21 de Agosto de 2020, Sexta-feira: “O segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’.

20ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Ez 37,1-14

A leitura de hoje nos apresenta uma das páginas mais famosas de Ezequiel. É um dos primeiros textos do AT que fala de ressurreição. Mas é incerto se Ezequiel já entendeu sua visão como escatologia (vida após morte) ou apenas como simbologia (vv. 11-14: restauração do povo desanimado no exílio).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1073) comenta: Duas imagens descrevem a condição de um povo morto, quais ossos espalhados em campo de batalha ou sepultados, e anunciam a restauração de Israel. Precisamente quando já não resta esperança de vida, o espirito de Deus sopra, recriando e restaurando o povo que a guerra e o exílio tanto abateram (cf. Gn 1,2; 2,7).

A mão do Senhor estava sobre mim e por seu espírito ele me levou para fora e me deixou no meio de uma planície cheia de ossos e me fez andar no meio deles em todas as direções. Havia muitíssimos ossos na planície e estavam ressequidos (vv. 1-2). 

São dados já conhecidos: a mão, o espirito, a planície: “A mão do Senhor estava sobre mim” expressão frequente em Ez para designar o êxtase (cf. 1,3; 3,22; 8,1; 37,1; 40,1). “Por seu espírito ele me levou para fora” o espírito não faz cair no chão, mas levantar (2,1; 11,24) e sair (vv. 13s; cf. Atos dos Apóstolos). Também na “planície” (ou vale) já aconteceu uma visão de Ez (3,22; 8,4

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 856) comenta: As ossadas acumuladas no solo do vale são um sinal de desgraça particular, porque, no pensamento hebraico, era preciso ser enterrado com os pais no túmulo da família (Isaac, Gn 35,29; Jacó, 50,5 etc.).

Ele me perguntou: “Filho do homem, será que estes ossos podem voltar à vida?” E eu respondi: “Senhor Deus, só tu o sabes” (v. 3).

Deus chama o profeta “filho do homem” (hebr. filho de Adão, cf. Sl 8,5), com frequência (fora de Ez no AT, só Dn 8,17; em Dn 7,13, a mesma expressão torna-se um título messiânico que Jesus retoma várias vezes.). Em Ez, designa a distância entre Deus e o homem. A pergunta de Deus é um desafio; o profeta se refugia na ignorância confessa.

E ele me disse: “Profetiza sobre estes ossos e dize: Ossos ressequidos, escutai a palavra do Senhor! Assim diz o Senhor Deus a estes ossos: Eu mesmo vou fazer entrar um espírito em vós e voltareis à vida. Porei nervos em vós, farei crescer carne e estenderei a pele por cima. Porei em vós um espírito, para que possais voltar à vida. Assim sabereis que eu sou o Senhor” (vv. 4-6)

“Ossos ressequidos, escutai a palavra do Senhor!” Se os vivos (o povo de Israel) já não escutaram a palavra de Deus, é incomum que os ossos “escutem”.

“Vou fazer entrar um espírito em vós e voltareis à vida”, ou seja, a respiração. “Espirito”, “sopro” e “vento” são a mesma palavra em hebraico (ruah; em grego pneuma). Aqui, ao contrário de 36,26-27, a visão está mais centrada na ideia da vida do que na do dom do Espírito.

Profetizei como me foi ordenado. Enquanto eu profetizava, ouviu-se primeiro um rumor, e logo um estrondo, quando os ossos se aproximaram uns dos outros. Olhei e vi nervos e carne crescendo sobre os ossos e, por cima, a pele que se estendia. Mas não tinham nenhum sopro de vida (vv. 7-8). 

“Os ossos se aproximaram”, seguindo a versão grega; o texto hebraico tem “aproximastes de vós os ossos”. As duas etapas lembram da criação de Adão do barro (Gn 2,7), primeiro carne e osso sem vida ainda, e depois o sopro/espirito que dá vida (vv. 9-10; cf. Jo 6,63; 19,30; 20,22).

