20 de julho de 2018, sexta-feira: Se tivésseis compreendido o que significa: ‘Quero a misericórdia e não o sacrifício’, não teríeis condenado os inocentes

Leitura: Is 38,1-6.21-22.7-8

O texto de hoje pertence ao “apêndice histórico” (Is 36-39), uma repetição quase integral de 2Rs 18,13-20,19 (cf. 2Cr 32,1-21). No final do Proto-Isaías (Primeiro Isaías), um redator queria mostrar a importância do papel deste profeta, sobretudo a veracidade dos seus oráculos nos momentos críticos da história de Judá. Com o novo rei em Jerusalém, Ezequias (716-687 a.C.), Isaías se entendeu bem melhor do que com o antecessor, o rei Acaz (cf. leitura de terça-feira passada).

Naqueles dias, Ezequias foi acometido de uma doença mortal. Foi visitá-lo o profeta Isaías, filho de Amós, e disse-lhe: “Isto diz o Senhor: ‘Arruma as coisas de tua casa, pois vais morrer e não viverás’” (v. 1).

O rei doente foi visitado por Isaías que era conselheiro espiritual na corte, num cargo de confiança, não oficial (cf. 2Sm 24,11). A doença aconteceu muito antes dos fatos narrados no capítulo precedente (cf. 36,1, que aconteceu no ano 701). Pela profecia de ter mais quinze anos de vida e reinado (v. 5) pode se deduzir que ele tinha cerca de vinte anos quando caiu doente.

Então Ezequias virou o rosto contra a parede e orou ao Senhor, dizendo: ”Peço-te, Senhor, te lembres de que tenho caminhado em tua presença, com fidelidade e probidade de coração, e tenho praticado o bem aos teus olhos”. Ezequias prorrompeu num grande choro (vv. 2-3).

Em 37,9b-36 insistiu-se na piedade de Ezequias (cf. a oração do rei em 37,17-20) e na intervenção de Isaías. Ezequias apela para as bênçãos de Deus, em estilo deuteronômio. À bênção de “longos anos” correspondia a uma vida reta e sincera diante de Deus. O rei suplicou “num grande choro” (cf. Sl 39,13; 56,9), “virou o rosto contra a parede e orou” (cf. a oração dos judeus atuais no muro da lamentação, único resto do antigo templo em Jerusalém).

Na história deuteronomista (Js, Jz, 1-2Sm, 1-2Rs), Ezequias e o rei Josias (640-609, na época de Jeremias,) são os únicos reis elogiados depois de Davi e (com ressalvas) Salomão, porque não toleravam a idolatria. Ezequias “fez o que agrada aos olhos de Javé, imitando tudo o que fizera Davi, seu pai. Foi ele que aboliu os lugares altos, quebrou as estelas, derrubou os postes sagrados, e reduziu a pedaços a serpente de bronze que Moisés havia feito, porque os filhos de Israel até então ofereciam lhe incenso” (2Rs 18,3s; a serpente recebia um culto idolátrico, cf. Nm 21,8s; Sb 16,6s; Jo 3,14-17).

A palavra do Senhor foi dirigida a Isaías: (v. 4)

Por meio do profeta da corte, o oráculo responde à súplica. O texto de 2Rs 20,4-5 comporta aqui esclarecimento destinado a enfatizar a coincidência entre a oração do rei (v. 3) e o novo oráculo dirigido a Isaías: “Isaías ainda tinha deixado o pátio interno quando lhe veio a palavra de Javé”.

”Vai dizer a Ezequias: Isto diz o Senhor, Deus de Davi, teu pai: Ouvi a tua oração, vi as tuas lágrimas; eis que vou acrescentar à tua vida mais quinze anos, vou libertar-te das mãos do rei da Assíria, junto com esta cidade, que ponho sob minha proteção” (vv. 5-6).

O texto deste v. 5 é muito mais breve que o de 2Rs 20,5s. Falta sobretudo a promessa de que Ezequias poderá “subir ao Templo dentro de três dias”.

