. são um diálogo entre as acusações dos seus amigos e a defesa de Jó.

Jó tomou a palavra e disse: (v. 1)

A Nova Bíblia Pastoral (p. 641) comenta o cap. 19: Lamento profético (cf. Hab 1,2; Jr 20,8; Lm 3,8) que acusa Deus de falsear a justiça e agir com os reis que exploram e exercem a violência. Apresenta como consequência a solidão e a hostilidade dos membros da comunidade, do círculo de relações familiares e dos amigos íntimos (cf. 15,8.17; Jr 23,18.22;  Am 3,7; Pr 11,13; 20,19; 25,9). A religião centrada no Templo e nos sacrifícios, na doutrina da retribuição e nos pecados morais, é incapaz de gerar solidariedade e aprofunda a concepção de que o sofrimento é castigo divino. O apelo de Jó se dirige ao “protetor” (go’el, v. 25). Este termo pode significar o parente próximo enquanto redentor do sangue (2Sm 14,11) e da herança (Dt 25,5-10; Rt 2,20; 3,9; 4,4s; Lv 25,25; Nm 5,8); o defensor diante dos inimigos (Pr 23,10-11); ou o Deus que liberta os hebreus do Egito (Ex 6,6; 15,13; Sl 74,2) e resgata os exilados da Babilônia (Is 41,14; 43,1).

Gostaria que minhas palavras fossem escritas e gravadas numa inscrição com ponteiro de ferro e com chumbo, cravadas na rocha para sempre! (vv. 23-24)

A Bíblia do Peregrino (p. 1096) comenta: As palavras são de uma solenidade extraordinária, um chamado a posterioridade (ver Sl 102,190). Pensa numa grande inscrição lapidar, com chumbo incrustado na rocha. O autor sente a importância do que seu protagonista vai dizer e o sublinha. É importante, porque expressa a última apelação ou convicção de Jó; mas deve ser tomado no contexto total. Em certo sentido, esse desejo de perpetuidade se estende às outras palavras de Jó, especialmente as que expressam sua sede e esperança de justiça. Não podemos negar que o livro de Jó dura mais que uma inscrição na rocha, que a consciência do autor não se enganava ao calcular a importância do seu livro.

“Com chumbo” (hebr.:  we’oparet), ou “com estilete” (weçipporen, cf. Jr 17,1). O rabino medieval Rashi (1040-1105) sugeriu que o chumbo tem, como finalidade, escurecer as letras incisas da inscrição para fazê-lo sobressair. Os nobres foram sepultados em caixões mais duradouros (sarcófagos) de pedra ou de chumbo.

Eu sei que o meu redentor está vivo e que, por último, se levantará sobre o pó; e depois que tiverem destruído esta minha pele, na minha carne, verei a Deus (vv. 25-26).

“Redentor”, ou defensor, vingador de sangue (cf. 16,18-21; Nm 35,19). No antigo Israel, era aquele que reivindicava um direito que um de seus parentes próximos já não podia exercer por si mesmo (Lv 25,25; Rt 4,4). Depois se aplica-se muitas vezes a Deus, salvador do seu povo e vingador dos oprimidos. Os rabinos do judaísmo aplicaram este termo ao messias (em grego: Cristo), donde vem a tradução de São Jerônimo “meu redentor”.

Na sua tradução normativa para Igreja Católica (Vulgata), S. Jerônimo, traduziu o original hebraico go’el por redemptor (= resgatador), e o latim passou as nossas línguas. Os cristãos aplicaram o título ao Cristo que nos livra da culpa (com seu próprio sangue) e nos reconcilia com Deus. Umas das imagens mais famosas do Brasil e do mundo é o Cristo Redentor em Rio de Janeiro (1931). O título da primeira encíclica do papa João Paulo II foi “Redemptor hominis” (redentor do homem), escolhido depois como lema episcopal por Dom Ricardo Weberberger (1979).

A Bíblia do Peregrino (p. 1097) comenta: O vingador é uma instituição jurídica antiga. Um membro da família, do clã, da tribo, por graus, está obrigando a vingar seu próximo. Em caso de assassinato, matando o culpado, Dt 19,6-12 (a legislação antiga não admite compensação). O ato e a obrigação de vingar baseiam-se em laços de solidariedade. Deus assume essa função com relação a Israel (ver sobretudo o Segundo Isaías). Nosso texto se refere ao vingador de sangue, e o ato da vingança deve consistir em provar a inocência da vítima.

A Bíblia de Jerusalém (p. 907) comenta: Jó, caluniado e condenado pelos seus amigos, espera um defensor, que é precisamente o próprio Deus, a menos que aí deve ser visto um mediador celeste que assumiria a defesa de Jó e o reconciliaria com Deus (cf. 16,19). Jó, contudo, continua a considerar perdida sua felicidade próxima a sua morte: Deus só intervirá para vingar sua causa depois de ele morrer. Todavia, Jó espera ser disso testemunha, “ver” seu vingador. Parece, pois, que ele nesta passagem (após ter imaginado – 14,10-14 – a possibilidade de esperar no Xeol durante o tempo da ira), num impulso de fé em Deus que pode fazer voltar a Xeol (cf. 1Sm 2,6; 1Rs 17,17-24; Ez 37) está contando com um retorno passageiro a vida corporal, para o tempo da vingança. Esta curta evasão da fé de Jó dos limites intransponíveis da condição mortal, para satisfazer sua necessidade de justiça numa situação desesperada, preludia a revelação explícita da ressureição da carne (cf. 2Mc 7,9).

 “Por último, se levantará sobre o pó”. “Por último/no fim” lembra Is 44,6; 48,12; “se levantar” é termo jurídico (frequentemente aplicado a testemunha ou ao juiz: 31,14; Dt 19,16; Is 2,19.21; Sl 12,6) ou então o ato de intervir. O pó pode significar a sepultura, a humilhação, e poderia aludir sutilmente a condição humana.

O v. 26 é difícil de traduzir: “depois que tiverem destruído esta minha pele” ou “depois do meu despertar, levantar-me-á junto dele”: ‘ûrî, “minha pele”: ‘ôrî, hebr.– “levantar-me-á junto dele”: zeqapanî ‘itô, conj.; “eles destruíram isso”: niqqepû zo’t, hebr.

A Bíblia do Peregrino (p. 1096s) comenta: Mas é terrível observar que exatamente essas palavras do livro sejam para nós tão obscuras. O texto hebraico está mal conservado, talvez por manipulação intencional; os tradutores antigos ensaiaram leituras diferentes do texto, como profissão de fé na ressurreição (Jerônimo) ou negado tal interpretação (Crisóstomo), e os comentaristas modernos, em vez de entrar em acordo, tendem a multiplicar ou diferenciar as explicações. Trata-se claramente da justificação que, apesar de tudo, Jó espera: espera ou deseja uma justificação antes de morrer ou depois da morte? No segundo caso, terá consciência dela estando morto, ou ressuscitará para recebê-la? No último caso, pensa numa ressureição pessoal ou na ressurreição universal de que lhe falam Dn e Sb? O livro não pensa na ressurreição, a exclui: 3,11-22; 7,9-10;10,18-22; 16,22; 17,1.13-16; 21,23-26. Por outro lado, em sua sede de justiça, Jó expressa as vezes uma esperança paradoxal, até nos momentos que se entrega à morte, sobretudo no cap. 16, que se liga com o presente. Por isso prefiro, como um pouco mais provável, a interpretação que nossa tradução reflete: ao morrer, Jó invoca a terra para que não cubra seu sangue, para que clame pedindo a vingança, 16,8; agora grita que o vingador de seu sangue vive, por isso espera que, já morto, conhecerá sua própria sua própria justificação lá do reino da morte, e, justificado, poderá ver a Deus. A vida já não lhe importa, contanto que lhe façam justiça; já aceitou a morte, pensando que lhe farão vingança; a justiça deverá prevalecer, e ele, ainda que morto, terá a satisfação de sabê-lo.

No outro extremo está a interpretação, também provável, que coloca a reivindicação de Jó nesta vida, numa teofania imediatamente antes da morte. Em tal caso, “sem pele e sem carne” é expressão hiperbólica que descreve o estado físico de Jó antes de morrer. Em qualquer caso, a doutrina da ressurreição não existe no texto original nem corresponde ao sentido do livro; é fruto de uma leitura posterior, iluminada pelo progresso da revelação neste ponto…

Eu mesmo o verei, meus olhos o contemplarão, e não os olhos de outros (v. 27ab).

Como não se pode olhar muito no sol sem ficar cego, um ser humano não pode ver Deus com seus olhos porque morreria (Ex 33,20; cf. Jo 1,18; 6,46). Mas na situação em que Jó já imagina estar, não existe tal perigo; é algo paradoxal, e Jó reforça seu paradoxo.

A Bíblia do Peregrino (p. 1096s) comenta: As palavras de Jó sobrevivem a ele e o vingam; mas isso não basta. As palavras de Jó ultrapassam a ele e ao autor, têm significado excessivo para sua realidade. Tem de vir uma realidade “final” que encham a capacidade de sentido dessas palavras. Esse é o fundamento de sua leitura cristã.

2ª Leitura: Rm 5,5-11

Na carta aos romanos, depois de discursar sobre a justificação pela fé e não pelas obras da lei, Paulo fala sobre a esperança e o amor (vv. 1-5).

(Irmãos) A esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado (v. 5).