Ele me disse: “Profetiza para o espírito, profetiza, filho do homem! Dirás ao espírito: Assim diz o Senhor Deus: Vem dos quatro ventos, ó espírito, vem soprar sobre estes mortos, para que eles possam voltar à vida”. Profetizei como me foi ordenado, e o espírito entrou neles. Eles voltaram à vida e puseram-se de pé: era uma imensa multidão! (vv. 9-10).

“Profetiza para o espirito”, ou seja, invocar a vinda dele (vem dos quatro ventos). A plenitude do espirito/vida/sopro (cf. os sete dons em Is 11,2) converge dos quatro pontos cardeais.

A Bíblia do Peregrino (p. 2106) comenta o conjunto: É uma visão com sua consequente explicação. Na visão – como nos sonhos – o profeta é espectador e ator: uma voz lhe dá ordens e ele as executa “profetizando” = conjurado. Dois seres elementares ocupam a visão: os ossos e o vento. Os ossos humanos secos são o árido, o inerte, ainda não pó e quase mineral. O vento = alento = espirito é o elemento cósmico – quatro ventos-, o carisma do profeta, a vida universal. Quem poderá mais? Conjurado pelo profeta, o vento (= alento) desencadeia seu dinamismo, transforma primeiro os ossos em cadáveres orgânicos, depois os cadáveres em seres viventes. O esquema de Gn 2,7 funciona com outros fatores; ver também Jó 10,9-11.

Observamos o eixo das dimensões horizontal e vertical. O vale é profundo e horizontal, talho na terra dos vivos que se aproxima do reino dos mortos; na horizontal ao rés do chão se espalham e jazem os ossos. A carne inicia a “subida”; no final, os vivos são inumeráveis, de pé.

Esta visão fantástica se aproxima do mistério radical da existência humana, a morte e a vida. Quem poderá mais? Quem ganhara a última batalha? – Aquele que dá e controla o alento (Sl 104,29-30), o Deus da vida.

A Bíblia de Jerusalém (p. 1660) comenta: Como em Os 6,2; 13,14 e Is 26,19, Deus anuncia aqui (cf. vv. 11-14 a restauração messiânica de Israel, após os sofrimentos do Exilio (cf. Ap 20,4). Contudo, pelos símbolos utilizados, ele já orientava os espíritos para a ideia de uma ressureição individual da carne, entrevista em Jó 19,25, explicitamente afirma em Dn 12,2; 2Mc 7,9-14.23-36; 12,43-46; cf. 2Mc 7,9. Para o NT, ver Mt 22,29-32 e sobretudo 1Cor 15.

Então ele me disse: “Filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel. É isto que eles dizem: “Nossos ossos estão secos, nossa esperança acabou, estamos perdidos! Por isso, profetiza e dize-lhes: Assim fala o Senhor Deus: Ó meu povo, vou abrir as vossas sepulturas e conduzir-vos para a terra de Israel; e quando eu abrir as vossas sepulturas e vos fizer sair delas, sabereis que eu sou o Senhor. Porei em vós o meu espírito, para que vivais e vos colocarei em vossa terra. Então sabereis que eu, o Senhor, digo e faço – oráculo do Senhor” (vv. 11-14).

“Estes ossos são toda a casa de Israel”; para metáfora dos ossos, ver Sl 31,11; 51,10; Pr 17,22. Aos israelitas exilados, abatidos, cuja esperança está morta, Ez anuncia nova vida possível pelo poder de Deus que cria através do espírito e devolve a esperança aos deportados (cf. Is 40,1.2; 54,7; Ez 28,25). Em chave nova expressa-se o esquema clássico do êxodo: tirar (“fazer sair” do Egito, da sepultura do exílio babilônico), e levar (“conduzir” para a terra prometida, a pátria)

A Bíblia do Peregrino (p. 2106s) comenta a explicação: O próprio profeta explica o significado de sua visão, respondendo a uma queixa do povo: os ossos secos são os desterrados em Babilônia, a sua volta à vida é o retorno a pátria. O profeta não compreendeu o alcance da visão; preocupado com o problema imediato e não contando com uma vida depois da morte, encurtou a validade acelerada do símbolo.