O titulo divino “Senhor, Deus de Davi, teu pai” recorda a aliança com dinastia (cf. 2Sm 7). A promessa que lhe é feita é limitada, mas apreciável para quem está prestes a morrer. Além da saúde, Deus promete segurança: quinze anos a mais de vida e reinado, segurança para ele e toda cidade de Jerusalém; implicitamente, promete também um herdeiro (nesse momento Ezequias ainda não tinha filhos, a julgar pela idade de Manassés ao suceder-lhe).

Na juventude do príncipe Ezequias, o reino do Norte com sua capital Samaria foi invadido e destruído pelos assírios em 722 (cf. 2Rs 17). Será que a doença do rei tinha uma causa psicossomática, o pavor dos assírios, deste exército mais cruel, pois neste contexto o jovem rei adoeceu? Ao rei doente e inseguro, Deus promete protegê-lo e sua cidade “das mãos do rei dos assírios” (cf. a insegurança e o medo do jovem Salomão em 1Rs 3,4-15).

Então, Isaías ordenou que fizessem uma cataplasma de massa de figos e a aplicassem sobre a ferida, que ele ficaria bom. Perguntou Ezequias: “E qual é o sinal de que hei de subir à casa do Senhor?” (vv. 21-22).

Diversas edições da Bíblia e nossa liturgia invertem a sequência e colocam os vv. 21.22 antes de vv. 7-9. A “massa de figos” seve como remédio, a “ferida” pode ser um abscesso ou um tumor. Ezequias pede um sinal, isto é um milagre que garante a profecia de v. 5 (cf. Gideon em Jz 6,17-40). Ele aceitará um sinal, ao contrário do seu pai Acaz que se recusou (7,11s).

A cura milagrosa de Ezequias reflete, na religiosidade oficial de Judá, a importância do arrependimento, da conversão, da oração e “subida à casa do Senhor”, i. é. o Templo de Javé. (cf. 2Rs 20,8 onde a pergunta está no devido lugar). A próxima subida do rei ao templo faz parte do oráculo que anuncia a cura dele em 2Rs 20,5, mas não em nosso texto (Is 38,5).

Provavelmente, o redator colocou estes vv. 21-22 no final do cap. 38, porque inseriu o poema dos vv. 9-20 (omitido em nossa leitura de hoje) que não se encontra no relato paralelo de 2Rs 20 e pode ser pronunciado por qualquer orador em situações semelhantes (como nos salmos). Nada no texto relaciona com Ezequias este cântico, trata-se de um salmo pós-exílico com estrutura bastante conhecida (cf. Sl 6; 30; Jn 2): no decurso de uma cerimônia no templo, um enfermo exprime sua aflição (vv. 9-16) e em seguida louva a Deus pela cura obtida (vv. 17-20). Num tempo em que não se conhecia o ensinamento oficial sobre a ressurreição (cf. Dn 12,2s; 2Mc 7,9), o salmo ressalta cada momento da vida como dom de Deus.

“Este é o sinal que terás do Senhor, de que ele cumprirá a promessa que fez: Eis que farei recuar dez graus a sombra dos graus que já desceu no relógio solar de Acaz”. De fato, a marca do sol recuara dez graus dos que ela tinha descido (vv. 7-8).

No texto hebraico, os vv. 7-8 fazem parte da resposta de Isaías em vv. 5-6. Aqui há de se pensar: “Respondeu Isaias” (cf. 2Rs 20,9-11 em que o rei pode exprimir ainda sua preferência acerca deste sinal). O prodígio do “relógio de sol” simboliza o afastamento da morte, o prolongamento da luz da vida (cf. o milagre do sol parado em Js 10,12-14). O relógio como medida e símbolo da vida humana passou à nossa literatura e arte (cf. os relógios de areia e os que se derretem nas pinturas de Salvador Dali).

 

Evangelho: Mt 12,1-8

No cap. 12, Mt conta mais conflitos de Jesus com os fariseus. Aos poucos, Jesus está se retirando do antigo Israel, porque continuam os conflitos que começaram nos capítulos 9 e 11. Mt volta a copiar de Mc duas controvérsias sobre o sábado, aqui a primeira das espigas de Mc 2,23-28 (omitindo Mc 2,27, mas completando a argumentação através dos vv. 5-7).