“Justificados pela fé, estamos em paz com Deus” (v. 1); por isso, começamos a viver a “esperança da glória de Deus” (v. 2).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2126) comenta: A esperança cristã é a expectativa dos bens escatológicos: a ressurreição do corpo (Rm 8,18-23; 1Ts 4,13s; cf. At 2,26; 23,6; 24,15;26,6-8;28,20), a herança dos santos (Ef 1,18; cf. Hb 6,11s 1Pd 1,3s), a vida eterna (Tt 1,2; cf. 1Cor 15,19), a glória (Rm 5,2; 2Cor 3,7-12; Ef 1,18; Cl 1,27; Tt2,13), a visão de Deus (1Jo 3,2s), numa palavra, a salvação (1Ts 5,8; cf. 1Pd 1,3-5) própria e dos outros (2Cor 1,6s; Ts 2,19). Designando em primeiro lugar a virtude que espera esses bens, ela pode, as vezes, designar estes mesmos bens celestes (Gl 5,5; Cl 1,5; Tt 2,13; Hb 6,18). Outrora depositada em Israel (Ef 1,11-12; cf. Jo 5,45; Rm 4,18), com exclusão dos gentios (Ef 2,12; cf. 1Ts 4,13), ela preparava uma esperança melhor (Hb 7,19), que hoje é oferecida também aos gentios (Ef 1,18; Cl 1,27; cf. Mt 12,21; Rm 15,12), no ministério de Cristo (Rm 16,25). Ela se fundamenta em Deus (1Tm 5,5; 6,17; 1Pd 1,21; 3,5), em seu amor (2Ts 2,16), em seu apelo (1Pd 1,13-15; cf. Ef 1,18; 4,4), em seu poder (Rm 4,17-21), em sua veracidade (Tt 1,2; Hb 6,18) e na sua fidelidade (Hb 10,23) em manter as promessas consignadas nas escrituras (Rm 15,4) e no Evangelho (Cl 1,23), e realizadas na pessoa de Cristo (1Tm 1,1; 1Pd 1,3.21). Ela não pode decepcionar (Rm 5,5). Voltada, por definição, para os bens invisíveis (Rm 8,24; Hb 11,1), ela se apoia na fé (Rm 4,18; 5,1s; 15,13; Gl 5,5, Hb 6,11s; 1Pd 1,21) e se nutre do amor (Rm 5,5; 1Cor 13,7), as duas outras virtudes teologais às quais está intimamente ligada (1Cor 13,13). O Espírito Santo, o dom escatológico por excelência, já parcialmente possuído (Rm 5,5; At 1,8), é sua fonte privilegiada (Gl 5,5), que a ilumina (Ef 1,17s), a fortifica (Rm 15,13), a faz orar (Rm 8,25-27) e por ela realiza a unidade do corpo (Ef 4,4). Fundada na justiça pela fé em Cristo (Rm 5,1s; cf. Gl 5,5), ela é cheia de segurança (2Cor 3,12; Hb 3,6), de conforto (2Ts 2,16; Hb 6,18), de alegria (Rm 12,12; 15,13; 1Ts 2,19) e de santo orgulho (Rm 5,2; 1Ts 2,19; Hb 3,6); ela não se deixa abater pelos sofrimentos presentes, que não tem proporção com a gloria prometida (Rm 8,18). Pelo contrário, ela os suporta com uma “constância” (Rm 8,25; 12,12; 15,4; 1Ts 1,3; cf. 1 Cor 13,7) que a prova (Rm 5,4) e a fortalece (2Cor 1,7).

Essa esperança é vivida em meio a uma luta perseverante, ancorada na certeza, garantida “pelo Espírito Santo que nos foi dado”. Só aqui o Espírito Santo é tal vinculado ao “amor de Deus” que se manifesta em Jesus Cristo; uma visão trinitária: Deus é amor em três pessoas (cf. 1Jo 4,8.16).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2126) comenta: O amor com que Deus nos ama e do qual o Espirito é um penhor e testemunha por sua presença ativa em nós (cf. 8,15 e Gl 4,6). Nele nos dirigimos a Deus como um filho a seu Pai; o amor é recíproco. Nele, igualmente, amamos nossos irmãos como o mesmo amor que o Pai ama o Filho e com que nos ama também a nós (cf. Jo 17,26).

O Espírito Santo da promessa (Ef 1,13; cf. Gl 3,14; At 2,33), que caracteriza a nova aliança em oposição à antiga (Rm 2,29; 7,6; 2Cor 3,6; cf. Gl 3,3; 4,29; Ez 36,27), não é somente uma manifestação exterior  de poder taumatúrgico e carismático (At 1,8); é também e sobretudo um princípio interior de vida nova que Deus dá (1Ts 4,8, etc.; cf. Lc 11,13; Jo 3,34; 14,16s; At 1,5; 2,38, etc.; 1Jo 3,24), envia (Gl 4,6; cf. Lc 24,49; Jo 14,26; 1Pd 1,12), outorga (Gl 3,5; Fl 1,19), derrama (Rm 5,5; Tt 3,5s; cf. At 2,33). Recebido pela fé (Gl 3,2.14; cf. Jo 7,38s; At 11,17) e pelo batismo (1Cor 6,11; Tt 3,5; cf. Jo 3,5; At 2,38; 19,2-6), ele habita no cristão (Rm 8,9; 1Cor 3,16; 2Tm 1,14; cf. Tg 4,5), no seu espírito (Rm 8,16; cf. Rm 1,9) e mesmo em seu corpo (1Cor 6,19). Este Espirito, que é o Espirito de Cristo (Rm 8,9; Fl 1,19; Gl 4,6; cf. 2Cor 3,17; At 16,7; Jo 14,26; 15,26; 16,7.14), torna o cristão filho de Deus (Rm 8,14-16; Gl 4,6s) e faz Cristo habitar em seu coração (Ef 3,16). Ele é para o cristão (como para o próprio Cristo, Rm 1,4) um princípio de ressurreição (Rm 8,11), por um dom escatológico que desde agora o marca como com um selo (2Cor 1,22; E 1,13; 4,30) e que se encontra nele como penhor (2Cor 1,22; 5,5; Ef 1,14) e primícias (Rm 8,23). Substituindo o princípio mau da carne (Rm 7,5), torna-se no homem um princípio de fé (1Cor 12,3; 2Cor 4,13; cf. 1Jo 4,2s), de conhecimento sobrenatural (1Cor 2,10-16; 7,40; 12,8s; 14,2s; Ef 1,17; 3,16.18; Cl 1,9; cf. Jo 14,26), de amor (Rm 5,5; 15,30; Cl 1,8), de santificação (Rm 15,16; 1Cor 6,11; 2Ts 2,13; cf. 1Pd 1,2), de conduta moral (Rm 8,4-9.13; Gl 5,16-25), de coragem apostólica (Fl 1,19; 2Tm 1,7s; cf. At 1,8), de esperança (Rm 15,13; Gl 5,5; Ef 4,4) e de oração (Rm 8,26s; cf. Tg 4,3.5; Jd 20). Não se deve extingui-lo (1Ts 5,19) nem conquista-lo (Ef 4,30). Unindo a Cristo (1Cor 6,17), ele realiza a unidade de seu Corpo (1Cor 12,13; Ef 2,16.18; 4,4).

Com efeito, quando éramos ainda fracos, Cristo morreu pelos ímpios, no tempo marcado. Dificilmente alguém morrerá por um justo; por uma pessoa muito boa, talvez alguém se anime a morrer. Pois bem, a prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores (vv. 6-8).

“Quando éramos ainda fracos”, ou seja, impotentes para nos desvencilhar do pecado.

A Bíblia do Peregrino (p. 2713) comenta os vv. 6-10: Exalta o amor desinteressado de Jesus Cristo com um sistema de quatro oposições que produzem efeito cumulativo. Malvados perdoados, culpados indultados, inimigos reconciliados, reconciliados legitimamente orgulhosos (Is 45,25; Sl 64,11). A morte de Cristo de é antes de tudo revelação do amor incondicional de Deus: um amor não suscitado por nossa boa conduta, pelo contrário. Não podemos estar orgulhosos de nós: todo nosso orgulho reside em Deus. Já não orgulhosos de seu poder (Sl 115,3), mas do seu amor.

Muito mais agora, que já estamos justificados pelo sangue de Cristo, seremos salvos da ira por ele. Quando éramos inimigos de Deus, fomos reconciliados com ele pela morte do seu Filho; quanto mais agora, estando já reconciliados, seremos salvos por sua vida! Ainda mais: Nós nos gloriamos em Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo. É por ele que, já desde o tempo presente, recebemos a reconciliação (vv. 9-11).

O sangue (= morte) de Cristo nos trouxe vida e salvação. No fundo está o texto de Is 53: “justificados pelo sangue”, “reconciliados pela morte do seu filho” (vv. 9-10); o servo inocente de Deus nos traz vida e salvação (cf. 1Jo 4,10). Agora já que fomos reconciliados, podemos crer com maior razão e esperar que sejamos salvos pela vida-ressurreição de Jesus (vv. 10-11).

“Seremos salvos por sua vida”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2180) comenta: Desde agora justificados (v. 9), reconciliados com Deus (vv. 10-11), graças ao sangue, isto é, à morte do Cristo (vv. 9-10), os crentes aguardam, cheios de esperança, a salvação escatológica, último fruto da Ressureição de Cristo (v. 10). Paulo nunca separa a morte de Cristo da sua ressurreição (cf. 4,25). A perspectiva dos vv. 9-11 é a mesma que a de Rm 5,2 e 8,11.

 

Evangelho: Jo 6,37-40

Este evangelho é tirado do grande discurso de Jesus sobre o Pão da Vida (cap. 6) que começou, igual aos evangelhos sinóticos com a multiplicação dos pães (vv. 1-15) e caminhada de Jesus sobre o mar agitado para se juntar a seu discípulos (vv. 16-21). Mas a multidão dos judeus que comeu dos pães e porém, veio à procura de Jesus. Queriam fazer Jesus rei para continuar este milagre dos pães (v. 15). Jesus crítica que eles o procuram só para comer e ficar satisfeito em vez de trabalhar pelo alimento que permanece para vida eterna (vv. 26s). Os judeus reclamam um sinal (em João, os milagres são chamados “sinais”), análogo ao do maná (vv. 30s). Jesus declara: “Eu sou o Pão da vida. Quem vem a mim, nunca mais terá fome, e o que crê em mim nunca mais terá sede. Eu, porém, vos disse: vos me vedes, mas não credes” (vv. 35s; cf. 4,14; Is 55,1; Mt 5,6; Ap 7,16).

(Naquele tempo, disse Jesus ás multidões:) “Todos os que o Pai me confia virão a mim, e quando vierem, não os afastarei” (v. 37).

Depois de declarar Pão da Vida, Jesus explica o significado de “vir a mim” do v. 35 e da falta de fé dos que viram o milagre dos pães como sinal, mas não creem exigindo mais sinais (vv. 26.30.36). Portanto, Jesus fala agora sobre a fé, resumindo o cap. 3: o fiel só pode crer, quando “nasce pelo Espírito”, ou seja, quando é o Pai que o “confia” (lit. dá, cf. v. 39) ou “atrai” (v. 44).  A fé é dom e iniciativa de Deus e “vir a Jesus” equivale a crer.

A Bíblia do Peregrino (p. 2568s) comenta: Viram o milagre, não o penetraram como sinal, não acreditaram na pessoa de Jesus. É o olhar superficial que não penetra na realidade. A estes se opõem a comunidade dos fiéis que Jesus recebe como dom do Pai. O pai tem a iniciativa: envia seu Filho (vv. 38s), recomenda-o aos que creem, designa-lhe uma missão salvadora.

Os que vêm a Jesus são dados pelo Pai ao Filho, por isso que o Filho os acolhe e o guarda (17,6-15). Jo acentua mais uma vez a gratuidade e a soberania da graça de Deus. “Afastar (lit. lançar fora)” lembra a expulsão do paraíso (Gn 3) ou alude à prática de excomungar da sinagoga (Jo 9,22). Mas o amor de Deus é universal (cf. Sb 11,21-12,2), e Jesus acolhe os pecadores (8,1-11; cf. Lc 15) e os samaritanos (Jo 4).

Pois eu desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou (v. 38).