Mas o poeta Ezequiel criou um símbolo que ultrapassa a intenção imediata do autor. Descendo a uma visão biológica da morte, remontando a temas de criação, trabalhando com o elemento dinâmico do vento-alento, deu expressão às ânsias mais radicais do homem, à mensagem mais gozosa da revelação. Superada a conjuntura histórica e aberto o horizonte da ressurreição, os cristãos leem nesta página de Ezequiel uma mensagem de Páscoa.

Evangelho: Mt 22,34-40

Ouvimos no evangelho de hoje outra vez sobre a questão de Lei que é cara ao evangelista Mt que escreveu para judeu-cristãos (cf. 5,17-48 etc.), é a questão sobre o “maior mandamento da lei”. Aqui Mt copia de Mc 12,28-34, mas resume pela metade.

Os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus. Então eles se reuniram em grupo, e um deles perguntou a Jesus, para experimentá-lo: (vv. 34-35).

No meio das últimas controvérsias com os adversários em Jerusalém, Mc 12,28-34 apresentou ainda um diálogo que não é hostil: um escriba, reconhecendo que Jesus respondeu bem aos “saduceus” (a respeito da ressurreição dos mortos que estes não aceitavam), fez uma pergunta sem segundas intenções e ainda elogiou a resposta de Jesus. Quer dizer, no tempo de Mc (por volta de 70 d.C.), ainda não houve tanta ruptura entre judeus e cristãos, de modo que ainda havia simpatizantes escribas entre os judeus (por ex. Gamaliel em At 5,34-39).

Mt e Lc, porém, escreveram 10 a 15 anos depois de Mc. Os judeus tinham perdido a guerra contra os romanos (66-73 d.C.). O templo foi incendiado e, com isso, os saduceus (aristocracia sacerdotal) não haviam mais como existir. Mt alude a este fim do templo quando escreveu: “Jesus tinha feito calar os saduceus”? (em Mc apenas, Jesus “havia respondido muito bem”).

Sobraram, então, só o partido dos fariseus para assumir a liderança no judaísmo. Na reconstrução da identidade judaica, os conflitos com os cristãos se agravaram (cf. Mt 23). No sínodo de Jâmnia em 90 d.C., os rabinos (mestres farisaicos) excomungaram os cristãos (Jo 9,22; 16,2) que se entendiam ainda como grupo dentro da religião judaica (com a diferença que acreditavam em Jesus como messias e aceitavam os pagãos). Depois não havia mais simpatizantes no judaísmo por enquanto. Por isso, Mt e Lc, independentes um do outro (ou através de uma segunda edição de Mc – Deuteromarcos – que ambos usavam), mudaram a figura do escriba simpático em Mc por um (grupo) fariseu (Lc: legista) que pergunta a Jesus já com intenção má, “para experimentá-lo” (cf. 19,3p; 22,15p; Lc 10,25).

“Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?” (v. 36).

Em Mc, a pergunta foi sobre o “primeiro” de todos os mandamentos, mas não ficou clara: como o “primeiro” poderia se entender o primeiro do decálogo ou um dos mandamentos dados a Noé ou Abraão. Mt expressa a pergunta de maneira mais correta no debate dos rabinos: Qual é o “maior” mandamento da Lei? Lit. “o grande”, porque, no judaísmo, a pergunta sobre o “maior” de todos os mandamentos já era uma polêmica. Muitos consideravam uma blasfêmia fazer diferença entre mandamentos mais importantes e menos importantes, já que cada um vem do Senhor e ele só dá mandamentos importantes.