No contexto anterior de 11,25-30, os fariseus fazem parte dos “sábios” que não reconhecem Jesus, e os discípulos representam os “pequenos e humildes”. O “jugo suave” de Jesus, ou seja, sua interpretação da lei e dos profetas, é a “misericórdia” (v. 7; cf. 11,30; 23,23).

Jesus passou no meio de uma plantação num dia de sábado. Seus discípulos tinham fome e começaram a apanhar espigas para comer (v. 1).

Como Davi em v. 4, os discípulos atuam por necessidade e não violam a lei por maldade. Não era permitido fazer trabalhos de colheita no sábado, mas os leitores judeu-cristãos sabem que boa comida faz parte da celebração de sábado.

Vendo isso, os fariseus disseram-lhe: “Olha, os teus discípulos estão fazendo, o que não é permitido fazer em dia de sábado!” (v. 2).

A observância do sábado já foi prescrita pelo decálogo (10 mandamentos: Ex 20,8; Dt 5,12). No AT, o próprio Deus não trabalha após seis dias da criação (Gn 2,2s). Depois de libertar os hebreus da escravidão, prescreve a folga no sábado, mesmo no deserto (Ex 16). Moisés declara até a pena de morte para quem violar o sábado (Ex 31,15; 32,2; executada em Nm 15,32-36).

O sábado era “sinal perpétuo” da “aliança eterna” (Ex 31,16s). Não era permitido qualquer trabalho, nem plantar nem colher (Ex 34,31), nem cozinhar (Ex 16,23), nem colher lenha, nem caminhar mais de um quilômetro (cf. At 1,12). Arrancar espigas no campo alheio era permitido para matar a fome, mas não se devia carregar nada em cesto (Dt 23,25). Numa sociedade fraterna e fecunda na partilha, os bens necessários à vida não são propriedade de ninguém, quando está em jogo a sobrevivência. A jurisprudência dos fariseus permitiu arrancar espigas, mas não debulhá-los no sábado.

Jesus respondeu-lhes: “Nunca lestes o que fez Davi, quando ele e seus companheiros sentiram fome? Como entrou na casa de Deus e todos comeram os pães da oferenda que nem a ele nem aos seus companheiros era permitido comer, mas unicamente aos sacerdotes? (vv. 3-4).

Jesus responde à acusação em três partes. Na primeira, Mt repete o exemplo bíblico do rei mais ilustre, Davi, que em caso de necessidade (fome) suspendeu a obrigação da lei (1Sm 21,1-7; o erro de Mc 2,26 que confundiu o sumo sacerdote Abiatar com seu pai Aquimelec, não foi corrigido, mas omitido por Mt e Lc).

Se é sagrado o sábado, não eram menos os pães oferecidos a Deus (cf. Lv 24,5-9). Os sacerdotes colaboraram com Davi, e os fariseus não têm coragem de censurar o rei Davi. Fome significa ameaça de vida, em perigo de vida pode se suspender a lei do sábado. Outro exemplo, a suspensão do repouso no sábado para poder defender-se na guerra (1Mc 2,31-38), não é citado, talvez porque os livros dos Macabeus não fazem parte da Bíblia hebraica reconhecida posteriormente pelos fariseus e seus sucessores, os rabinos.

Ou nunca lestes na Lei, que em dia de sábado, no Templo, os sacerdotes violam o sábado sem contrair culpa alguma? (v. 5).

Ao texto modelo de Mc, Mt acrescenta o trabalho cultual dos sacerdotes que continua no dia do sábado (Nm 28,9). Algumas obrigações determinadas no tempo suspendem a lei do sábado, (p. ex. a circuncisão no oitavo dia, cf. Gn 17) ou as festas de páscoa e das tendas (cf. a contradição em Mt 27,62-28,1: a festa da páscoa coincide com o sábado, e os chefes dos sacerdotes e os fariseus vão a Pilatos para conseguir a guarda do túmulo de Jesus).

Ora, eu vos digo: aqui está quem é maior do que o Templo (v. 6).

