21 de Junho 2019, Sexta-feira: Porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração (v. 21).

11ª Semana Comum

Leitura: 2Cor 11,18.21-30

De 11,16 a 12,13 ouvimos o discurso de bobo que Paulo está bancando para se defender. Ele está num dilema: sabe que todo bem vem de Deus (4,7; 5,18) e por isso todo autoelogio está errado. Por outro lado, ele precisa competir com seus adversários usando os mesmos meios, isto é, apresentar suas próprias vantagens.

Já que muitos se gloriam segundo a carne, eu também me gloriarei (v. 18).

Na comunidade, os coríntios valorizam aqueles “superapóstolos” (v. 5; 12,11), “suportam que os escravizam, que os devorem, que os despojem, que os tratam com arrogância” (vv. 20). Então, Paulo precisa também valorizar-se apresentando seus próprios créditos. Se os adversários apelam para o argumento étnico do judaísmo, sua vantagem “segundo a carne”, Paulo também apela para seu passado enquanto judeu (v. 22).

O que outros ousam dizer em vantagem própria, eu também o digo a meu respeito, embora fale como insensato (v. 21b).

Na verdade, a sua “loucura” ou “insensatez” (11,1.16.17.19.21.23; 12,11) não é loucura (11,16; 12,6), é seu amor e ciúme (cf. 11,2-3) pela comunidade que podem deixar sua razão em segundo plano.

São hebreus? Eu também. São israelitas? Eu também. São da descendência de Abraão? Eu também (v. 22).

As necessidades da polêmica com seus adversários obrigam muitas vezes São Paulo a voltar como aqui, ao seu passado de judeu autêntico (Gl 1,13-14; Rm 11,1; Fl 3,4-6; cf. At 22,3s; 26,4-5). A tríplice referência à linhagem dá a entender que os rivais são judeus convertidos que aspiram a cargos de direção.

São servos de Cristo? Como menos sensato digo: Eu ainda mais. De fato, muito mais do que eles: pelos trabalhos, pelas prisões, pelos açoites sem conta. Muitas vezes, vi-me em perigo de morte (v. 23).

Cinco vezes Paulo disse: “Eu também” às vantagens dos rivais; mas “servo de Cristo”, ele é ainda “muito mais” por que causa dos seus sofrimentos (cf. o servo sofredor do Senhor em Is 53).

Paulo parece se servir de recurso sapiencial “por três e por um quarto; há três coisas e uma quarta” (cf. Pr 30, Eclo 25,1 s). As comparações de igualdade, “eu também” (vv. 18. 21.22), rompem seu discurso na superação do quarto membro, “eu mais”.

O segundo quarteto de suas vantagens, com traços paradoxais, mostra que é superior, não em privilégios, mas em sofrimento (cf. At 5,41; cf. a prisão em Filipos em At 16,22-24).

Cinco vezes, recebi dos judeus quarenta açoites menos um. Três vezes, fui batido com varas. Uma vez, fui apedrejado. Três vezes, naufraguei. Passei uma noite e um dia no alto mar (vv. 24-25).

No terceiro quarteto da lista prolonga-se a cadeia de sofrimento. Três vezes por mãos de homens: por judeus (acoites e lapidação, cf. Dt 25,3 a pena é “acoitar quarenta vezes, não mais”, e para evitar excesso ao errar na contagem aplicava-se “menos um”, apenas 39 acoites) e por romanos (varas; cf. At 14,22); a quarta por ação dos elementos (o último naufrágio em At 27; cf. o oceano hostil e mitológico em Jn 1-2; Sl 18; 107,23-28 etc.).

Fiz inúmeras viagens, com inúmeros perigos: perigos de rios, perigos de ladrões, perigos da parte de meus compatriotas, perigos da parte dos pagãos, perigos na cidade, perigos em lugares desertos, perigos no mar, perigos por parte de falsos irmãos (v. 26).

A lista de perigos abrange dois quartetos, com oposições, polaridade e equivalências. Retorna a distinção entre compatriotas e pagãos. Vão separando rios e mar (cf. v. 25), como se pertencesse a categorias diferentes; os rios normalmente não tinham pontes, eram atravessados por vaus nem sempre fáceis e seguros. “Ladrões” assaltavam pedestres e caravanas (cf. Jz 9,25; 11,3; Lc 10,30). Os “falsos irmãos” são membros da comunidade cristã.