Já no v. 33, Jesus declarou: “O pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” (cf. vv. 50s.58). Na conversa com Nicodemos, Jesus disse: “Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem… Deus amou tanto o mundo que entregou seu Filho único para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (3,13.16). Em Jo, Jesus é o “enviado” do Pai que realiza a vontade e as obras do Pai, até o juízo final e a ressurreição dos mortos: “O Filho, por si mesmo, nada pode fazer, mas só aquilo que vê o Pai fazer… Como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho dá a vida a quem quer…. Por mim mesmo, nada posso fazer, eu julgo segundo o que ouço e meu julgamento é justo, porque não procuro a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (5,19.21.30). Nos evangelho sinóticos, Jesus reza no jardim Getsêmane: “Pai, … Afasta de mim este cálice; porém, não o que eu quero, mas o que tu queres” (Mc 15,36p).

A vontade do Pai será explicado em seguida nos vv. 39s.

Jesus veio para “fazer a vontade daquele que me enviou” (cf. 4,34; 5,19-30). Falando do envio do Filho pelo Pai (cf. 3,34 nota) ou o amor do Pai ao Filho. Jo nada fez senão reafirmar a unidade de Jesus e de Deus e a filiação divina de Jesus.

“E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum daqueles que ele me deu, mas os ressuscite no último dia. Pois esta é a vontade do meu Pai: que toda a pessoa que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna. E eu o ressuscitarei no último dia” (vv. 39-40).

Jesus não deve “perder nenhum daqueles” que o Pai lhe deu. Esta ideia do Bom Pastor é retomada em Jo 10,28s; 17,12; 18,9; cf. Mt 18,14.

“Ver” o Filho é discernir as aparências (condição humana), ver com os olhos da fé e reconhecer que ele é realmente o Filho enviado pelo Pai (cf. 12,45; 14,9). Os judeus que viram Jesus, mas não acreditaram nele (v. 36), perdem o acesso e sua demanda por sinais não pode ser atendida fora da fé. Os gregos (pagãos) que “querem ver Jesus”, porém, terão acesso, porque Jesus atrairá todos a si na cruz (12,21.32).

A Bíblia do Peregrino (p. 2568) comenta: O último dia é o dia do juízo final (11,24; 12,48). A vontade do Pai é a salvação de todos as pessoas. A salvação não está completa sem a ressurreição. É necessário contemplar com olhar penetrante, iluminado. A ressurreição que promete será dom do Filho, o único que pode comunicar a vida eterna.

Os vv. 39 e 40c poderiam ser de uma redação eclesial posterior que quer corrigir a escatologia presente do evangelista (a participação atual nos bens celestes através da fé: “que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna”), pela perspectiva de uma escatologia futura (ressurreição só no último dia); cf. o mesmo procedimento em 5,24-26 (a hora é agora) e 5,28s (vem a hora).

Fieis defuntos (finados): Missa 2

A nossa liturgia católica deixa um ampla variedade de textos bíblicos para se escolher nas missas neste dia (50 páginas no lecionário, mas no site da CNBB repetem-se apenas os textos de Todos os Santos!). Apresentamos aqui as leituras sugeridas na Liturgia diária da Editora Paulus (Missa 2).

Antes uma observação sobre a origem desta comemoração cuja a data coincide com Samhain, uma festa pagã: antes da chegada do inverno europeu (frio, neve, escuridão), os celtas comemoravam a colheita junto com seus ancestrais (mortos); acreditavam que nessa época as almas dos mortos retornavam a suas casas para visitar os familiares, para buscar alimento (daí o costume Halloween, hoje comercializado). Como em outros casos (por ex. Natal), a festa pagã não foi abolida, mas ganhou um novo sentido cristão.

Em Roma celebrava-se o dia de Todos os Santos (ancestrais espirituais) em 01º de novembro e surgiu a necessidade de um dia próprio para rezar por todos os outros falecidos dos quais não se sabe se estão no céu (a doutrina do purgatório se desenvolveu nesta época, baseando-se em 2Mc 43-45; Mt 12,32; 1Cor 3,13-15). Em 998, o abade Odilo de Cluny introduziu o dia 02 como dia próprio para todos os mosteiros beneditinos de onde se difundiu para toda população no ocidente. O nome oficial é “comemoração de todos os fiéis defuntos”. No oriente se reza pelos falecidos em vários dias durante o ano.

1ª leitura: Is 25,6a.7-9

Os caps. 24-27 são chamados “Grande Apocalipse de Isaías” porque pertencem a um gênero literário tardio (pós-exílio) formando uma escatologia ou descrição de um julgamento seguida da instauração de uma ordem definitiva. Retomando e aplicando concepções universalistas já difundidas nos profetas anteriores (Is 2,2-3; 56,6-8; 60,11-14; Zc 8,20; 14,16, etc.), o autor descreve a afluência dos povos a Jerusalém (cf. 2,1-5) como um imenso festim. A partir deste texto, a ideia de um festim messiânico tornou-se corrente no judaísmo e encontra-se no NT (Mt 22,2-10; Lc 14,14.16-24; Ap 19,9).

O Senhor dos exércitos dará neste monte, para todos os povos, um banquete de ricas iguarias. (v. 6).

O banquete real deve acontecer depois da entronização em 24,23 do “Senhor (Yhwh – Javé) dos exércitos”. Este termo (cf. 6,3.5; 2Sm 6,18; Sl 24,10; 46,8) não só se refere aos exércitos de Israel em ordem de batalha (cf. Jó 10,17; 1Sm 17,45s; Ex 12,51), mas também às constelações das estrelas (cf. Gn 2,1; Is 40,26) e finalmente a todos os elementos e poderes do universo.

O poder de convidar muitos é sinal de poderio e riqueza (Est 1,3-8). O Senhor convida “todos os povos” a um banquete esplêndido, que se celebrará neste “monte” sagrado (no monte Sião em Jerusalém onde fica o templo, cf. 2,3s; 11,9s; 16,1; 18,7; 24,23; 27,13 etc.) dentro da tradição dos banquetes sagrados que acompanham os sacrifícios de comunhão nos dias de festa (cf. Ex 24,11; Dt 16,13-15; 1Sm 9,13; Ne 8,10-12; Is 55,1-5; 60,11.14; Zc 8,20-22; 14,16).

Nossa liturgia de hoje omite a segunda parte dos versículos: “regado com vinho puro, servido de pratos deliciosos e dos mais finos vinhos”. O motivo é que se considera este dia não de festa (como os pagãos ou no México), mas de penitência: como na quaresma, a cor e roxa (ou preta), e não tem canto de glória nem de aleluia.

Ele removerá, neste monte, a ponta da cadeia que ligava todos os povos, a teia em que tinha envolvido todas as nações. O Senhor Deus eliminará para sempre a morte e enxugará as lágrimas de todas as faces e acabará com a desonra do seu povo em toda a terra, o Senhor o disse (vv. 7-8).

No banquete, dá presentes aos comensais. O primeiro é a sua presença e manifestação: antes os povos estavam como cegos, cobertos; agora, “removerá… a coberta (teia)”, podem reconhecer Javé Deus. O véu cobre os rostos (cf. 6,2.5; Ex 3,6; 33,2-23; Lv 16,2; 1Rs 19,13) para impedir de ver e compreender (29,10-12; cf. 2Cor 3,13-18) ou, com mais frequência, como sinal de luto (2Sm 15,30; 19,5; Jr 14,3s; Est 6,12); assim no v. 8, o mesmo verbo “removerá (eliminará)” a “morte”. A palavra grega “apo-calipse” significa precisamente “re-velação, retirada do véu” (cf. v. 7), sendo empregada a propósito da “revelação às nações” no Cântico de Simeão em Lc 2,32.

O segundo presente é extraordinário: “eliminará para sempre a morte”, a maldição original do homem (Gn 3,19), para que os convidados vivam “para sempre” com ele uma vida sem dor e sem lagrimas. O apóstolo Paulo aplica um versículo à vitória de Cristo sobre a morte (1Cor 15,54). O João do Ap 21,4 aplica estes vv. à vida na Nova Jerusalém. O final de v. 8 reforça como assinatura que “o Senhor o disse”.

“Acabará com a desonra do seu povo em toda a terra” pode ser referir a perdão dos pecados e a vergonha da consequência desse pecado, o desterro dos exilados dispersos “em toda a terra”.

Naquele dia, se dirá: “Este é o nosso Deus, esperamos nele, até que nos salvou; este é o Senhor, nele temos confiado: vamos alegrar-nos e exultar por nos ter salvo” (v. 9).

Os vv. 9-12 são um novo hino de vitória (cf. 24,16a; 12,1; 26,1). A batalha foi dura, porque a cidade resistiu com todos os seus meios. A salvação é a esperança cumprida. A aclamação de um novo rei era acompanhada de sacrifícios e banquetes (1Sm 11,15; 1Rs 1,15) e a fórmula “este é nosso Deus” pode se aproximar da aclamação do Senhor como Rei que se encontra em 24,23 (cf. Sl 93,1; 97,1; 99,1).

 

2ª leitura: Rm 8,14-23

O cap. 8 é o ápice da carta aos Rm e e trata da vida no/pelo “Espírito” (palavra-chave repetida 29 vezes neste cap.). A vida no Espírito (e não segundo a carne, cf. vv. 12-13) nos torna filhos e herdeiros de Deus. Por essa filiação divina, podemos chamar Deus de Pai e participamos da família do Espírito e recompondo nossas relações com laços familiares.

Todos aqueles que se deixam conduzir pelo Espírito de Deus são filhos de Deus (v. 14).

Pela fé (e sua expressão sacramental, o batismo, cf. Gl 3,25-29) recebemos o Espírito como guia, “mestre interior” (cf. o paráclito em Jo 14,16s.25s; 15,26s; 16,7-15) e princípio de uma vida propriamente divina em Cristo (cf. 5,5; Gl 2,20; Jo 1,12s).

De fato, vós não recebestes um espírito de escravos, para recairdes no medo, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, no qual todos nós clamamos: Abá – ó Pai! (v. 15).

O Espírito é o princípio de uma vida propriamente divina em Cristo (cf. Gl 2,20), não é um “espírito de escravidão” (lit.), mas um “espírito de adoção filial” (lit.). O “medo” caracteriza a escravidão; o amor a filiação (cf. 1Jo 4,18).

Já no cap. 6 (cf. leituras de quarta e quinta-feira da semana passada), Paulo usou o tema da escravidão para descrever a situação do ser humano pecador. O apóstolo não convoca para uma revolta de escravos como Spartacus fez em Roma 73 a.C., que terminou com a derrota e a crucificação de 6000 escravos dois anos depois. Paulo quer libertar o homem de dentro, do seu egoísmo (carne), dos vícios pagãos, da rigidez da lei judaica, superando as divisões de nação, raça, gênero e classe para uma vida de fraternidade e partilha (cf. Gl 3,28; 1Cor 11, 17-34; Fm). O lema da revolução francesa (1789) foi “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, são palavras-chaves já nas cartas de Paulo.

