21 de Fevereiro de 2020, Sexta-feira: Chamou Jesus a multidão com seus discípulos e disse: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (v. 34).

6ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Tg 2,14-24.26

O autor desenvolve o tema subjacente à toda a carta, “a fé e as obras”. Provavelmente conhece a doutrina de Paulo sobre a fé e as obras, e parece reagir contra as consequências abusivas de tal doutrina.

A Bíblia de Jerusalém (p. 2266) comenta: O ponto de vista de Tiago não é inconciliável com o que Paulo defende (Rm 3,20-31; Gl 2,16; 3,2.511s; Fl 3,9). O que Paulo rejeita é o valor das obras humanas que visam a merecer a salvação sem a fé em Cristo. Essa confiança no esforço do homem para torna-se justo ignora o fato de que ele é essencialmente pecador (Rm 1,18-3,20; Gl 3,22) e torna vã a fé em Cristo (Gl 2,21; cf. Rm 1,16). Mas também Paulo admite que, recebida a justificação pela graça somente, a fé deve ser ativa pela caridade (1Cor 13,2; Gl 5,6; cf. 1Ts 1,3; 2Ts 1,11; Fm 6) e cumprir, afinal, verdadeiramente a lei (Rm 8,4), que é a lei de Cristo e do Espírito (Gl 6,2; Rm 8,2), a lei do amor (Rm 13,8-10; Gl 5,14). Todo homem será julgado segundo as suas obras (Rm 2,6). O pensamento de Tg, inclusive sobre a história de Abraão (vv. 23-23), está, entretanto, mais perto do judaísmo do que o de Paulo.

Meus irmãos, que adianta alguém dizer que tem fé, quando não a põe em prática? A fé seria então capaz de salvá-lo? (v. 14).

As considerações precedentes serão esclarecidas pela exposição de um princípio; o de que o ouvinte da palavra deve praticá-la (1,22-25; cf. 4,11). Paulo sempre se refere às “obras da lei” mosaica ou judaica, não às obras simplesmente; não admite que tais obras sejam condição para a salvação e menos ainda que estabeleçam um direito a ela. Tiago, por sua vez, pensa em obras que um cristão realiza já no seu contexto da sua fé. A chave está na distinção: as obras (da lei judaica) como meio para assegurar para si a justiça perante Deus, ou as obras (de homens livres) como consequência da fé.

Imaginai que um irmão ou uma irmã não têm o que vestir e que lhes falta a comida de cada dia; se então alguém de vós lhes disser: “Ide em paz, aquecei-vos”, e: “Comei à vontade”, sem lhes dar o necessário para o corpo, que adiantará isso? (vv. 15-16).

Dando exemplo concreto, o autor se refere mais uma vez aos pobres, como no início do capítulo (cf. vv. 1-9; e a instrução de Pr 3,27s em seu contexto). Estas obras de misericórdia estão citadas em Mt 25,35s (dar de comer aos famintos, vestir os nus).

Assim também a fé: se não se traduz em obras, por si só está morta (v. 17).

Lit.: “está morta em si mesma”, pode-se traduzir também: “completamente”;

Em compensação, alguém poderá dizer: “Tu tens a fé e eu tenho a prática!” Tu, mostra-me a tua fé sem as obras, que eu te mostrarei a minha fé pelas obras! (v. 18).

“Alguém poderá dizer” ao interlocutor dos vv. 14 e 16, que Tiago passa a refutar (cf. Gl 5,6) e cujo argumento talvez se estenda talvez até v. 20, intimando o autor a provar que ele, homem das obras, também tem realmente a fé.

Tu crês que há um só Deus? Fazes bem! Mas também os demônios creem isso, e estremecem. Queres então saber, homem insensato, como a fé sem a prática é vã? (vv. 19-20).