Trabalhos e fadigas, inúmeras vigílias, fome e sede, frequentes jejuns, frio e nudez! (v. 27)

A nova série de quatro ou cinco membros (“fadiga e duros trabalhos” como gênero que logo se especifica) sublinha as necessidades naturais não satisfeitas (cf. 1Cor 4,11-12). Pode-se ver a descrição de Jó 23,4.7.8.10.11. As circunstâncias nas quais Paulo sofreu essas provações são desconhecidas, na maioria; evidente que os Atos dos Apóstolos não nos contam nem de longe todos os sofrimentos de Paulo no seu empenho pelo evangelho.

E, sem falar de outras coisas, a minha preocupação de cada dia, a solicitude por todas as igrejas! Quem é fraco, que eu também não seja fraco com ele? Quem é escandalizado, que eu não fique ardendo de indignação? (vv. 28-29)

Juntando os dois vv., obtém-se outro quarteto coerente: todos os dias e todas as igrejas (por ele fundadas), em particular indivíduos doentes ou vacilantes. Paulo não abusa de sua autoridade de apóstolo para se impor às comunidades. Os títulos que ele apresenta de si próprio, mais do que diplomas que possam dar prestígio pessoal, são as suas lutas, sofrimentos, preocupações e perseguições, pelas quais passou no incansável trabalho de evangelização. A sua compaixão pelos mais fracos o recomenda acima de todos os «superapóstolos» (v. 5; 12,11) que usam de seus títulos para explorar as comunidades por onde passam (cf. 11,20).

Se é preciso gloriar-se, é de minhas fraquezas que me gloriarei! (v. 30).

Paulo se gloriou “segundo a carne” (sua raça judia), dos seus trabalhos e sofrimentos e se gloriará ainda das suas revelações (12,1-5; na leitura de amanhã). Ele fala verdade, mas só se gloria para comparar-se aos adversários no próprio terreno deles (11,21-23) e desarmar aqueles que o difamam (11,5-12; 12,11-18). Mas ele o faz a contragosto (12,11). O verdadeiro título de glória, Paulo o encontra na sua fraqueza (11,30; 12,5.9), pois nela se manifesta com mais evidência a força de Cristo (12,9), mostrando que o poder extraordinário que age pelo apóstolo não vem deste, mas de Deus (cf. 4,7).

Evangelho: Mt 6,19-23

Depois de concluir as recomendações sobre os três exercícios espirituais (esmola, oração, jejum), Mt aborda o tema dos bens matérias. O desapego deles é um tema que se repete nos evangelhos (cf. 5,3; 19,21; Mc 4,19; 10, 17-31; Lc 3,10-11; 6,20-22; 11,34-36; 12,13-34; 16,13.19-31; 19,1-10 etc.). O evangelho de hoje e amanhã (6,19.23.24-34) encontra seu paralelo em Lc 11,34-36; 12,22-34, porque Mt e Lc copiaram da mesma fonte Q, uma coleção catequética que continha palavras de Jesus, mas cujo original se perdeu na história.

Não junteis tesouros aqui na terra, onde a traça e a ferrugem destroem, e os ladrões assaltam e roubam. Ao contrário, juntai para vós tesouros no céu, onde nem a traça e a ferrugem destroem, nem os ladrões assaltam e roubam (vv. 19-20).

Já os profetas e mestres sapienciais criticavam a transformação da riqueza em ponto de apoio para existência (cf. Sl 62,11 no contexto; Jó 22,24-26) e incentivavam a caridade e as esmolas (cf. Pr 19,17; 23,4-5; Eclo 3,14-15; 29,8-1; a traça: Is 51,8; Sl 39,12; Eclo 42,13; Tg 5,2-3). Os tesouros não são somente moedas ou joias, mas também roupas, especialmente para mulheres que as recebem para o casamento. Os insetos vorazes comem destruindo a roupa, o baú de madeira ou a safra (cf. Ml 3,11). Os ladrões “assaltam”, lit. cavam buracos ou túneis, arrombam muros e paredes (Ex 22,1; Jó 24,16; Mt 24,43p).

