20 de agosto de 2016 – 20ª semana sábado

Leitura: Ez 43,1-7a

Os capítulos finais de Ezequiel (caps. 40-48) são um acréscimo posterior. O templo de Jerusalém que foi destruído em 587/586 a.C. será reconstruído em dimensões idealizadas.

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1076) comenta: Descrição, com esplêndida visão utópica, do novo Templo de Jerusalém, bem organizado com seu altar, ministros, festas e sacrifícios (40,1-46,24). Em torno ao Templo, assentam-se as tribos, e seus territórios se estendem até o mar Mediterrâneo. (47-48). O mais importante é a glória de Javé que retorna à cidade santa (43,1-9; cf. 10,18-22; 11,22-25) e nela permanece: “Javé aí está” (48,35). O texto atual de Ez 40-48 é resultado de sucessivos acréscimos, e sua redação final situa-se no pós-exílio, quando o Templo se torna centro do poder socioeconômico do governo teocrata (cf. Esd 5,1-6,22). Por exemplo, a expressão “Eu sou Javé”, frequente em Ez, não é utilizada nenhuma vez nos caps. 40-48, isso comprova que esse bloco é de redação posterior.

O homem conduziu-me até a porta da casa do Senhor que dá para o nascente, e eu vi a glória do Deus de Israel, vinda do oriente; um ruído a acompanhava, semelhante ao ruído de águas caudalosas, e a terra brilhava com a sua glória (vv. 1-2).

Esse homem é evidentemente um anjo (homem) que guia o profeta e explica a visão da nova Jerusalém (estes anjos intérpretes são um traço do profetismo tardio, cf. Dn 8,16; 9,21s; 10,5s; Zc 1,8s; 2,2; Ap 1,1; 10,1-11). Depois da descrição idealizada do novo templo, chega o momento culminante: O retorno de Javé, ou seja, a Gloria do Senhor (1,28) segue em sentido inverso o mesmo itinerário que iniciara no momento de sua partida (cf. 10,18-22; 11,22-25: a glória saiu do Templo para o oriente, passando pelo monte das Oliveiras). A glória chega do oriente, com um “ruído … semelhante ao ruído de águas caudalosas” (cf. 1,24s: o ruído das asas dos querubins na visão inicial do carro de Javé), e com um esplendor (a primeira resposta é o reflexo da terra, cf. Is 6).

A visão era idêntica à visão que tive quando ele veio destruir a cidade, bem como à visão que tive junto ao rio Cobar; e eu caí com o rosto no chão (v. 3).

Á visão trágica da destruição da cidade (caps. 8-11) corresponde esta visão de esperança. A glória do Senhor retorna ao lugar de onde partiu (cf. 10,18-22; 11,22-25). Esta visão lembra Is 6,3-5 e, mais ainda, a primeira visão “junto ao rio Cobar” de Ez 1,1-28; 3,12. “Caí com o rosto no chão”, cabe a Ezequiel ser o primeiro adorador humano, representando o povo, num gesto profético (cf. 1,28; como Josué em Js 5,13-15).

A glória do Senhor entrou no Templo pela porta que dá para o nascente. Então o espírito raptou-me e me levou para dentro do pátio interno e eu vi que o Templo ficou cheio da glória do Senhor (vv. 4-5).

O templo “ficou cheio da glória do Senhor” novamente, mas diferente de outras descrições não fala de fumaça nem de nuvem (cf. Ex 24,16s; 40,43s; Nm 14,21; 1Rs 8,10-11; 2Cr 5,13-14; Is 6,3; Sl 72,19).

Ouvi alguém falando-me de dentro do Templo, enquanto o homem esteve de pé junto a mim. Ele me disse: “Filho do homem, este é o lugar do meu trono, é o lugar em que coloco a planta dos meus pés, o lugar onde habitarei para sempre no meio dos israelitas” (vv. 6-7a).

Quem fala agora, não é o anjo (homem) que acompanha Ezequiel, mas a voz de Deus (cf. o “alguém” de 1,28). Havia uma “pedra de safira em forma de trono” na visão inicial de 1,28.