“Abá” (Abba: pai, papai) é termo aramaico, umas das poucas palavras apresentadas na língua de Jesus, que mostra sua originalidade (outras são: Amém, Rabi, Hosana). Com esta palavra as crianças dirigiam-se carinhosamente se dirigiam aos pais. Mesmo escrevendo em grego, Paulo e Mc preservam esta expressão filial na língua original, característica da familiaridade e ternura de Jesus e de seu Pai (cf. a própria oração de Cristo no Getsêmani em Mc 14,36; cf. Mt 11,25; Lc 22,42 etc.) da qual, através do Espirito, os cristãos participam (Gl 4,6; cf. Jo 1,12s). Talvez Paulo aluda ao começo do Pai-nosso, na tradição de Lucas (Lc 11,2).

No AT, Deus se mostra como pai do coletivo, do povo de Israel: libertador (Ex 4,23), educador (Dt 8,5), desfraldado (Dt 32,6; Is 1,2; 63,8.16), afetuoso (Jr 31,20; Os 11,1), compreensivo (Sl 103,13); também é pai do rei que representa o povo (Sl 2; 89,27s; 2Sm 7). Só duas vezes, num texto tardio, um indivíduo chama Deus de Pai (Eclo 23,4; 51,10). No NT, porém, a revelação de Deus como Pai é central.

O próprio Espírito se une ao nosso espírito para nos atestar que somos filhos de Deus (v. 16).

Duas testemunhas confirmam nossa filiação divina: nosso instinto filial ou “espírito de filhos”, que nos sugere o apelo afetuoso “Abba”, e o Espírito de Deus (cf. 1Jo 4,18). Assim lembra os dois testemunhos distintos exigidos, segundo Dt 19,15 (citado em Jo 8,17; Mt 18,16; 2Cor 13,1).

E, se somos filhos, somos também herdeiros – herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo -; se realmente sofremos com ele, é para sermos também glorificados com ele (v. 17).

No AT, a herança designa a posse da Terra prometida (Dt 4,21: traduzido às vezes por “patrimônio”), e não supõe evidentemente a morte de ninguém. A Tradução Ecumênica da Bíblia (2186) comenta: No NT, a Terra prometida se torna o conjunto dos bens divinos: o Reino (Mt 25,34), a vida eterna (Mt 19,29). O Pai comunica todos os seus bens ao seu Filho ressuscitado dos mortos e, por ele, aos crentes.

“Somos também herdeiros” (cf. Gl 4,7; 1Pd 1,4). A Bíblia do Peregrino (p. 2720) comenta: É consequência de sermos filhos, sem problemas de exclusão ou preferência: comparar com os problemas de sucessão de Gn 21,10; 27,36-38; Jz 11,2, e a sucessão dinástica (1Rs 1; Sl 45). Para terminar, introduz outra posição que exporá no parágrafo seguinte: sofrimentos presentes/glórias futura. A demora se explica porque o herdeiro não entra imediatamente na posse da herança. Compartilhar com Cristo não exige repartir a herança; exige, sim, partilhar a paixão (Fl 3,10-11).

“Sofremos com ele, é para sermos também glorificados” (cf. Lc 24,26; 1Pd 4,13). A Tradução Ecumênica da Bíblia (2186) comenta: A preposição “para” não marca a intenção que deveria dirigir os cristãos (como se lhe fosse preciso procurar o sofrimento com a finalidade de obter a glória), mas exprime a relação necessária entre os dois aspectos de um mistério único de morte e ressurreição, para o cristão como para o Cristo (cf. Fl 3,10-11).

Eu entendo que os sofrimentos do tempo presente nem merecem ser comparados com a glória que deve ser revelada em nós (v. 18).

Paulo não opõe alegrias a sofrimentos, como poderia se esperar da filosofia corrente, mas opõe a “glória”, uma qualidade divina que irradia e nos atinge (cf. 3,23). Glória no sentido bíblico (cf. Ex 24,16 etc.) é a presença de Deus comunicando-se ao ser humano de modo mais íntimo, bem por excelência dos tempos messiânicos (cf. Sl 85,10; Is 40,5, etc.). “A glória que deve ser revelada em nós” (cf. 2Cor 4,17) existe desde agora no Cristo ressuscitado, e mesmo, de certa maneira, nos cristãos (2Cor 3,18).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2186) comenta: Mas ela ainda não foi manifestada. Paulo não fala somente de manifestação, mas de revelação, porque o homem não pode conceber atualmente uma ideia do esplendor dessa glória futura e porque, através dele, essa manifestação atingirá a criação inteira (vv. seguintes). Cf. 3,23; 8,19-23; Is 40,5; Sl 85,10.

De fato, toda a criação está esperando ansiosamente o momento de se revelarem os filhos de Deus. Pois a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua livre vontade, mas por sua dependência daquele que a sujeitou; também ela espera ser libertada da escravidão da corrupção e, assim, participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus (vv. 19-21).

“A criação ficou sujeita à vaidade” (cf. Ecl 1,2). É o condição da criação após o pecado (original) do ser humano, que dela se serve contra a vontade de Deus, a serviço do seu egoísmo e da sua vontade de domínio. Outra interpretação fala do caráter corruptível e efêmero das realidades criadas.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2133) comenta: O mundo material, criado para o homem, participa do seu destino. Amaldiçoado por causa do pecado do homem (Gn 3,17), ele se encontra atualmente num estado de tensão: “vaidade” (v. 20), qualidade de ordem moral ligada ao pecado do homem, “servidão da corrupção” (v. 21), qualidade de ordem física. Mas como o corpo do homem, destinado à gloria, é também objeto de redenção (vv. 21.23). A filosofia grega queria libertar o espírito da matéria, considerada má; o cristianismo liberta a própria matéria. Mesma extensão da salvação ao mundo não humano (especialmente ao mundo angélico) em Cl 1,20; Ef 1,10; 2Pd 3,13; Ap 21,1-5. Com relação à nova criação, cf. 2Cor 5,17.

“Por sua dependência daquele que a sujeitou (ou “por vontade daquele que a submeteu”); isto é, provavelmente o homem por seu pecado. Ou: Deus por sua autoridade vingadora; ou ainda: Deus como criador (cf. submeter e dominar em Gn 1,28).

“Participar da liberdade e da glória dos filhos de Deus”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.2186) comenta: O AT já ensinava que o universo material seria associado à glória escatológica do povo de Deus (Is 65,17; Ap 21,1). Aqui esta afirmação aparece com a consequência da glorificação do corpo do cristão (vv.17 e 23), que também é fruto da cruz e da ressurreição de Jesus (cf. Cl 1,18-20). 

A Bíblia do Peregrino (p. 2720s) apresenta duas hipóteses:

A interpretação desses versículos depende do significado atribuído a “ktísis”: criação ou humanidade. A tradição exegética tem optado pelo primeiro. O correlativo “nós” e o contexto sobre escravidão e liberdade, corrupção e gloria, fracasso e esperança favorecem o segundo. Com outras palavras: a nós, os cristãos, se opõe o resto da humanidade; e não a nós, os homens, se opõe o resto da criação.

  1. a) Se o sujeito é a criação inteira, Paulo dá dimensão cósmica à redenção. Isso supõe que, com a queda do homem, a criação inteira (também a sideral?) ficou submetida à desordem e dela participa (o contrário da distinção proposta pelo Salmo 104); ou então supõe que a caducidade da criação (Sl 102,27) vem do pecado de Adão (seria ampliar a sugestão dos cardos de Gn 3). A libertação dessa criação escravizada estaria vinculada à doutrina do céu e de terra novos (Is 65,17; 66,22; 2Pd 3,13).
  2. b) Se o sujeito é a humanidade inteira, fora os cristãos, Paulo formula o anseio de vida e vida plena que todo homem acalenta no íntimo… Nos Sl 96,98, em Is 35; 55,12s etc. podemos encontrar alguma participação da natureza na libertação do povo… A relação que propomos, entre a humanidade e cristãos filhos de Deus, é semelhante à de Jr 31,9s entre pagãos e Israel filho do Senhor (cf. também 1Jo 3,2)… A corrupção ou condição mortal é a última escravidão do homem (cf. 1Cor 15,26). Pois bem, os filhos de Deus são livres por natureza; enquanto tais, não nascem na escravidão. É o argumento de Deus em Ex 4,23 e Jr 2,14. Sua liberdade é gloriosa porque quem os adota lhes comunica sua glória.

Com efeito, sabemos que toda a criação, até ao tempo presente, está gemendo como que em dores de parto. E não somente ela, mas nós também, que temos os primeiros frutos do Espírito, estamos interiormente gemendo, aguardando a adoção filial e a libertação para o nosso corpo (vv. 22-23).

“Sabemos” pela revelação (alusão a Gn 2,17). As “dores de parto” são consequência do pecado de Eva (Gn 3,16) e podem indicar a intensidade da dor e da angustia, outras vezes a dor fecunda (cf. Jr 4,31; 1Sm 4,19-22).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2186) comenta: Essa expressão bíblica (Jr 13,21; Is 66,6-8; Jo 16,20-22) designa, ao mesmo tempo, um doloroso estado atual e a espera de um futuro estado glorioso. Toda esta passagem (vv.19-22) afirma enfaticamente que o mundo material e inanimado será associado à glorificação do corpo do homem no Cristo ressuscitado. Trata-se, em Paulo, de uma afirmação da fé, que não se deve confundir com uma reflexão filosófica sobre o sentido e o devir do cosmo.

Se a corrupção é escravidão, o escravo tornado filho é resgatado para a imortalidade, que é liberdade. Também o corpo pertence à condição filial de filhos de Deus. Há ”gemidos“ da criação/humanidade (v. 22), do cristão (v. 23) e do Espírito (v. 26; leitura de amanhã; cf. 8,15; Gl 4,6; 1Cor 2,10-13).

“Os primeiros frutos do Espírito”, a ideia das primícias implica um dom parcial e antecipado, penhor e garantia do futuro total (cf. 1Cor 15,20; Rm 11,16). A adoção “já” está adquirida (v. 15), o que “ainda não” se realizou, é a plenitude de seus efeitos: a libertação e glorificação do nosso corpo.

A Bíblia do Peregrino (p. 2720s) comenta: Em ambas as hipóteses deve-se manter que os cristãos formam um grupo à parte: sua redenção está realizada, mas não consumada. Falta algo substancial à sua filiação divina: a glorificação também do corpo. Por isso também os cristãos gemem e esperam. Em ambas as hipóteses, a criação/humanidade aparece com “a cabeça voltada e à espera” (etimologia de apo-kara-dokia); com as dores de um parto que, apenas com suas forças, não teria êxito (cf. Is 26,17s; 37,3). Será necessária uma nova ação de Deus (cf. Jo 16,21; Ap 12). É possível que Paulo pense nas clássicas “dores de parto” que anunciam a era messiânica.

Evangelho: Mt 25,31-46

A pergunta “o que será no fim do mundo ou no fim da nossa vida?” sempre preocupava a humanidade. Teremos que prestar conta sobre a nossa conduta ou fará nenhuma diferença, a maneira como tratamos os outros? Haverá um julgamento próprio para os cristãos? Ou Deus tratará todo mundo igual?

