20 de Agosto 2019, Terça-feira: E todo aquele que tiver deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos, campos, por causa do meu nome, receberá cem vezes mais e terá como herança a vida eterna (v. 29).

20ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Jz 6,11-24a

No livro de Jz, a redação deuteronomista descreve uma época quando ainda não tinha um poder central (rei) e usa um esquema para explicar os males em Israel, a infidelidade a Javé que levou o povo a perda da liberdade e da terra e ao exílio. Este esquema (cf. leitura de ontem) é retomado para a história de cada “juiz maior” (cf. 2,11-19; 3,7-9.12-15; 4,1s; 6,10; 10,6s etc.) chamado para liderar e liberta o povo: 1. Pecado (vv. 11-13); 2. Castigo (vv. 14-15a); 3. Conversão (vv. 15b); 4. Libertação (vv. 16.18); 5. Novo pecado (vv. 17.19)

Depois da vitória da profetisa e juíza Débora e seu general Barac sobre os cananeus (Jz 4-5), o povo de Israel afastou-se de novo de Javé. Então o Senhor os entregou aos madianitas por sete anos (6,1-6). Os israelitas clamaram ao Senhor (v. 7) e, na leitura de hoje, ouvimos como ele chamou Gedeão como juiz maior com carisma e força militar. Ele será o novo líder que tentará reorganizar o povo. A primeira coisa a fazer será voltar ao projeto do Deus libertador (v. 13) e colocar-se a serviço dele. O segundo nome de Gedeão será Jerobaal (v. 32).

A Bíblia do Peregrino (p. 435) comenta lembrando o encontro de Abraão com os três homens (Deus e dois anjos em Gn 2): A passagem tem um tom que recorda intensamente as cenas patriarcais, especialmente Gn 18: a divindade assume a figura antropomórfica, embora demonstre poder sobre-humano e se reserve a liberdade de aparecer e desaparecer. O homem pode rogar, não mandar nem dispor. Em Gn 18, a divindade aceitava o banquete, aqui o transforma em holocausto.

Veio então o anjo do Senhor e sentou-se debaixo de um carvalho que havia em Efra, e pertencia a Joás, da família de Abiezer (v. 11a).

Ver diretamente a aparição de Deus acarreta perigo de morte (v. 22; cf. Ex 33,20). Nos textos antigos (Gn 16,7; 22,11; Ex 3,2; Jz 2,1), o “anjo de Javé (traduzido: do Senhor) ” é a aparição de Javé, não um anjo criado distinto de Deus (Ex 23,20). Por isso o texto emprega essa fórmula, quando o anjo aparece, se senta, age (vv. 11-12.20-21), enquanto diz simplesmente “o Senhor” (Javé) quando fala (vv. 14.16.18.23).

O lugar, Efra de Manassés, encontra-se a poucos quilômetros ao sul do monte Tabor, muito exposto às invasões madianitas (cf. v. 13) vindas do Leste. Madiã (ou Midian) é atestado no AT com povo nômade, ora um parente de Israel (Gn 25,2-6) e um aliado (Ex 2,15-22; 18,1-12; Nm 10.29-32), ora um inimigo perigoso (Nm 22,4.7; 25,6-18; 31). O “carvalho” ou terebinto poderia ter caráter sagrado, considerando sua proximidade de uma rocha que servirá de altar (v. 24; 9,6.37; Js 24,26; Dt 12,2; 1Rs 14,23; cf. Gn 12,6; 13,18; 18,1 etc.).

Gedeão, seu filho, estava sacudindo e limpando o trigo na eira, para o esconder dos madianitas, quando o anjo do Senhor lhe apareceu e disse: “O Senhor está contigo, valente guerreiro! ” Gedeão respondeu: “Se o Senhor está conosco, peço-te, Senhor, que me digas: por que nos aconteceu tudo isto? Onde estão aquelas tuas maravilhas que nossos pais nos contaram, dizendo: ‘O Senhor nos tirou do Egito’? Mas agora o Senhor nos abandonou e nos entregou nas mãos dos madianitas” (vv. 12-13).

Lemos “o Senhor contigo” duas vezes: como saudação (v. 12) e como fundamento da missão (vv. 16.23). Esta fórmula de saudação e de benção é usada ainda hoje pelos árabes. Ele exprime um voto (cf. Rt 2,4), mas Gedeão a toma como afirmação para poder contestar o otimismo do visitante. Por isso, o Senhor afirma solenemente “eu estarei (ou: estou) contigo” em v. 16, recorrendo à fórmula de assistência feita por Deus aos responsáveis do povo (Gn 26,3.24; 28,15; 31,3; Ex 3,12; Dt 31,23; js 1,9; 3,7; Is 41,10; Jr 1,8 etc.; cf. Mt 1,23; 18,20; 28,20). Com esta fórmula clássica o redator deuteronomista quer indicar que o projeto do Senhor (Javé) continua.

A objeção de Gedeão implica a mesma idéia: são inconciliáveis as desgraças com essa presença de Deus. O dialogo é bastante longo: quatro intervenções duplas e muito elaborado.