 A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 865) comenta: Outrora se considerava a arca o escabelo (1Cr 28,2; Sl 99,5; 132,7; Lm 2,1) ou o trono do Senhor (1Sm 4,4; Is 37,16). Presente, antigamente, no fundo do santuário (1Rs 6,19). A arca agora desapareceu, mas Ez considera que o conjunto do santuário de agora em diante assegura o papel que a arca tinha no passado (cf. Jr 3,16-17).

A Bíblia do Peregrino (p. 2116s) comenta: Trono podem ser a arca, o templo, a cidade (Jr 3,16s; 14,21; 17,12); o templo é também estrado (Sl 99,5; 132,7; Is 60,13). Ambos são atributos da realeza, porque o Senhor será o rei de Israel.

De fato, depois do exílio não havia mais reis em Israel, só governadores instituídos pelos poderes estrangeiros (p. ex. Sorobabel pelos persas), que administraram os assuntos políticos. Internamente, o sumo sacerdote tornou-se a autoridade central.

A volta do glória do Senhor no templo não significa voltar ao passado, como se nada tivesse ocorrido; trata-se de um novo começo que brota da experiência do fracasso (cf. vv. 7b-9 omitidos pela nossa liturgia): “as abominações que cometeram e por isso minha ira os consumiu”. Deus promete uma nova era e sua presença “para sempre” (vv. 7.9), é a obediência do povo que recebe o espírito (36,26s).

Além disso, precisa de uma melhor separação do profano e do sagrado (v. 8). A Nova Bíblia Pastoral (p. 1076) comenta: Para os teocratas, os ex-exilados descendentes de ex-governantes não podem realizar plenamente a restauração de Israel sem a presença de Javé (Esd 2,1-70), que deve ocupar seu trono de rei de Israel (v. 7). Sua habitação sagrada, o Templo, que era próximo ao palácio do rei (1Rs 7,8) deve ser separado dos edifícios profanos (7b-8; 45,7-8). É a teocracia: o sagrado reina por meio dos sacerdotes.

Evangelho: Mt 23,1-12

Costuma-se dividir o evangelho de Mt através de cinco grandes discursos (caps. 5-7: sermão da montanha; 10: sobre missão; 13: parábolas; 18: vida na comunidade; 24-25: escatológica, ou seja, últimos tempos). Compara-se este número ao Pentateuco, aos primeiros cinco livros da Bíblia chamados “Lei (Torá) de Moisés”. Mt, porém, escreveu mais um discurso que antepôs ao discurso escatalógico: é um capítulo inteiro (23,1-39) contra “os mestres da lei e os fariseus”. Na sua primeira fonte, Mc 12,38-40, havia apenas três versículos; na sua segunda fonte (chamada Q, uma coleção de palavras em comum com Lc), apenas 13 versículos (Lc 11,39-52).

É possível distinguir um retrato de escribas e fariseus (vv. 1-12; evangelho de hoje), em seguida sete lamentações (começam com “Ai”; vv. 13-31, cf. Is 5,8-23; Hab 2,6-20), duas invectivas (vv. 32-33) e um anúncio terrível do julgamento (vv. 34-36).

Para entender melhor esta polêmica contra os fariseus, há de considerar a situação do evangelista e da sua comunidade judeu-cristã. Jesus histórico não condenou a doutrina dos fariseus em todas as partes, apenas sua observância exterior da lei e sua vaidade (cf. Mc 7,1-23; 12,38-40). Entre todos os grupos religiosos da época, Jesus estava mais próximo dos fariseus, muito mais do que dos sacerdotes no templo (saduceus; não acreditavam na ressurreição; cf. At 23,8; Mc 12,18), dos zelotas (fanáticos políticos, terroristas; cf. Mc 15,7.27; At 5,36s) ou dos essênios (fanáticos religiosos com rituais de pureza exclusiva no deserto, em Qumran).