A insubmissão dos demônios ao Deus verdadeiro, que eles reconhecem (cf. Mc 1,24.34; 3,11; 5,7), não os impede de temerem a sua ira vindoura. O argumento dos demônios é mais fraco, já que toma “fé” em sentido de simples assentimento intelectual, não como adesão à pessoa. Deve levar a conclusão: uma fé que não se traduz em obras não é autêntica (como a dos demônios), é “vã” ou “morta” (var. Vulgata; cf. vv. 17.26).

O nosso pai Abraão foi declarado justo: não será por causa de sua prática, até ao ponto de oferecer seu filho Isaac sobre o altar? Como estás vendo, a fé concorreu para as obras, e, graças às obras, a fé tornou-se completa. Foi assim que se cumpriu a Escritura que diz: “Abraão teve fé em Deus, e isto lhe foi levado em conta de justiça, e ele foi chamado amigo de Deus”. Estais vendo, pois, que o homem é justificado pelas obras e não simplesmente pela fé (vv. 21-24).

A tradição judaica considerava Abraão como o justo fiel a Deus (Eclo 44,19-21+), “amigo de Deus” (2Cr 20,4; Is 41,8; 51,2 gr.; título estendido a outros em Sb 7,27) e “pai” dos crentes (cf. Mt 3,9; Lc 16,24.27.30; Jo 8,39.53; cf. Rm 4,16-18). Neste ponto, Tiago concorda com Paulo (Rm 4,1.16): Tiago, como Paulo tampouco, não considera a fé do patriarca Abraão como uma obra (Gn 15,6, citado no v. 23; Rm 4,3; Gl 3,6), mas insiste mais do que ele nas obras que nascem da fé, da lei perfeita (1,25; 2,8).

Enquanto Paulo prova, a partir de Gn 15,6, que a fé, em Abraão, precedeu da circuncisão e as obras da lei (Gn 17), Preocupado em precaver contra interpretações perigosas, Tiago toma a citação bíblica de Paulo (Gn 15,6) e a retorce, destacando outro aspecto do texto bíblico, sem respeitar a seqüência cronológica, ou seja, pondo Gn 22 antes de Gn 15. Tiago reproduz assim uma exegese judaica (cf. Eclo 44,20; 1Mc 2,52; Hb 11,17). O exemplo do sacrifício de Isaac (muito estimado na tradição judaica) é valido, porque foi uma “obra” baseada numa “fé” heróica. Por isso, o autor pode dizer que a fé “alcança sua perfeição”, é consumada.

O exemplo da meretriz Raab (v. 25, omitido pela leitura de hoje; cf. Hb 11,31) também é valido, pois ela faz uma profissão de fé (Js 2,9-13) como razão de sua obra.

Assim como o corpo sem o espírito é morto, assim também a fé, sem as obras, é morta (v. 26).

Os vv. 17.20.24 têm a sua conclusão na comparação com um corpo privado do sopro da vida.
O alento é a vida do corpo e a manifesta. As obras do cristão manifestam sua fé e a mantêm viva.

Em 1999, a Igreja Católica junto com a Igreja Evangélica Luterana publicou um “Documento de Consenso” sobre a justificação (que era o pivô da separação há 500 anos). Conciliando os pontos de vista de Paulo e Tiago, este documento afirma também o primado da fé, mas que fé autêntica deve produz obras de caridade.

A Bíblia Tradução Ecumênica (TEB, p. 2371) comenta: A ênfase posta num agir do crente revela mais uma vez um ambiente judeu-cristão, semelhante ao de Mt (5,16.20; 7,12—27; 12,50; 18,23-35; 25,31-46)… Trata-se de um ponto de vista que parece bem posterior à problemática paulina. Contra o judaísmo que tendia diluir a fé entre as obras, Paulo – às voltas com os judaizantes – reivindica o primado da fé, distinguindo-a de seus frutos ou de suas obras. Tg coordena fé e obras da fé, integrando a contribuição da crítica de Paulo, e, provavelmente reagindo contra uma interpretação extremista de Paulo.