Então o Senhor voltou-se para ele e disse: “Vai, e com essa força que tens, livra Israel da mão dos madianitas. Sou eu que te envio”. Gedeão replicou-lhe: “Dize-me, te peço, meu Senhor, como poderei eu libertar Israel? Minha família é a mais humilde de Manassés, e eu sou o último na casa de meu pai”. O Senhor lhe respondeu: “Eu estarei contigo, e tu derrotarás os madianitas como se fossem um só homem” (v. 14-16).

As palavras do Senhor, com sua insistência no valor e na força, fazem o homem descobrir a própria incapacidade para a missão de “salvar”, que tem como objeto todo Israel. A incapacidade humana, uma vez confessada, fica abolida pela presença ativa do Senhor. Com grande claridade e com sentido teológico se coloca o motivo da vitória do menor recorrente no livro; sua explanação virá no capitulo seguinte. Podem-se recordar a eleição de Saul (1Sm 9,21) e a de Davi (1Sm 16-17).

Como Moisés (Ex 3,11), Saul (1Sm 9,21), Salomão (1Rs 3,7) e Jeremias (Jr 1,6), Gideão tenta se subtrair ao apelo divino alegando sua pouca idade e a fraqueza do seu clã. Mas Deus converte frequentemente a hierarquia estabelecida pelos homens, escolhendo os caçulos e os fracos para realizar seus planos: Isaac (Gn 21,12), Jacó (Gn 25,23), José (Gn 37,7); Efraim (Gn 48,19), Saul (1Sm 10,17-24), Davi (1Sm 16,1-13).

E Gedeão prosseguiu: “Se achei graça diante de ti, dá-me um sinal de que és tu que falas comigo. Não te afastes daqui, até que eu volte, com uma oferenda para te apresentar”. E o Senhor respondeu: “Ficarei aqui até voltares”. Gedeão retirou-se, preparou um cabrito e, com uma medida de farinha, fez pães ázimos. Pôs a carne num cesto e o caldo numa vasilha, levou tudo para debaixo do carvalho e lhe apresentou. O anjo do Senhor lhe disse: ”Toma a carne e os pães ázimos, coloca-os sobre esta pedra e derrama por cima o caldo”. E Gedeão assim fez (vv. 17-20).

Como em muitos relatos de vocação, exige-se um “sinal” para confirmar a palavra e a presença divina na missão. A leitura recorda as cenas patriarcais, espiritualmente a visita a Abraão (Gn 18), onde a divindade aceitou o banquete, aqui o transformará em holocausto. O sinal confirma a missão (cf. Ex 4,1-9;…).

O anjo do Senhor estendeu a ponta da vara que tinha na mão e tocou na carne e nos pães ázimos. Levantou-se então um fogo da pedra e consumiu a carne e os pães. E o anjo do Senhor desapareceu da sua vista (v. 21).

O fogo milagroso (cf. Jz 13,15-20) lembra Gn 15 e Ex 3 (cf. 1Rs 18). O diálogo tem elementos paralelos com as vocações de Moises (Ex 3), Jeremias (Jr 1), Maria (Lc 1): Deus confia uma missão, o homem resiste, Deus promete ajuda, o homem pede um sinal, Deus lhe concede.

Percebendo que era o anjo do Senhor, Gedeão exclamou: ”Ai de mim, Senhor Deus, porque vi o anjo do Senhor face a face! ”. Mas o Senhor lhe disse: ”A paz esteja contigo, não tenhas medo: não morrerás! ” (vv. 22-23).

As palavras finais de Javé se parecem com a saudação de paz por Jesus ressuscitado aos discípulos medrosos: a verdadeira paz é a vitória sobre a morte (cf. Jo 20,19.26; cf. 14,27).

Então Gedeão construiu ali mesmo um altar ao Senhor e o chamou: “O Senhor é paz” (v. 24a).

A construção do altar para comemorar uma visão no local é costume antigo dos patriarcas (Gn 12,7; 26,25; 28,18; cf. 13,18), o nome dado pode concretizar a lembrança (Gn 16,13-14; 22,14; Ex 17,15).

 

Evangelho: Mt 19,23-30

Mt continua copiando de Mc 10 as instruções de Jesus sobre família, crianças e bens. Hoje o Evangelho demonstra a reação de Jesus a respeito da vocação fracassada de um jovem apegado demais aos bens materiais (19,16-22; evangelho de ontem).

Jesus disse aos discípulos: “Em verdade vos digo, dificilmente um rico entrará no Reino dos Céus (v. 23).

Em Mc 10,23-24, Jesus expressa sua decepção falando a mesma frase duas vezes, em Mt só uma vez, mas transformada em declaração solene “Em verdade vos digo…”.

“Entrar no reino de Deus” significa aqui o mesmo da pergunta anterior do jovem: “ganhar a vida eterna” (v. 17; cf. 18,8p).

E digo ainda: é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus” (v. 24).