Mas depois da derrota dos judeus na Guerra Judaica contra os romanos e a destruição do templo (70 d.C.) restou apenas um desses grupos para liderar o judaísmo: os fariseus, ou seja, os rabinos, mestres (doutores) da lei. Por acreditarem no messias Jesus e não terem participado da guerra nacionalista, os cristãos do tempo de Mt foram hostilizados pelos judeus. No sínodo de Jâmnia (perto de Tel Aviv) em 90 d.C., os rabinos excluíram os cristãos definitivamente da sua religião, ou seja, “excomungaram” os cristãos da sinagoga (cf. Jo 9,22; 16,2). Com isso, os cristãos perderam o privilégio dos judeus de serem isentos da adoração obrigatória aos deuses romanos e ao imperador de Roma; em seguida houve perseguições dos cristãos pelos romanos (cf. Ap 13: a “besta-fera” que veio do mar é o imperador romano). Mt escreve poucos anos antes da excomunhão pelos judeus (80 a 85 d.C.), daí se explica sua polêmica acirrada contra os fariseus e seus rabinos. Não se deve traduzir está polêmica ao pé da letra para nossa relação com o judaísmo de hoje, a qual melhorou muito através do Concílio Vaticano II e dos papas recentes.

A crítica dura de Mt se explica pela situação histórica do autor e da sua comunidade, não é objetiva e não concorda com a descrição dos letrados fariseus por outras fontes. Por outro lado, é possível e conveniente tomar o texto como descrição de tipos que podemos encontrar em outros grupos religiosos, inclusive na nossa própria Igreja e na comunidade.

Jesus falou às multidões e a seus discípulos: ”Os mestres da Lei e os fariseus têm autoridade para interpretar a Lei de Moisés. Por isso, deveis fazer e observar tudo o que eles dizem. Mas não imiteis suas ações! Pois eles falam e não praticam (vv. 1-3).

A introdução faz o texto soar como denúncia pública “às multidões e seus discípulos” (v. 1). “Os mestres da lei e os fariseus tem autoridade para interpretar a lei de Moisés” (v. 2, lit. “estão sentados na cátedra de Moisés”). Escritos rabinos imaginam Moisés sentado numa cadeira (cátedra) para ensinar, como fundador de uma tradição oral que os doutores dizem conservar e transmitir; significa o ensinamento autorizado de Moisés para futuras gerações (Dt 4,2; 32,46). Jesus reconhece a autoridade oficial deles, e ele mesmo “se senta” para ensinar (5,1-2; 13,2; 26,55). “Deveis fazer e observar tudo o que eles dizem” de acordo com Moisés (cf. Mc 7,1-13p). Para os judeu-cristãos de Mt (não para Paulo), a Lei judaica continua válida (5,17-19). O que Jesus denuncia, é a contradição de dizer e não fazer, “não imiteis suas ações, pois eles falam e não praticam” (v. 3).

Amarram pesados fardos e os colocam nos ombros dos outros, mas eles mesmos não estão dispostos a movê-los, nem sequer com um dedo. Fazem todas as suas ações só para serem vistos pelos outros. Eles usam faixas largas, com trechos da Escritura, na testa e nos braços, e põem na roupa longas franjas. Gostam de lugar de honra nos banquetes e dos primeiros lugares nas sinagogas. Gostam de ser cumprimentados nas praças públicas e de serem chamados de Mestre (vv. 4-7).

Fardos pesados parecem ser as múltiplas observâncias da lei que os fariseus impõem. Jesus, porém, propõe um “jugo leve” (cf. 11,29-30), ou seja, sua interpretação da lei é libertadora, porque simultaneamente com uma lei renovada (cf. 5,20-48; 7,12; 15,1-20; 22,34-40), transmite a alegria do Reino (5,3-12; 13 etc.), cujo acesso é confiado a Pedro (16,19), mas está bloqueado pelos escribas e fariseus (v. 13: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque bloqueais o Reino dos Céus diante dos homens”). Os hipócritas “fazem todas as suas ações só para serem vistos pelos outros” (v. 5; cf. 6,1-18).

“Eles usam faixas largas”, chamadas de filactérios, pequenos estojos que contém uma reprodução de textos essenciais da lei (Ex 13,1-10; 13,11-16; Dt 6,4-9; 11,13-21). Segundo a lei, os judeus os atam ao braço esquerdo ou sobre a testa (Nm 15,38-39; Dt 6,8-9). “Põem na roupa longas franjas”; todos os judeus, inclusive Jesus (9,20), as usavam, mas os fariseus ampliavam a largura; elas eram guarnecidas de um filete roxo, símbolo do céu e deviam recordar os mandamentos de Deus.