No AT (Antigo Testamento), mais precisamente na Torá (“Lei” de Moisés, que são os cinco primeiros livros, chamados Pentateuco em grego), não só havia o decálogo (os “Dez Mandamentos”: Ex 20; Dt 5). Os rabinos contavam um total de 613 mandamentos da Lei (365 proibições e 248 mandatos). Não se podia fazer uma síntese de todos eles? As respostas que já foram dadas repetem um dos Dez Mandamentos, por ex. o primeiro (não ter outros deuses/ ídolos) ou o terceiro (santificar o sábado) ou o quarto (honrar os pais). Haverá outras sínteses, mas sem citar um texto bíblico, combinando por ex. os deveres a respeito de Deus e dos semelhantes: “servir com santidade e justiça” (cf. Lc 1,75), ou a Regra de Ouro (cf. Mt 7,12; Lc 6,31).

Mas a pergunta aqui exige uma citação concreta da Lei de Moisés (em Lc, que escreveu para não-judeus, a pergunta é outra: “Como ganhar a vida eterna?”, Lc 10,25; cf. Mc 10,17p).

Jesus respondeu: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento!’ Esse é o maior e o primeiro mandamento” (vv. 37-38).

A resposta de Jesus é uma combinação original de dois textos da Lei de Moises (Dt 6,5 e Lv 19,8).

O primeiro é tirado da profissão de fé judaica, o shema (ouça; cf. o comentário de sábado da 18ª semana do tempo comum, ano ímpar). O início é citado ainda em Mc, mas falta em Mt e Lc: “Ouve, Israel, Javé teu Deus é Um só Senhor” (Dt 6,4; Mc 12,29). Esta profissão de fé monoteísta, os judeus guardam por escrito em cápsulas e faixas de couro e a colocam na testa (para rezar) ou na entrada da casa. Como Deus é o único (ao contrário do politeísmo), ele exige toda atenção e adoração: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, de toda tua alma, de todo o teu entendimento e com toda tua força” (Dt 6,5 grego).

Mt reforça ainda: “Este é o grande (maior) e primeiro mandamento” (cf. Mc 12,31 que resume os dois).

“O segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’. Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos” (vv. 39-40).

Sem ser perguntado sobre o segundo mandamento, Jesus o acrescenta (como em Mc também), porque é uma unidade.

Do amor a Deus nasce o amor a suas criaturas. “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19,18). Jesus não especifica aqui o significado da palavra “próximo” (em Lv 19,18 era apenas o compatriota; em Lc 10,29-37 será o bom samaritano, ou seja, qualquer um, até o inimigo, cf. Mt 5,43-48p).

Estes dois mandamentos equivalem as duas tábuas do decálogo, deles “dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt já afirmou a mesma coisa sobre a Regra de Ouro em 7,12 que se refere só ao amor do próximo). “Amar” é mais profundo do que mera observância de preceitos (já o Dt e os profetas destacaram o coração, a adesão interior), exige mais empenho e criatividade do que “não ter outros deuses, não pronunciar o santo nome em vão, … não matar, não furtar”, mas tem que se traduzir em gestos concretos também (cf. as obras da misericórdia em Mt 25,31-46).

Em todos os quatro evangelhos, Jesus coloca o amor (caridade) como critério soberano (cf. ainda Jo 13,34s; 15,12s.17). Quem ama, não está mais longe de Deus, porque “Deus é amor” (1Jo 4,8.16; cf. 1Jo 3,11-24; 4,20-21; cf. 1Cor 13).

O site da CNBB comenta: Deus não admite o amor a si sem que este amor se torne gestos concretos de caridade. É por isso que hoje vemos no Evangelho que o primeiro e maior mandamento traz consigo um outro que é semelhante a ele. O primeiro exige de nós o amor a Deus e o segundo exige de nós o amor ao próximo. Jesus nos diz que desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas. A partir daí podemos perceber porque São João nos diz na sua primeira epístola que quem ama não peca. Com isso, Jesus nos mostra que somente a plena vivência do amor nas suas duas dimensões, a Deus e ao próximo, pode conduzir verdadeiramente à santidade.

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