No final do discurso sobre a parusia (volta de Cristo no fim do mundo, caps. 24-25), o evangelho de Mt responde a estas perguntas com uma parábola de Jesus, ou melhor, com um discurso imaginado aos discípulos, uma descrição profética do juízo final. Aliás, é a única cena dos quatro evangelhos que mostra qual será o conteúdo do juízo final. Como antecedentes literários pode-se comparar Jr 8,32-35; Dt 27,12-18,14; Is 24,21-22; 65,13-15; Dn 12,2; Sb 4,20; 5,16.

(Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos:) Quando o Filho do Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso. Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. E colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda (vv. 31-33).

O “Filho do homem” (cf. Dn 7,13s) chegará “em sua glória” (16,27; 19,28); é Jesus na sua vinda (parusia) no fim do mundo (24,30-31.37.39.44). Nas parábolas do casamento, era o “filho do rei” (22,2; cf. 25,1-12), agora é o “Rei” (vv. 34 etc.) a quem o Deus Pai confiou o julgamento. Na monarquia absoluta, o rei era também juiz supremo (cf. Sl 72,1); não existia ainda a democracia atual com sua divisão dos três poderes (legislativo, executivo e judiciário).

Acompanhado de sua corte “de todos os anjos, então se assentará em seu trono glorioso” (v. 31; cf. Dn 7,9-10; Dt 33,2; Zc 14,5; Jd 14-15) para um grande julgamento de “todos os povos da terra” (v. 32). Este juízo final, segundo Jl 4,11-12,16, acontecerá no vale de Josafá perto de Jerusalém.

“Assim como um pastor” (imagem para o rei, líderes políticos ou religiosos, cf. Ez 34 e Davi em 1Sm 16-17) “separa” (cf. Lv 20,25; Is 56,3) “as ovelhas dos cabritos” (cf. Ez 34,17; Ex 12,5). “As ovelhas à sua direita” (lado preferido, cf. 26,64; Sl 110,1; Dt 27,12-13); está preferência é transcultural: a mão direita é considerada a mais hábil, pura e honesta; com ela se come, jura, saúda, escreve e fecha contratos, enquanto com a mão esquerda se fazia as coisas menos nobres. Na linguagem da política atual, porém, os termos “esquerda” e “direita” têm outra origem: na assembleia dos deputados franceses no século XVII, ao lado direito sentavam os conservadores e ao lado esquerdo, os que queriam mudanças.

Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: “Vinde benditos de meu Pai! Recebei como herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome e me destes de comer; eu estava com sede e me destes de beber; eu era estrangeiro e me recebestes em casa; eu estava nu e me vestistes; eu estava doente e cuidastes de mim; eu estava na prisão e fostes me visitar” (vv. 34-36).

O critério da separação não são coisas excepcionais (cf. 7,22), mas as seis “obras da misericórdia” que se pode ilustrar com textos do AT e do NT (por ex. Is 58,6s; Pr 19,17; Jó 22,6-7; 31,31s; Eclo 7,32-35; Mt 5,7; 9,13; 12,7; 23,23): ajudar os famintos e os sedentos (10,42; Lc 3,11; 14,12-14; At 6,1-3; Rm 12,20; 1 Cor 11,33; cf. Jo 4,7; Sl 42,3), exercer a hospitalidade (10,40-42; Gn 18,2ss; Lv 19,34; Rm 12,13; Cl 4,10; 1Pd 4,9; Hb 13,2; cf. Mt 10,14; Lc 9,53s), vestir pessoas necessitadas (Tb 4,16; Ez 18,16; Lc 3,11; 15,22; At 9,36.39; Tg 2,15-16), cuidar dos doentes (Lc 10,33-35; Mc 6,13; Tg 5,14).

Divergindo do judaísmo, Jesus não fala aqui da assistência à viúva nem da educação dos órfãos (talvez para não confundir o sentido amplo de “menores” em v. 40; cf. 18,1-5; Mc 9,36s; Tg 1,27), nem do sepultamento dos mortos (cf. 26,10; Tb 1,17.19; Mc 15,42-47; At 8,2), mas menciona, em acréscimo, a visita aos prisioneiros (cf. 2Tm 1,16-18; Hb 13,3).

Na tradição cristã das obras da misericórdia, Lactâncio (250-320) acrescentou a sétima: “enterrar os mortos” (cf. Tb 1,17–20), St.º Agostinho (354-431) introduziu o paralelo entre as “obras espirituais” e as corporais; S. Tomás de Aquino (1225-1274) sistematizou-as. As sete obras espirituais da misericórdia (CIC 2447) são: aconselhar os indecisos, ensinar os ignorantes, admoestar os pecadores, consolar os aflitos, perdoar as ofensas, suportar com paciência as pessoas molestas, rezar a Deus pelos vivos e defuntos. Na arte cristã, as sete obras da misericórdia foram apresentadas contrastando os sete pecados capitais (orgulho, gula, avareza, luxúria, ira, inveja e preguiça).

O teólogo W. Kasper atualizou as obras da misericórdia (físicas, psíquicas, sociais, culturais). O Papa Francisco declarou um Ano da Misericórdia (08.12.2015-20.11.2016). Como o papa enfatiza: Quando tocamos nas feridas dos pobres e doentes, tocamos nas chagas de Cristo que se fez pobre (cf. 2Cor 8,9).

Então os justos lhe perguntarão: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos como estrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso, e fomos te visitar?” Então o Rei lhes responderá: “Em verdade eu vos digo, que todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (vv. 37-40).

Jesus identifica-se com os “menores de meus irmãos” (v. 40) e com os “mais pequenos” (superlativo de menores em v. 45), que não são mais os discípulos de 10,40-42, mas todas as pessoas necessitadas.

Depois o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: “Afastai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos. Pois eu estava com fome e não me destes de comer; eu estava com sede e não me destes de beber; eu era estrangeiro e não me recebestes em casa; eu estava nu e não me vestistes; eu estava doente e na prisão e não fostes me visitar”. E responderão também eles: “Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou nu, doente ou preso, e não te servimos?” Então o Rei lhes responderá: “Em verdade eu vos digo, todas as vezes que não fizestes isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizestes!” Portanto, estes irão para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna (vv. 41-46).

Como em Dt 27-28, a sentença é pronunciada em forma de benção e maldição: “benditos” (v. 34; cf. Sl 115,15; Is 65,23) e “malditos” (v. 41; cf. Jr 17,5; Sl 37,22). A sentença é “herdar o Reino” (v. 34; cf. 1Cor 6,9; 15,50; Gl 5,21; cf. Lc 12,82) ou o “castigo eterno” (v. 46), isto é o “fogo eterno” (v. 41; 18,8; cf. 13,40-43; Is 66,24; Dn 7,11; 12,2; Ap 20,10).

A cena nos faz compreender que muitos, mesmo sem conhecer a pessoa de Jesus, se ajustam aos valores dele, no esfera do amor ao próximo.

Então há salvação fora da igreja? O Concilio Vaticano II afirma: quem não conhece Jesus, mas segue a sua própria consciência (reconhecendo a lei natural, por ex. a Regra de Ouro em Mt 7,12) pode ser salvo, sim (cf. LG 16; cf. CIC 846-848). Então a fé não importa no juízo final? Importa, sim (cf. 10,32s), mas fé cristã significa compromisso com a pessoa concreta de Jesus, e onde está Jesus? Só no céu? Através da sua encarnação e sua cruz, ele se identifica com os seres humanos que sofrem, os pobres e necessitados, marginalizados por uma sociedade baseada na riqueza, no poder e no bem-estar egoísta.

Por isso, o julgamento será sobre a realização de uma prática de justiça em favor dos pobres, conforme a vontade do Pai (cf. 5,3; 7,21). Esta prática central da fé, desde o início apresentada por Mt como cerne da atividade de Jesus, é “cumprir toda a justiça” (3,15). A justiça de Deus é a misericórdia em Jesus. Ele será nosso juiz e espera que nós tenhamos a mesma opção preferencial pelos pobres que ele demonstrou por sua vida. “Bem-aventurados os misericordiosos, eles alcançarão misericórdia” (5,7).

O site da CNBB comenta: Jesus nos mostra no Evangelho de hoje que a verdadeira religião não é aquela que é marcada por ritualismos e cumprimento de preceitos meramente espirituais, afinal de contas ele não nos perguntará no dia do julgamento final se nós procuramos cumprir os preceitos religiosos, mas sim se fomos capazes de viver concretamente o amor. É claro que a religiosidade tem sentido, principalmente porque é através do relacionamento com Deus que recebemos as graças que nos são necessárias para a vivência concreta do amor, mas a religiosidade sozinha, desvinculada da prática do amor, é causa de condenação e não de salvação.

Fiéis defuntos (finados): Missa 3

A nossa liturgia católica deixa um ampla variedade de textos bíblicos para se escolher nas missas neste dia (50 páginas no lecionário, mas no site da CNBB repetem-se apenas os textos de Todos os Santos!). Apresentamos aqui as leituras sugeridas na Liturgia diária da Editora Paulus (Missa 3).

Antes uma observação sobre a origem desta comemoração: a data coincide com Samhain, uma festa pagã. Antes da chegada do inverno europeu (frio, neve, escuridão), os celtas comemoravam a colheita junto com seus ancestrais (mortos); acreditavam que nessa época mais escura do ano as almas dos mortos retornavam às suas casas para visitar os familiares e buscar alimento (daí o costume Halloween, hoje comercializado). Como em outros casos (por ex. Natal), a festa pagã não foi abolida, mas ganhou um novo sentido cristão.

Em Roma celebrava-se o dia de Todos os Santos (ancestrais espirituais) em 01º de novembro e surgiu a necessidade de um dia próprio para rezar por todos os outros falecidos dos quais não se sabe se estão no céu (a doutrina do purgatório se desenvolveu nesta época, baseando-se em 2Mc 43-45; 1Cor 3,13-15; Mt 12,32). Em 998, o abade Odilo de Cluny introduziu o dia 02 como dia próprio para todos os mosteiros beneditinos de onde se difundiu para toda população no ocidente. O nome oficial é “comemoração de todos os fiéis defuntos”. No oriente se reza pelos falecidos em vários dias durante o ano.

1ª Leitura: Sb 3,3-9

O livro de Sabedoria é o mais novo do AT e não faz parte da Bíblia (hebraica) dos judeus, nem dos protestantes. Foi escrito em grego entre 50 e 30 a.C. em Alexandria do Egito, grande centro de cultura helenista e filosofia grega onde se abrigava a maior biblioteca da antiguidade. O autor queria fortalecer a fé dos 200.000 judeus que moravam nesta cidade pagã.