A vaidade dos fariseus (vv. 6-7) já foi descrito em Mc 12,38s (cf. Pr 25,6s; Eclo 13,8s; Lc 14,7-10), exceto de “gostam … de serem chamados de mestre” (lit. “rabi”, palavra hebraica que significa “meu mestre”), título oficial dos doutores judeus depois de 70 d.C., os “rabinos” (como são chamados até hoje). Em Mt, só o traidor Judas chama Jesus de “rabi” (26,25.49). O próprio Jesus era chamado de “Rabbúni” (aramaico; cf. Mc 10,51; Jo 20,16).

Quanto a vós, nunca vos deixeis chamar de Mestre, pois um só é vosso Mestre e todos vós sois irmãos. Na terra, não chameis a ninguém de pai, pois um só é vosso Pai, aquele que está nos céus. Não deixeis que vos chamem de guias, pois um só é o vosso Guia, Cristo. Pelo contrário, o maior dentre vós deve ser aquele que vos serve (vv. 8-11).

Agora Jesus dirige palavras polêmicas aos seus discípulos (vv. 8-11): “Quanto a vós, nunca vos deixeis chamar de mestre” (v. 8, cf. Tg 3,1). Mestre único é o “Senhor” (Javé; Is 48,17) e agora  é Jesus (8,9; Jo 13,14 etc.). “Pai” parece aqui como título honorífico (Jz 17,10; Is 9,5; cf. Mt 8,21-22). Esta recomendação (só em Mt) não foi obedecida pela Igreja, ao contrário: as palavras “padre” ou “papa” significam “pai”, papel que Paulo se atribuiu (1Cor 4,14-17; 1Ts 2,11; Fm 10; cf. Hb 12,5-7; 1Pd 5,13; 1Jo 2,1 etc.).

No AT, o título “pai” era usado para os antepassados (cf. Ex 20,5; Jr 31,29s), para um ancestral (Js 19,47; 2Rs 16,2) ou fundador de profissão (Jr 35,5s), como título honorífico (Is 9,5), no tratamento educado (1Sm 24,12) e na metáfora (Jó 38,28); o mestre considera seus alunos de filhos (cf. na leitura sapiencial Pr 1,6 etc.; Eclo 2,1; 3,1 etc.). Poucas vezes, Deus é chamado de Pai no AT (2Sm 7,14; Jr 31,9; Is 63,16; 64,7), mas ele tem Israel (Ex 4,22; Dt 1,31; 8,5; 14,1; 32,6; Os 11,1) ou o rei ungido (2Sm 7,14; Sl 2,7) como seu filho.

Esses versículos não proíbem exercer um ministério de mestre ou catequista (cf. 5,19; 13,52), mas criticam a quem usurpar uma autoridade que só pertence a Cristo e a Deus. Os discípulos não devem ser mais uma elite numa sociedade hierárquica com títulos e vaidades, mas humildes servidores (cf. Lc 17,7-10; 2Cor 1,24) uns aos outros: “todos vós sois irmãos” (v. 8) e “o maior dentre vos deve ser aquele que vos serve” (v. 11; cf. 20,26; Jo 13).

O Concílio Vaticano II exprimiu muito bem que autoridade na Igreja é serviço (LG 18; 27; CD 16 etc.), mas ainda resta perguntar: a nossa Igreja (comunidade) se parece mais com os fariseus ou com uma sociedade fraterna e alternativa que Jesus queria?

Quem se exaltar será humilhado, e quem se humilhar será exaltado (v. 12).

O evangelho de hoje termina com uma frase de alcance geral (v. 12; cf. Jó 22,29; Pr 15,33; 29,33; Lc 1,52) aplicada à comunidade cristã.

O site da CNBB resume: Dois elementos são importantes para nós a partir da leitura do Evangelho de hoje. O primeiro é que nenhum ser humano pode ser para nós modelo absoluto para a vivência do Evangelho, uma vez que todas as pessoas são pecadoras. O segundo é que não podemos fazer da religião forma de relação de poder e de promoção pessoal. As distinções que existem na vida religiosa devem ser de cargos e funções, porque existem ministérios diferentes, mas todos na Igreja têm uma dignidade igual: a de filhos e filhas de Deus. Mesmo dentro da Igreja, a hierarquia só pode ser concebida à luz do Evangelho e a partir do conceito de serviço.

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