No AT, a riqueza pode ser vista como benção (cf. Jó 1), mas também como tentação e empecilho a verdadeira felicidade (cf. Pr 11,28; Eclo 31,1-11). Não devemos atenuar aqui o contraste trocando a palavra camelo por cámilo (corda de navio) ou aludir a um portal estreito no muro de Jerusalém com o nome camelo. Já os rabinos e outros autores da época conheciam as comparações absurdas do elefante e da agulha ou do contraste da formiga e do camelo.

Na história da igreja havia interpretações diversas. No evangelho apócrifo dos nazarenos, o jovem rico é visto como hipócrita: como pode dizer que cumpre os mandamentos, se está na lei: “Amarás o próximo como a ti mesmo” (Lv 19,18)? Aludindo à vida comunitária dos primeiros cristãos (cf. At 2,44-45; 4,32-37), Clemente de Alexandria diz: “Todas as coisas são propriedade comum, e os ricos não devem querer mais para si do que para os outros”. São Tomas de Aquino assegura o direito à propriedade particular, no entanto, todas propriedades têm obrigações sociais (e ambientais, acrescentamos hoje; cf. a Encíclica do Papa Francisco, Laudato Si, n.º. 93-95).

Ouvindo isso, os discípulos ficaram muito espantados, e perguntaram: “Então, quem pode ser salvo? ” Jesus olhou para eles e disse: “Para os homens isso é impossível, mas para Deus tudo é possível” (vv. 25-26).

Os discípulos espantados fazem uma pergunta semelhante à do jovem em v. 17, só desta vez generalizada. Riqueza e outros poderes do mundo seduzem o homem e se opõem ao reino de Deus. No reino de Deus, tudo deve ser partilhado entre todos; o que humanamente é difícil ou “impossível”, portanto, precisa da ação de Deus. Mais uma vez Jesus orienta para a bondade de Deus (cf. v. 17). Só Deus é bom e pode superar todos os obstáculos: “Para os homens isso é impossível, mas para Deus tudo é possível” (v. 27; cf. Gn 18,14; Jó 42,2; Zc 8,6; Lc 1,37). Assim a preocupação do homem passa do material para o espiritual, da dependência do dinheiro para gratuidade (graça) de Deus.

Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: “Vê! Nós deixamos tudo e te seguimos. O que haveremos de receber? ” (v. 27).

Como em todas as suas perguntas, Pedro fala em nome dos todos os discípulos. Pedro era proprietário de uma casa em Cafarnaum (8,14) que deixou somente para ir a Jerusalém e na sua viagem missionária. A pergunta pela recompensa é comum no judaísmo (cf. 6,1-18). A estrutura lembra 18,22-35: pergunta de Pedro, resposta direta de Jesus e, em seguida, uma parábola (20,1-16) para aprofundar o assunto.

Jesus respondeu: “Em verdade vos digo, quando o mundo for renovado e o Filho do Homem se sentar no trono de sua glória, também vós, que me seguistes, havereis de sentar-vos em doze tronos, para julgar as doze tribos de Israel (v. 28).

Solenemente (“em verdade vos digo”, cf. v. 23) Jesus promete recompensa para seus seguidores. Mt salienta: quem se engaja completamente no seguimento de Jesus, participará como juiz, quando a história for julgada. Na renovação do mundo (cf. Is 65,17; 66,22; Ap 21,5), quando Jesus glorificado ocupar seu trono real (Sl 110,1) como rei e juiz (25,31), também os doze apóstolos (cf. 10,2) atuarão como juízes, julgando as doze tribos de Israel, que não tiveram aceito Jesus como Messias (cf. Lc 22,28s, da fonte Q). Na literatura sapiencial e apocalíptica esperava-se a participação dos justos no juízo final (Sb 3,8; Dn 7,22 LXX).

E todo aquele que tiver deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos, campos, por causa do meu nome, receberá cem vezes mais e terá como herança a vida eterna (v. 29).

Depois Jesus se refere a todos os seguidores prometendo que receberão “cem vezes mais” (cf. 2Sm 24,3; 1Cr 21,3) e terão “como herança a vida eterna” (cf. 5,5; 25,34); consequência da generosidade de Deus que já começa aqui com a nova família cristã (com seus irmãos e irmãs em 12,46-50) que é a comunidade cristã, a Igreja.

Muitos que agora são os primeiros serão os últimos. E muitos que agora são os últimos serão os primeiros (v. 30).

No juízo, não se espera apenas recompensas, mas a inversão de valores. Os critérios são de Deus, não dos homens. Esta sentença já introduz a parábola seguinte (20,1-16; evangelho de amanhã).

O site da CNBB comenta: A nossa vida é condicionada por muitos fatores que marcam a natureza humana decaída por causa do pecado. Esses fatores, em geral, nos afastam de Deus e nos impedem de viver plenamente a proposta do Evangelho. A maior dificuldade para superarmos esses fatores se encontra no fato de que nós somos seres naturais, portanto submissos às leis da natureza decaída de modo que para nós isso é impossível. Mas Jesus nos diz no Evangelho de hoje: “Para os homens isso é impossível, mas para Deus tudo é possível”. Somente confiando plenamente na graça divina e procurando corresponder a ela é que poderemos viver o Evangelho apesar das nossas fraquezas e dos desafios que a vida nos impõe.

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