A Bíblia Sagrada Edição Pastoral (p. 1492) resume: O único meio de salvação é a fé, a adesão a Jesus Cristo. Essa fé, porém, não é coisa teórica ou mero sentimento interior; é o compromisso que se manifesta concretamente em atos e fatos visíveis (cf. Mt 7,21) … Ao falar de prática da Lei, Paulo afirma que nenhuma observância de regras pode levar à salvação, e que a fé é o princípio de toda a vida cristã. Tiago, por sua vez, salienta que a fé se traduz no amor, e este realiza atos concretos. Paulo diz a mesma coisa: «a fé age por meio do amor» (Gl 5,6).

 

Evangelho: Mc 8,34-9,1

Em Mc, cada anúncio da paixão é seguido por uma falta de entendimento por parte dos discípulos, e em seguida Jesus tira as consequências para seus seguidores (Mc 8,32-38; 9,32-41; 10,35-45; cf. Lc 9,23 “para todos”). Depois da profissão de fé por Pedro (no trecho anterior vv. 27-33, evangelho de ontem), Jesus anunciou pela primeira vez explicitamente a sua paixão, morte e ressurreição, mas não disse ainda de que maneira “devia ser morto”.

Chamou Jesus a multidão com seus discípulos e disse: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (v. 34).

Depois de falar aos discípulos, Jesus fala a multidão. Pedro entendeu quem era Jesus (o messias), mas não estava disposto de viver este entendimento (vv. 22-33). Só entenderá Jesus, quem o seguir no sofrimento. Aqui aparece pela primeira vez a “cruz” no evangelho. Jesus deixa claro, que o destino do seu caminho é a cruz (em v. 31 só falou de rejeição e morte).  A condenação à morte de cruz era reservada a criminosos e subversivos. Quem quer seguir a Jesus esteja disposto a se tornar marginalizado por uma sociedade injusta (perder a vida) e mais, a sofrer o mesmo destino de Jesus: morrer como subversivo (tomar a cruz).

Ao falar de “renunciar a si mesmo”, Mc não pensa num ideal de ascese ou masoquismo que se opõe à ideia de que felicidade é ser livre do sofrimento, mas é seguir Jesus e orientar-se nele em vez dos próprios interesses ao ponto de custar a vida no martírio. “Renunciar” quer “dizer não, negar”, está ligado à profissão da fé (no batismo) ou negar Jesus como depois Pedro em Mc 14,66-72p. Renunciar a si mesmo não significa suicídio porque, neste, a própria vontade ainda se sobrepõe à vontade de Deus.

Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la. Com efeito, de que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se perde a própria vida? E o que poderia o homem dar em troca da própria vida? (vv. 35-37).

Atrás disso está a experiência que se pode ganhar o mundo, mas perder a si mesmo. Pode se ganhar rios de dinheiro, mas morrer de repente (cf. a parábola em Lc 12,16-21 e Eclo 11,18s; Jó 2,4; Sl 49,8s). Pode-se perder a chance de ganhar a vida eterna, não renunciando a seus bens materiais (cf. 10,17-25).

Quem vive buscando bens e riquezas, nunca ficará satisfeito. Quem se doa aos outros, esquece de si mesmo e sente uma grande felicidade. A cruz, então, não é só um sacrifício. É o único modo para não perder a própria vida, não dissipá-la em coisas superficiais que não conduzem à felicidade. Diferente da sabedoria grega, não é a “vida” (em grego: zoé) na terra o bem maior, mas a “vida” transcendente (Mc usa a palavra grega psyqué) que depende do juízo final.

Se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras diante dessa geração adúltera e pecadora, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória do seu Pai com seus santos anjos” (v. 38).