Os egípcios antigos pensavam muito numa vida após morte, mumificaram seus corpos e construíram túmulos luxuosos (pirâmides, vale dos mortos). Acreditaram também num julgamento após a morte. Mas os gregos e romanos eram mais materialistas e se acreditaram numa vida após a morte, era apenas como sombra da alma no submundo (hades, cf. 1,14). Para eles, a vida verdadeira era aqui e agora e tinha que ser aproveitada ao máximo (carpe diem – colha o dia), porém, muitas vezes às custas dos pobres (escravos) e eliminando o justo que se diz “filho de Deus” (cf. o pensamento dos perversos descrito no cap. 2).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 840) comenta: No mundo greco-romano, os poderosos oprimiam o pobre e sacrificavam o justo. Como não acreditavam na imortalidade, diziam que o justo era um fracassado. O sábio, porém, garante: no dia do julgamento, no “tempo da visita”, o justo há de brilhar; ao contrário, para os opressores não haverá esperança, pois se afastaram de Deus e desprezaram os mais fracos (cf. Eclo 41,5-13).

A Bíblia do Peregrino (p. 1530) comenta nossa leitura: Toma o justo onde deixaram os perversos: condenado e morto. Fica algo dele? Na convicção dos perversos, o assunto terminou, provaram sua tese sobre inutilidade da justiça. O autor abre novo ato com nova situação: a morte não é o último acontecimento na vida do justo, mas abre um entreato para a nova e definitiva situação.

A Bíblia do Peregrino (p. 1530) observa as correspondências de 3,1-12 com o cap. 2: O autor assegura a continuidade com uma serie de repetições verbais (em grego) ou sinonímicas. Os perversos faziam uma prova com o justo (2,17.19); na realidade, era Deus que o submetia à prova (3,5.6); eles o submetiam a tormentos (2,19), mas o tormento não o tocou (3,1); a vida era uma chispa (2,2), a nova vida é um incêndio glorioso (3,7); os perversos atropelavam o desvalido (2,10), os justos submetem os povos (3,8); os perversos declaravam o fraco inútil (2,11), agora se vê que as obras deles são inúteis (3,11); o justo olhava o perverso com escória (2,16), agora o justo é ouro acrisolado (3,6); o justo estava nas mãos dos perversos (2,18), agora está na mão de Deus (3,1). A “esperança” (4) faz compreender a verdade (9).

A vida dos justos está nas mãos de Deus e nenhum tormento nos atingirá (v. 1).

Em 2,18, o justo estava nas mãos dos adversários, que o condenaram à morte, mas agora ele está nas mãos de Deus. Recorde-se Sl 31,6.16, citado por Lc 23,46 e At 7,59 (últimas palavra de Jesus e do diácono Estêvão).

“Nas mãos de Deus” expressa, ao mesmo tempo, dependência imediata (Jó 12,10 grego) e proteção (Dt 33,3; Is 51,16; Jo 10,28s). A vida (lit. as almas) dos justos estão protegidas dos tormentos, sem que se diga, porém, se escapam do Hades (Sheol) ou ai se encontram num lugar especial.

Aos olhos dos insensatos parecem ter morrido; a sua saída do mundo foi considerada uma desgraça, e sua partida no meio de nós, uma destruição; mas eles estão em paz (vv. 2-3).

“Aos olhos dos insensatos parecem ter morrido”; é raciocínio falso e o julgamento errado de 1,3.5; 2,1.21. Aqui chama a morte do justo de “saída do mundo” (trânsito) e “partida” (cf. Lc 9,31; 22,22; Jo 13,1): mais que eufemismos, são os nomes apropriados.

Para o sábio, porém, “eles estão em paz”, não é só a paz negativa de acabar (Jó 3,13-19; Eclo 41,2), a ausência de todo mal (Is 57,2; Jó 3,17-18), e sim a paz positiva e plena (vv. 8s), um estado de segurança e felicidade sob a proteção (v. 1) ou na intimidade (v. 9) de Deus.

Aos olhos dos homens parecem ter sido castigados, mas sua esperança é cheia de imortalidade; tendo sofrido leves correções, serão cumulados de grandes bens, porque Deus os pôs à prova e os achou dignos de si (vv. 4-5).

Os justos falecidos parecem ter sido “castigados”; palavra frequente em Sb, em contextos de retribuição. Mas sua “esperança é cheia” “esperança cheia” (Hb 6,11) de “imortalidade” (1,15: “a justiça é imortal”).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1207) comenta: A esperança (Rm 5,2) desempenha um papel capital na vida dos justos e tem por objeto a imortalidade, “athanasia”. Essa palavra, até aqui inusitada no AT, mas familiar aos gregos, designava quer a imortalidade da lembrança (cf. 8,13), quer a da alma. O autor a emprega aqui no segundo sentido, mas para significar a imortalidade bem-aventurada na sociedade de Deus, como recompensa pela justiça (1,15; 2,23). Deste modo ele precisa as esperanças do Salmista, que não se resignava a perder, pela morte, a intimidade de Deus (Sl 16,10).

”Tendo sofrido leves correções, serão cumulados de grandes bens” há uma desproporção, como em Rm 8,18. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1687) comenta: A palavra traduzida por “correções” significa também educação. O tema da educação paternal de Deus (Dt 8,5; Pr 3,12) adquire aqui um alcance escatológico. As “correções leves” dos justos serão magnificamente compensadas (cf. Rm 8,18; 2Cor 4,17; Hb 12,7-11). Elas também servem à sua purificação (cf. 1Pd 1,6-7).

Deus os pôs à prova e os achou dignos de si”. A “prova” é pedra de toque e meio de purificação dos justos (cf. Gn 22,1; Tb 12,13; Jó 1,2; Sl 66,10; 1Pd 1,6-7). Nas provações venceram, na esperança da imortalidade futura, certos de que Deus lhes recompensaria a constância e a fidelidade.

“Dignos de Deus” é uma expressão audaz e magnífica (cf. Mt 10,37; 22,6; Lc 15,19). Talvez aluda à imagem de Deus, que o justo soube conservar (2,23), e à sua filiação divina (2,13.16.18; cf. Lc 15,19).

Provou-se como se prova o ouro no fogo e aceitou-os como oferenda de holocausto; no dia do seu julgamento hão de brilhar, correndo como centelhas no meio da palha; vão julgar as nações e dominar os povos, e o Senhor reinará sobre eles para sempre (vv. 6-8).

“Como se prova o ouro no fogo” (no fogo o ouro se deliga dos metais menos nobres; cf. Eclo 2,5; Sl 66,10; Is 1,25; 48,10; Zc 13,9; 1Pd 1,7). “Aceitou-os como oferenda de holocausto”; o termo grego holocausto significa “queimado por inteiro”, o sacrifício (animal) ofertado a Deus é queimado no altar sem reservar uma parte para os sacerdotes ou a família que oferta. Aqui indica a totalidade da entrega e da aceitação do justo e o caráter cultual dessa entrega, Sl 51,19; cf. Dn 3,39.

“No dia do seu julgamento (lit. sua visita) hão de brilhar”. Esta visitação ou intervenção divina (cf. 2,20; 3,13, 4,15; 14,11), favorável às almas dos justos, marcará a sua glorificação definitiva.  A Bíblia de Jerusalém (p. 1207) comenta: A palavra (cf. Ex 3,16) designa aqui uma intervenção favorável de Deus, suscetível de coincidir com um julgamento geral ou parcial. A própria expressão, que reproduz lit. Jr 6,15; 10,15 (LXX; cf. também Is 24,22), indica uma fase ulterior na condição das almas justas. O verbo seguinte deve significar sua glorificação definitiva: se a noção de “resplendência” se aplica em outros lugares aos eleitos ressuscitados (Dn 12,3; Mt 13,43), essa doutrina de uma ressurreição corporal não se explicita em nenhuma parte do livro.

A Bíblia do Peregrino (p. 1530) comenta: A imagem do esplendor é escatológica em Dn 12,3 (brilho de astros); Is 60 e 62 (de Jerusalém). Se o canavial alude a Ab 18 ou a Zc 12,6, então a segunda imagem fala do triunfo dos justos sobre os perversos… Em textos escatológicos e apocalípticos hebraicos, é comum falar do triunfo final de Israel, constituindo senhor de todos os povos, sob o reinado imediato do Senhor seu Deus. Compara-se com 1Cor 6,2 (que dá por sabida a doutrina); Ap 20,4-6 (o reino dos mil anos com Cristo); Ap 2,26.

A “palha” é associada em muitos textos bíblicos ao destino dos insensatos e perversos (cf. Sl 1,4s; 35,5; Jó 21,18). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1687) comenta: No AT, a imagem da palha em chamas evoca uma destruição rápida e radical, provocada seja pela cólera divina (Ex 15,7; Is 5,24; Na 1,10; Ml 3,19), seja pela vitória de Israel sobre os inimigos (Ab 18; Zc 12,6). Sobre as faíscas que propagaram o fogo, cf. Is 1,31. Os justos glorificados seriam então associados a Deus no castigo dos ímpios. Compará-los a faíscas manifesta, também, a entrada num estado novo, luminoso e glorioso.

Como o fogo simboliza a presença de Deus (cf. Gn 15,17; Ex 3,2; 13,21s; 19,18 etc.) e seu julgamento para discernir o que presta (o ouro, v. 6) do que não presta, aqui os justos “correndo como centelhas no meio da palha” significa a participação dos justos glorificados no julgamento (cf. Mt 19,28) e no extermínio do mal. “Vão julgar as nações e dominar os povos” (cf. Sl 149,5-9). Os justos serão associados ao Reino eterno de Deus sobre todos os povos (cf. o juízo de Deus e os justos participando do reino em Dn 7,9s.18.22.27; 12,2s).

Os que nele confiam compreenderão a verdade, e os que perseveram no amor ficarão junto dele, porque a graça e a misericórdia são para os seus eleitos (v. 9).

O autor expressa com brevidade e densidade a relação mútua de amor. “Os que nele confiam compreenderão a verdade”, uma verdade que justificará sua confiança e lhes revelará todo o desígnio misterioso e providencial de Deus sobre as pessoas (cf. 4,17).

“Os que são fiéis no amor permanecerão junto a ele”, ou então, separando a frase de outra maneira: “Os que são fiéis permanecerão juntos a ele no amor” (Bíblia de Jerusalém). A felicidade dos eleitos é feita ao mesmo tempo de conhecimento e de amor.

“Porque a graça e a misericórdia são para os seus eleitos”; o texto é incerto. Alguns manuscritos trazem uma versão mais longa: “porque há graça e misericórdia para seus santos, e ele visitará seus eleitos.”

2ª Leitura: Ap 21,1-5a.6b-7

No final do seu livro apocalíptico, o autor “João” (1,4.9), um presbítero ou bispo da Ásia Menor, que se vê como profeta, não como apóstolo (cf. 1,3; 22,10.19), mostra que a meta da história, para além do tempo, é a plena realização da Aliança de Deus com humanidade, numa vida inteiramente imortal. O fim da história é a vida.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1525) comenta: A série de visões tem seu ponto de chegada na apresentação de outro mundo, novo e diferente. Nele se realiza em plenitude a aliança entre Deus e a humanidade libertada. João é o encaminhado a contemplar uma nova cidade que vem ao mundo e se apresenta em ambiente todo diverso, o novo céu e a nova terra (cf. Is 65,17-25). Este cenário, livre da dominação e da violência, proclama a presença eterna de Deus no meio da humanidade.