A tradução se precipitou relacionando o templo logo com Cristo (cf. 12,41s: maior que Jonas e Salomão), mas ainda não está claro “o que” (em vez de quem!) “é maior que o templo”. Porque o próximo v. 7 responde:

Se tivésseis compreendido o que significa: ‘Quero a misericórdia e não o sacrifício’, não teríeis condenado os inocentes (v. 7).

A citação retoma os sacrifícios do templo de v. 6; esta citação do profeta Oseias (Os 6,6; cf. Pr 21,3) já conhecemos da vocação de Mateus em 9,13; seria melhor traduzir: “quero misericórdia mais do que sacrifícios”. Em Mt, Jesus não nega os sacrifícios e não quer revogar as leis cultuais (cf. 5,17-20), mas cumpre a lei mais do que os fariseus e mestres, porque vê a misericórdia como centro da vontade de Deus (cf. 23,23; 25,31-46). A fome de Davi e dos discípulos de Jesus não só justificam a transgressão da lei do sábado, mas todos os famintos tornam-se objeto da misericórdia que Deus quer.

De fato, o Filho do Homem é senhor do sábado” (v. 8). 

Nas antíteses do sermão da montanha, Jesus anunciou o amor como centro da vontade de Deus, sem anular a lei de Moisés (cf. 5,17-48). Com a soberania de “Eu, porém, vos digo”, declarou nenhuma anulação da lei de Moisés, mas subordinação sob a vontade de Deus que quer amor e misericórdia.

Com a mesma soberania, declara que o “Filho do Homem é senhor do sábado”. Jesus atribui-se mais uma vez o título de Dn 7,13s (cf. 8,20 e o comentário da 13ª semana, segunda-feira): O messias que vem das nuvens (cf. 26,63s), o “Filho do homem”, é maior do que Davi (cf. 22,41-45p).

Provavelmente, os judeu-cristãos da comunidade de Mt guardavam ainda o sábado (cf. 24,20). Sabiam do grande presente que o dia livre do trabalho significa como antecipação do paraíso, mas sabiam que no decálogo de Dt 5,14s, o sábado é para os pobres, famintos e escravos (“lembra-te que foste escravo na terra do Egito…”). Portanto, os cristãos subordinaram a lei do sábado à pratica da misericórdia. Já os apóstolos começaram celebrar a ceia (Eucaristia) “no primeiro dia da semana” (cf. Lc 24,30; Jo 1,19.26; At 20,7); mudou o dia santo com a ressurreição de Jesus (nova criação, cf. 2Cor 5,17)

Na cultura greco-romana, o ócio era para a elite, ao escravo era negado o ócio (ficou apenas com o “neg-ócio”, o trabalho). No séc. IV, quando o Império Romano converteu-se ao cristianismo, o “domingo” (do latim dies domini, o dia do Senhor) tornou-se o feriado oficial. Assim, todos, senhores e escravos, têm o direito do ócio, pelo menos um dia da semana. Aos poucos, a escravidão foi abolida, deu lugar ao feudalismo. Hoje em dia, o domingo está em perigo de se esvaziar por pressões econômicas ameaçando o convívio das famílias trabalhadoras que não podem mais folgar juntas, mas a misericórdia vale mais do que o lucro e crescimento econômico. Insistir no valor do domingo é insistir no valor do ser humano contra um sistema que idolatra o dinheiro e o trabalho (cf. Mc 2,27, omitido por Mt e Lc).

O site da CNBB comenta: Existem pessoas que acham que é difícil seguir Jesus por causa da radicalidade das exigências evangélicas, no entanto, essas mesmas pessoas ficam criando uma série de dificuldades a partir de um legalismo ritual, moral e religioso que acabam por fazer do seguimento de Jesus uma causa de sofrimento e de dor e não uma causa de alegria e felicidade de quem descobre os valores que o conduz para a vida eterna. Muitos cristãos vivem colocando proibições e ficam contentes quando podem falar “não” a alguém. De fato, essas pessoas não entenderam o Evangelho de hoje, muito menos o amor que Deus tem para com seus filhos e filhas.

Voltar