Mc se refere ao fracasso dos discípulos, envergonhar-se, negar ou abandonar a fé. Já no AT uma geração que abandona a fé em Deus e corre atrás dos ídolos, é chamada de “geração adúltera e pecadora” (Mt 12,39; 16,4; cf. Jr 3,8s; 9,1; Is 57,3; Os 2,4-7; Ez 16,38). À esta geração pecadora se opõe o Filho do Homem com seus anjos e sua glória. Só ele pode conceder ou negar a vida definitiva porque a ele é entregue o “Reino de Deus” (cf. 9,1; Dn 7,13s) e o Juízo final (cf. Mt 13,40-43; 25,31-46). Jesus se identifica com o “Filho do Homem” (2,10.28; 8,31 etc.). No final do caminho da cruz, o próprio Jesus receberá seu discípulo como juiz do mundo (13,26s; 14,62), como Filho do Homem virá no final dos tempos com seus anjos (cf. 13,26s). “Na glória do seu Pai”, o Filho do Homem é também o “Filho de Deus” (cf. 1,11; 9,7).

Disse-lhes Jesus: “Em verdade vos digo, alguns dos que aqui estão, não morrerão sem antes terem visto o Reino de Deus chegar com poder” (9,1).

Em Mc 1,15 Jesus anunciava: “O Reino de Deus está próximo”. Em que sentido deve-se entender que “alguns dos que aqui estão”- obviamente da geração dos apóstolos – “não morrerão sem antes de terem visto o Reino de Deus com poder”? O problema da interpretação está na data desta vinda (parusia): ainda na geração dos apóstolos.

Com todos os profetas, Jesus anuncia o que deve acontecer para sua “geração”. Quando Mc escreveu seu evangelho cerca de 70 d.C., Jesus já tinha morrido e ressuscitado 40 anos antes, e a maioria (ou todos?) dos apóstolos também já tinha morrido. Pedro e Paulo morreram na perseguição de César Nero em Roma (64-67 d.C.). Talvez por isso, Mc resolveu escrever seu evangelho (o primeiro por escrito) para que o anúncio oral dos apóstolos não se perdesse, mas fosse preservado autenticamente para as próximas gerações.

Por isso, muitos autores identificam esta vinda (ou “vista”) com a transfiguração de Jesus que “alguns” apóstolos, Pedro, Tiago e João assistem logo em seguida (cf. 9,2p), mas neste relato seguinte não se fala do Reino de Deus.

Outros interpretam relacionando esta vinda datada com a ressurreição e ascensão que a transfiguração já antecipa de certo modo. De fato precisa desta antecipação, já que o Evangelho de Mc já termina no túmulo vazio (16,1-8; os vv. 9-20 são um anexo posterior). Alguns pensaram na ruína de Jerusalém (70 d.C., época da redação do evangelho), outros identificam a vinda do reino com a Igreja e sua poderosa expansão (cf. Mt 13,36-43).

Fato é que esta expectativa da vinda de Jesus com seu reino na sua glória em data breve realmente existia entre os primeiros cristãos (1Cor 15,51s; 1Ts 4,16s), Mc ainda a transmite (cf. 13,30: “Essa geração não passará sem tudo isso aconteça”), mas já a coloca em outro contexto. Para ele, esta palavra de Jesus já se cumpre nos três apóstolos que veem Jesus transfigurado na sua glória em 9,2-10. Os escritos mais tardios do NT (cf. Jo 21,18-23) demonstram o problema e procuram dar outro sentido, p. ex.: “para Deus, mil anos são apenas um dia” (2Pd 3,3-10; cf. Sl 90,4).

O site da CNBB comenta: O Evangelho de hoje nos mostra um significado fundamental para entendermos o mistério da cruz. Jesus diz: “Renuncie a si mesmo e tome a sua cruz”. A cruz significa antes de tudo não ser mais nada para si e ser tudo para os outros. De fato, Jesus no alto da cruz já não tinha nada que fosse seu, a não ser a sua própria vida, e até ela nos é dada conforme ele mesmo nos diz: “Ninguém tira a minha vida, eu a dou livremente”. Mas esse fato é o coroamento de toda a vida de Jesus que não se apegou ciosamente à sua condição divina, mas se fez homem, obediente até a morte e morte de cruz, vivendo totalmente para servir ao seu Pai e aos seus irmãos e irmãs, numa total oblação.

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