Nos caps. anteriores, o autor descreveu a queda da cidade opressora Babilônia (na verdade, Roma; cf. caps. 17-18), a batalha final e a ressurreição dos mortos com o julgamento (caps. 19-20). A Bíblia do Peregrino (p. 2973) comenta: O espaço ficou livre para o novo universo, a nova criação e para celebrar o casamento do Cordeiro. O universo é escrito com traços conjugados: ausência de males, presença de bens. A noiva é Jerusalém, ou seja, mulher e cidade, formosa e feliz. O autor dedica mais espaço para descrevê-la como cidade, mas o leitor não deve perder de vista o contexto conjugal do amor (que ressoará com força no final). O antecedente de Is 40-66 é significativo porque o texto combina e sintetiza sem dificuldades ambos aspectos: p. ex. em 49,14-26 se fala de esposa, mãe e escombros; em 54,1-10 o diálogo amoroso menciona “o espaço da tenda”, no capitulo 60, Jerusalém é matrona e cidade, e assim por diante.

(Eu, João,) vi um novo céu e uma nova terra. Pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe (v. 1).

Os profetas antigos descreveram a felicidade messiânica anunciada para o futuro mais ou menos como um retorno ao paraíso (cf. Is 11,6-9). Mas nas obras apocalípticas, sem repudiar as antigas representações (Is 65,25 cita Is 11,7), espera-se uma renovação total.

Em 21,1-8 a nova relação que existe entre Deus e os homens é apresentada como “um novo céu e uma nova terra”. Esta ideia é inspirada em Isaías (sobretudo Is 51 e 65) com o tema clássico da eliminação da primeira criação e de sua substituição por uma criação nova, ou outra ordem, é a fase última da obra regenerada de Deus (Is 65,17; 66,22). Tornamos a encontrá-la várias vezes na literatura apocalíptica dos apócrifos (cf. Henoc 45,4-5; 71,1; 91,16; 4Esd 7,75), bem como no Novo Testamento (cf. Mt 19,28; Mc 13,24.31; 2Cor 5,17; Cl 3,10; 2Pd 3,13).

A Bíblia de Jerusalém (p. 2326) comenta: Em Isaías (65,17; 66,22), a expressão era apenas o símbolo da renovação da era messiânica. Em consonância com Cristo (cf. Mt 19,28; 2Pd 3,13), Paulo abre perspectivas mais realistas: toda a criação será um dia renovada, libertada da servidão e da corrupção, transformada pela glória de Deus (Rm 8,18-22).

“O mar já não existe”, porque os antigos o consideravam como ameaça. O mar é o resíduo do caos primitivo e a morada das potencias do abismo, moradia do dragão e símbolo do mal (Jo 7,12), de onde vieram as bestas-feras, os romanos e para onde se desejava expulsá-los (13,1; Dn 7; cf. Mc 5,9-13). Desaparecerá como nos dias do êxodo (Ex 14), mas desta vez para sempre, diante da marcha vitoriosa do novo Israel (cf. Is 51,9s; Sl 74,13s; Jó 26,12s; Is 27,1).

Vi a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, de junto de Deus, vestida qual esposa enfeitada para o seu marido (v. 2).

Este fim da história, a nova criação não é simbolizada por outro jardim de Eden (Gn 2), mas por uma cidade (com rio e áreas verdes, cf. 22,1-2). A “nova Jerusalém” (3,12; cf. Gl 4,26) está em contraste total com a Babilônia, a cidade “prostituta” em Ap 17-18 (representando Roma com suas sete colinas, cf. 17,9). A nova Jerusalém é a “esposa”, a cidade dos eleitos e um dom de Deus (vem “do céu”), “desce”, porque a noiva é tradicionalmente conduzida ao noivo que a espera (cf. Sl 45).

É a noiva/esposa do Cordeiro, o “casamento do Cordeiro” já foi anunciado em 19,7-9; o vestido (linho puro) da noiva-esposa representa a “conduta dos santos” (19,8; cf. Is 52,1; 61,10). Na nova criação, o novo Adão esposa a nova Eva; realiza-se a Aliança de Deus com toda a humanidade (cf. v. 3).

No AT, Jerusalém representa a cidade de Davi, capital e centro religioso de Israel (2Sm 5,9; 24,25; 1Rs 6,2; Sl122), cidade de Deus (Sl 46,5), cidade santa (Is 52,1; Dn 9,24; cf. Mt 4,5), cujo coração era a montanha (Sl 2,6), onde o Templo fora construído (Dt 12,2-3), era tida em Israel como a futura metrópole do povo messiânico (Is 2,1-5; 54,11; 60; Jr 3,17; Sl 87,1; 122; cf. Lc 2,38). Foi lá que o Espírito Santo fundou a Igreja cristã (At 1,4.8; 2,1ss; 8,1.4; etc.). Em nosso texto aqui, ela foi transportada para o céu, onde se cumpre o desígnio salvífico de Deus (3,12; 11,1; 20,9; 22,19; cf. Gl 4,26; Fl 3,20; At 2,22-24) quando são celebradas suas núpcias com o Cordeiro (19,7-8; cf. Is 61,10; 62,4-5; Os 1,2; 2,16; etc.).

São as novas núpcias de Jerusalém com seu Deus, na alegria e no júbilo (19,7; cf. 65,18; 61,10; 62,4-6). E o ideal do êxodo enfim atingido (Os 2,16-25). No AT, Deus é às vezes chamado de esposo de Israel (Is 54,1-8; Os 2,16-18). O cristianismo adota este simbolismo, embora o modificando um pouco: É Cristo que é o esposo da Igreja (cf. Ef 5,23.25.32; Mc 2,19p; Jo 2,1) e as núpcias, realização perfeita da aliança, são esperadas para o fim dos tempos (cf. Mt 22,2; 25,1-13).

Então, ouvi uma voz forte que saía do trono e dizia: “Esta é a morada de Deus entre os homens. Deus vai morar no meio deles. Eles serão o seu povo, e o próprio Deus estará com eles (v. 3).

A “voz forte que saía do trono” (v. 3) é “daquele que está sentado no trono” (v. 5), ou seja do próprio Deus. Pelo amor do Cordeiro à nova Jerusalém, Deus habita entre os homens, e os homens com ele.

“Eis a morada de Deus com os homens” (lit. tenda, tabernáculo, cf. 7,15-17; Jo 1,14) lembra a presença de Deus na caminhada do êxodo, conduzindo o povo de Deus para longe da escravidão do império egípcio. É a realização de Lv 26,11-13, mas aqui vislumbra a libertação definitiva.

“Eles serão o seu povo, e o próprio Deus estará com eles”. É transposição exata de Imanu-El (Emanuel = Deus conosco: cf. Is 7,14; Mt 1,23) e a fórmula clássica da aliança, que se encontra 19 vezes no AT: Ex 6,7; Lv 26,12; Dt 26,17-19; 29,12; 2Sm 7,24 (=1Cr 17,22); Jr 7,23; 11,4; 24,7; 30,22; 31,1.33; 32,32; Ez 11,20; 14,11; 36,28; 37,23.27; Zc 8,8; cf. 2Cor 6,16). A presença e a intimidade caracterizam a aliança de Deus com seu povo (cf. Ex 25,8 e Jo 1,14). Ela será consumada no fim do tempo (cf. Jl 4,17. 21; Zc 2,14; Sf 3,15-17; Is 12,6).

Deus enxugará toda lágrima dos seus olhos. A morte não existirá mais, e não haverá mais luto, nem choro, nem dor, porque passou o que havia antes.” Aquele que está sentado no trono disse: “Eis que faço novas todas as coisas” (vv. 4-5a).

A descrição desta alegria completa sem lágrimas (cf. 7,15-17), nem morte, nem luto, nem choro, nem dor, está inspirada no banquete sagrado e universal preparado por Deus em Is 25,8 (também Is 65,19 e 35,10 no canto a alegria). A iniciativa é de Deus, que “renova todas as coisas” (cf. v. 1; 2Cor 5,17).

Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. A quem tiver sede, eu darei, de graça, da fonte da água viva. O vencedor receberá esta herança, e eu serei seu Deus, e ele será meu filho” (vv. 6b-7).

“Eu sou o Alfa e o Ômega” repete a introdução de 1,8. Agora no final do Ap, a história turbulenta e agitada “acabou” (v. 6a), mas Deus permanece. “Alfa” é a primeira e “Ômega” é a última letra do alfabeto grego. A expressão significa: “o Princípio e o Fim” (em 22,13 acrescenta: “o Primeiro e o Último”, cf. 1,17; 2,8, 3,14). A afirmação lembra o monoteísmo exclusivo de Is 41,4; 44,6; 48,12. O nome hebraico de Deus, Yhwh (Javé), revelado em Ex 3,14 foi traduzido em grego por “Eu sou”.

“A quem tiver sede, eu darei, de graça, da fonte da água viva” (cf. Is 55,1). No AT a água, símbolo da vida era característica dos tempos messiânicos. A água de fonte torna-se, no AT, o símbolo da vida que é dada por Deus, especialmente nos tempos messiânicos (Is 12,3; 55,1; Jr 2,13; Ez 47,1s; cf. Sl 46,5 e Zc 14,8; Sl 36,9-10 e no NT, Ap 22,17) ou, ainda, símbolo da Sabedoria e da Lei, que dão a vida (Pr 13,14; Eclo 15,3; 24,23-29). Esses temas encontram-se na cena evangélica, onde a água viva se torna o símbolo do Espírito (Jo 4). No NT, água se torna o símbolo do Espírito (7,17; Jo 4,10-14; 7,37-39) em virtude do batismo.

O “vencedor” é que vence as tentações mesmo na perseguição (cf. Jo 16,33; 1Jo 2,14; 5,4) em que vive o autor e suas comunidades. Seis das cartas do Ap às sete comunidades terminam com uma promessa ao “vencedor” (2,7.17.26; 3,5.12.21).

“Eu serei seu Deus, e ele será meu filho”; lembra a fórmula da aliança que já foi falado em v. 3 ao povo de Deus, agora aplica-se ao indivíduo. O título de “Filho de Deus” devia ser conferido ao rei Messias, sucessor de Davi, no dia de sua entronização (2Sm 7,14; Sl 2,7; 89,27s); Cristo foi declarado “Filho de Deus” em virtude de sua ressurreição (At 2,36; Rm 1,4; Hb 1,5). Ele estende este título aos que nele creem (Jo 1,12).