Positivamente, Jesus convida para juntar um “tesouro no céu” (19,21; Tb 4,9-10), retomando a ideia da “recompensa nos céus” (5,12.46; cf. 6,1.2.5.16).

Porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração (v. 21).

Não fala aqui explicitamente do julgamento, mas aponta para a questão fundamental do ser humano, o centro do seu coração (o coração era considerado o centro do ser humano, onde se toma as decisões).

Todo homem, consciente ou inconscientemente, tem na vida um valor fundamental, um absoluto que determina toda a sua forma de ser e viver. Qual é o absoluto: Deus ou as riquezas? Deus leva o homem à liberdade e à vida, através da justiça que gera a partilha e a fraternidade. As riquezas são passageiras e, muitas vezes, resultado da opressão e da exploração, levando o homem à escravidão e à morte. É preciso escolher a qual dos “dois senhores” queremos servir (v. 24, cf. leitura de amanhã).

O olho é a lâmpada do corpo. Se o teu olho é sadio, todo o teu corpo ficará iluminado. Se o teu olho está doente, todo o teu corpo ficará na escuridão. Ora, se a luz que existe em ti é escuridão, como será grande a escuridão (vv. 22-23).

Os próximos versículos encontram-se em Lc 11,34-36 em outro contexto. O que motivou Mt para inseri-los aqui no meio da exortação sobre riquezas? Talvez o incentivo a esmolas em Tobias tenha influenciado: “Porque assim acumulas um bom tesouro para o dia da necessidade. Pois a esmola livra da morte e impede que se caia nas trevas” (Tb 4,19-10) ou a as palavras de Ben Sirac sobre inveja e avareza: “Mau é o olho do homem invejoso… aos olhos do ávido sua porção não o sacia, a cupidez seca sua alma. Com inveja o olho do avaro se fixa no pão, e na sua mesa há penúria” (Eclo 14,8-10)

Os vv. 22-23 são difíceis de interpretar, dependendo se o sentido de “olho” é literal ou simbólico (cf. Pr 20,27). A palavra grega usada é: olho “simples” (não “sadio”). Contraposta ao olho “doente” (lit. “mau”), significa a integridade do ser humano, cujo olhar se fixa unicamente em Deus e na sua lei. A “simplicidade” bíblica encontra-se nas cartas apostólicas, às vezes traduzida por “sabedoria” ou “generosidade” (Rm 12,8; 2Cor 9,11.13; 11,3; Ef 6,5; Cl 3,22; Tg 1,5).

Os leitores judeu-cristãos de Mt não pensam na metáfora grega na qual o olho pode significar a luz interior, a alma (cf. Pr. 20,27). Para os hebreus, o olho é o órgão da visão e sede da faculdade que avalia (cf. “aos olhos de N.”). Olho bom/olho mau (Pr 28,22), sobretudo contrapostos, significa generoso/mesquinho (Dt 15,9; Pr 22,9; Eclo 14,3.10; 31,13.23-24; 35,9; 37,11; cf. Mt 20,15; 2Cor 8,2; Tg 1,5). O jogo de palavras consiste em sobrepor os dois sentidos: o olho simples vê bem, ilumina toda pessoa = o generoso é luminoso (“esplêndido” em português). O olho mau, mesquinho e invejoso, não se abre à realidade do outro, deixa às escuras: “Ou teu olho é mau, porque sou bom? ” (Mt 20,15).

O site da CNBB comenta: Existem valores e valores. Quem é verdadeiramente discípulo de Jesus deve procurar viver segundo a hierarquia de valores que é proposta por ele. Quem tem como centro de sua vida o reino de Deus faz dele o seu tesouro, faz com que ele seja o valor fundamental da sua vida e a partir dele ordena todos os demais valores, de modo que o reino de Deus é o valor absoluto e os demais valores são relativos a ele. Quem coloca os valores do mundo como centro da sua vida vive segundo outra hierarquia de valores, totalmente inversa à proposta por Jesus. Diante do evangelho de hoje somos convidados a rever nossa hierarquia de valores segundo os critérios de Jesus.

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