A Bíblia do Peregrino (p. 2973) comenta: Combina apertadamente duas metades, deixando que as outras duas tácitas ressoem por harmonia: Eu serei seu Deus (e seu Pai), ele será meu filho (e meu povo); restrito no caso do Rei (Sl 2,7; 89,27-28). O tema da herança, frequente no AT, se acha também no NT: 1Cor 15,50; 1Pd1,3-5.

 

Evangelho: Mt 5,1-12a

Em Mt, Jesus expôs o espírito novo do reino de Deus (4,17) num discurso inaugural (o primeiro de cinco neste Ev), chamado de ”sermão da montanha”, iniciando-o com as bem-aventuranças.

Em Lc, o mesmo discurso, porém menor, acontece “na planície” (Lc 6,17.20-49). Como se pode verificar nas diferenças entre os evangelhos de Mt e Lc (p. ex. na infância de Jesus e nas aparições do ressuscitado), ambos os evangelistas não se conhecem, escreveram independentemente um do outro, mas copiaram grande parte do evangelho mais velho, de Mc. Mas em Mc não temos este discurso. A teoria das duas fontes diz que Mt e Lc usaram ainda outra fonte escrita (além de Mc) que se perdeu na história. Os peritos da Bíblia a reconstruíram e a chamam de “Q” (da palavra alemã Quelle = fonte): uma coleção catequética de palavras (não de ações, mas de parábolas, ensinamentos) de Jesus (e algumas de João Batista). Outra teoria propõe que um redator (Deutero-Mc) poderia reeditado Mc com algumas mudanças e acréscimos (material de Q), porque chama atenção o fato de que o sermão está inserido, em Mt e Lc, praticamente no mesmo lugar da sequência de Mc que informa de onde veio a grande multidão que seguia Jesus: de todo Israel e até regiões vizinhos, “vinda da Galileia, da Judeia… até Sidônia” (Mc 3,7-10: Lc 6,17-19; Mt 4,23-25).

Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los (v. 1).

“Começou a ensiná-los” (vv. 1-2; lit. “abriu a boca” (cf. Is 53,7; Ez 3,27; Sl 78,2). Jesus não se retira da multidão (cf. 14,23p) e nem se senta apenas para descansar. A introdução própria de Mt quer lembrar a seus leitores judeu-cristãos a autoridade tradicional de Moisés no monte Sinai (cf. Ex 19-20). O sermão da montanha é como a constituição de um novo povo de Deus com Jesus promulgando a nova lei. Os rabinos (mestres judaicos) costumam sentar-se ao ensinar (daí a palavra “catedral”, é o lugar onde está a cátedra=cadeira=sede do bispo). Todo discurso é dirigido não só aos discípulos, como pode parecer aqui, mas ao povo todo, como consta no final do sermão (7,28).

O início desta nova (interpretação da) Lei não são mandamentos como na antiga Lei (no Sinai era o decálogo, ou seja, os 10 mandamentos; cf. Ex 20), mas felicitações: as oito (ou nove, com v. 11) bem-aventuranças. Em Mt, Jesus usa a terceira pessoa (“os”, só em v. 11 muda para “vós”), em Lc a segunda (“vós”). Enquanto Mt apresenta oito (ou nove) bem-aventuranças como caminho de vida ética e espiritual (Mt 5,3: “pobres em espírito”) e com promessas de recompensa celeste, Lc só conhece quatro bem-aventuranças (Lc 6,20-23) e preserve mais a versão original e social, a mudança de situações entre esta e a futura (cf. 16,25). Esta opinião de que a versão de Lc é mais perto das palavras originais de Jesus se baseia na observação de que é mais provável um evangelista (Mt) acrescentar algo às palavras de Jesus do que diminuir ou tirá-las (também os quatro ais em Lc 6,24-26 devem ser um acréscimo).

“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados. Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra” (vv. 3-6).

Em Lc, os “pobres” (economicamente, cf. Dt 15,1-11; Is 29,10; Sl 72,4.13; 74,21; 1 Sm 2,8 e Lc 1,52-53) são também os “famintos” (Sl 58,7; Sl 107,9; Jl 2,26) e os “aflitos” que choram (Is 25,8; 30,19; Sl 56,9; 126,5-60), e sua situação está relacionada à posse do reino. Mt destaca mais a ética e espiritualiza, retrata as atitudes do próprio Jesus nestas bem-aventuranças indicando um caminho para qualquer discípulo que queira seguir.

O AT (Antigo Testamento) às vezes expressava felicitações como essas falando de piedade, de sabedoria e de prosperidade (Sl 1,1-2; 33,12; 127,5-6; Pr 3,3; Eclo 31,8; etc.). No espírito dos profetas, Jesus lembra que também os pobres participam das suas bênçãos: as três primeiras bem-aventuranças (Mt 5,3-5; Lc 6,20-21) declaram que pessoas comumente tidas como infelizes e amaldiçoadas são felizes, estão aptas para receber a benção do reino. As bem-aventuranças seguintes se referem mais diretamente a atitude moral do homem. Outras bem-aventuranças de Jesus se encontram em Mt 11,6; 13,16; 16,17; 24,46; Lc 11,27s; etc. (cf. Lc 1,45; Ap 1,3; 14,13; etc.)

Cristo retoma a palavra “pobre” com o sentido moral que já se percebe em Sofonias (cf. Sf 2,3), explicitado em Mt 5,3 pela expressão “em espírito”, que não ocorre em Lc 6,20. Despojados e oprimidos, os “pobres” ou os “humildes” estão disponíveis para o reino dos céus (cf. Lc 4,18; 7,22; Mt 11,5; Lc 14,13; Tg 2,5). A “pobreza” sugere a mesma ideia que a “infância espiritual”, necessária para entrar no reino (Mt 18,1; Mc  9,33s, cf. Lc 9,46; Mt 19,13; 11,25), o ministério revelado aos “pequeninos” (cf. Lc 12,32; 1Cor 1,26s). Aos “pobres” corresponde ainda os “humildes” (Lc 1,48.52; 14,11; 18,14; Mt 23,12; 18,4), os últimos em oposição aos primeiros (Mc 9,35), os pequenos em oposição aos grandes (Lc 9,48; cf. Mt 19,30p; 20,26p; Lc 17,10). Embora a expressão de Mt 5,3 enfatize o espírito da pobreza tanto no rico como no pobre, o que Cristo quer salientar é uma pobreza efetiva particularmente para seus discípulos (Mt 6,19s; cf. Lc 12,33s; Mt 6,25p; 4,18s, cf. At 2,44s; 4,32s). Ele mesmo dá o exemplo de pobreza (Lc 2,7; Mt 8,10p) e de humildade (Mt 11,29; 20,28p; Mt 21,5; Jo 13,12s; cf. 2Cor 8,9; Fl 2,7s) identificando-se com os pequeninos e com os infelizes (Mt 25,45, cf. 18,5p).

Os “aflitos” comovem a Deus (cf. Ex 3,17; Is 48,10; 61,1-3) e “serão consolados” (v. 4; cf. Is 40,1; 2Cor 1,3-7; em Lc 6,21 “haverão de rir”).

Própria de Mt é a “herança” da terra aos “mansos”, aos injustamente despossuídos (v. 5; cf. Sl 37,11). Alguns anos antes da redação do evangelho por volta de 80 d.C., a Guerra Judaica, os seja, a luta violenta contra os romanos para conseguir a independência de Israel, acabou em derrota (destruição de Jerusalém e do templo em 70). Esse fato reforçou a posição pacífica de cristãos contra o movimento nacionalista dos judeus (p. ex. zelotas; cf. o conselho de Gamaliel em At 5,34-39).

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados (v. 6).

Mt não só fala dos famintos, mas dos que têm “fome e sede de justiça” (v. 6). Como metáfora, fome e sede podem ter como objetivo o próprio Deus (Sl 42,2; 63,2: cf. Jo 6), aqui é a justiça que corresponde ao reino de Deus (cf. 5,20; 6,1.25.31.33).

Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia (v. 7).

A “misericórdia” (v. 7) é um atributo principal de Deus (cf. Ex 34,6) e é aconselhada também ao homem, inclusive como bem-aventurança em Sl 41,2. O passivo tem Deus como agente (cf. 6,12; 18,23-35; Pr 14,31; 19,17).

Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus (v. 8).

Os “puros de coração” (v. 8) são sinceros com Deus e com as pessoas (cf. Sl 24,4; Pr 12,11), não são corruptos. Esta pureza interior se opõe à pureza meramente externa e ritualista (23,25-28). “Verão a Deus”, ver a Deus é desejo e esperança suprema (Sl 11,7; 17,15; 63,3) que nem Moisés alcançou (Ex 33,20; cf. Jo 1,14.18; 14,9). Também em 1Jo 3,2s se relaciona a visão beatífica à pureza.

Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus (v. 9).

A “paz” e não a violência (cf. 5,38-48; 26,52) faz parte essencial das profecias sobre o messias (cf. Is 2,2-5; 9,5; 11,1-9; 42,1-4). Como o messias (“Cristo”) é o Filho de Deus com o Espírito de paz (cf. o símbolo da pomba em 3,16s), seus discípulos (“cristãos”, At 11,26) também “serão chamados filhos de Deus”.

Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus (vv. 10-12a).

Aos “perseguidos por causa da justiça” (v. 9), por serem justos ou vítimas inocentes (cf. Sb 2), pertence o reino como em v. 3.

Em v. 11, Mt passa para a segunda pessoa (“vós”), acrescentando uma ampliação à oitava bem-aventurança. A chave está na mudança da causa, agora “sois vós”, perseguidos “por causa de mim”, Jesus Cristo (vv. 11-12). Mas “alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois foi assim que perseguiram os profetas que vieram antes de vós” (a segunda parte deste v. 12 é omitida pela liturgia de hoje, talvez por querer um final positivo ou um final atualizado: antes de nós hoje não vieram os profetas do AT, mas 2000 anos de história da Igreja). Os discípulos de Jesus são sucessores dos profetas. No AT, os profetas foram perseguidos por cumprirem sua missão (11,47; 2Cr 36,16), desde Elias por Jezabel (1Rs 19) até a figura exemplar de Jeremias, “o profeta queimado”, passando por Amós (Am 7). A perseguição por causa de Jesus e seu evangelho é uma constante da Igreja desde a época dos Atos dos Apóstolos e tem lugar importante no Apocalipse (cf. 10,23; 23,34; 1Pd 4,4.12-19).

No estado laico de hoje, os cristãos não são perseguidos, mas às vezes discriminados quando querem se manifestar publicamente (alega-se que religião seja coisa apenas privada) ou por defender a ética frente à corrupção da maioria. Mas ainda existe perseguição de cristãos em alguns países (p. ex. islâmicos, comunistas).

O site da CNBB comenta: O sermão da montanha nos mostra a moral da Nova Aliança e começa com as bem-aventuranças, apresentadas no Evangelho de hoje, e que nos mostram as motivações e as virtudes que nos são necessárias para que assumamos os valores do Reino de Deus e possamos viver de forma madura o que nos é proposto por Jesus.

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