21 de Outubro de 2019, Segunda-feira: “Atenção! Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens”. E contou-lhes uma parábola: (vv. 15-16a)

29ª Semana do Tempo Comum 

Leitura: Rm 4,20-25

Concluímos hoje o quarto capítulo em que Paulo destaca o exemplo de Abraão que acreditou na promessa de Deus e “esta sua atitude de fé foi creditada como justiça” (citação de Gn 15,6 em Rm 4,3.9.22s).

Diante da promessa divina, Abraão não duvidou por falta de fé, mas revigorou-se na fé e deu glória a Deus, convencido de que Deus tem poder para cumprir o que prometeu (vv. 20-21).

Abraão “não fraquejou na fé” (v. 19), “não duvidou por falta de fé…” (v. 20). Em vv. 19-21, Paulo ignora o riso incrédulo de Abraão e Sara (Gn 17,17; 18,12) que resultou no nome de Isaac (“ele ri”; 21,3.6). A fé é onipotente (cf. Mc 9,23), permite a Deus exercer em nós seu poder (cf. 2Cor 12,9s). “Deu glória e Deus” (v. 20) é uma “expressão bíblica (cf. Js 7,19; 1Sm 6,5 etc.) para definir a atitude do homem que reconhece todo dever a Deus e só nele se apoia” (St. Lyonnet SJ).

Esta sua atitude de fé lhe foi creditada como justiça. Afirmando que a fé lhe foi creditada como justiça, a Escritura visa não só à pessoa de Abraão, mas também a nós, pois a fé será creditada também para nós que cremos naquele que ressuscitou dos mortos Jesus, nosso Senhor (vv. 22-24).

Mais uma vez (cf. vv. 3.9), Paulo cita Gn 15,6, em que Abraão é justificado pela fé ainda antes da circuncisão em Gn 17 e antes da Lei de Moisés (Ex-Dt). Assim Abraão torna-se modelo para todos os que creem, como os cristãos, independentemente das obras da lei judaica.

A Bíblia do Peregrino (p. 2713) comenta: A figura de Abraão é exemplar, válida para quantos o imitam crendo em Deus e em Jesus Cristo. Ao concluir esta seção, o tema da ressurreição de Cristo, anunciada em 1,4, se afirmar com vigor.

Como Abraão, nós somos justificados pela fé no Deus da promessa. Para nós, a promessa é manifestada e resumida na ressurreição de Cristo, como para Abraão o céu estrelado era a manifestação do poder de Deus que faz viver os mortos e chama à existência o que não existe” (v. 17), assim pode dar descendência apesar da velhice de Abraão e da esterilidade de Sara.

Ele, Jesus, foi entregue por causa de nossos pecados e foi ressuscitado para nossa justificação (v. 25).

O final em v. 25 é lapidar. Pela lei do paralelismo, o sentido é cumulativo: para livrar-nos do pecado e alcançar a justiça, Jesus Cristo “foi entregue” (cf. 8,32), ou seja, morreu e ressuscitou (cf. Is 53,5-6).

Paulo nunca separa e morte de Jesus da sua ressurreição (6,4; 8,10 etc.). A Bíblia de Jerusalém (p. 2125) comenta: Com efeito, uma primeira participação na vida do Cristo ressuscitado é a justiça. No AT, Deus justificava julgando (Sl 9,9). No NT, ele será juiz no último dia (2,6); ele “justifica” por Cristo (3,24), isto é, confere o dom da justiça só em consideração da fé (1,17), e não das obras (3,27; 7,7).

 

Evangelho: Lc 12,13-21

Junto aos outros evangelistas, Lc apresenta o ideal de uma vida simples (ex. 6,20p; 8,14p; 9,3p; 10,3; 11,3; 12,22-34; 18,18-30p); além disso, só ele descreve a pobreza da família na infância  de Jesus (2,7.24), a ajuda financeira de discípulas (8,3), a parábola do rico ganancioso (12,13-21, evangelho de hoje), a parábola do rico esbanjador e do pobre Lázaro (16,19-31) e a conversão do chefe dos publicanos, Zaqueu (19,1-10) e, no seu segundo volume, a comunidade primitiva praticando a partilha (At 2,42-45; 4,32-37; 5,1-11). Lc está preocupado com as injustiças sociais e a indiferença dos ricos (cf. os ais em 6,24-26).

No evangelho de hoje e nos vv. seguintes (12,13-34) apresenta-se diversos ensinamentos de Jesus sobre a atitude a tomar em face dos bens deste mundo: advertência geral a respeito de um pedido particular (vv. 13-15); parábola do rico insensato (vv. 16-21), conselho aos discípulos contra a preocupação com a alimentação e o vestuário (vv. 22-32), exortação à dar esmolas (vv. 33s).

Alguém, do meio da multidão, disse a Jesus: “Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo”. Jesus respondeu: “Homem, quem me encarregou de julgar ou de dividir vossos bens?” (vv. 13-14)

A intervenção de “alguém, do meio da multidão” (cf. 10,25; 11,45) amplia o âmbito dos ouvintes (que era primeiramente os discípulos; cf. v. 1). Ele chama Jesus de “mestre”, título comum dos rabinos que costumavam arbitrar tais coisas (doutores da lei).

Em Lc, a interpelação “homem” (na boca de Jesus ou de Pedro: 5,20; 12,14; 22,58.60) designa mais distância do que “filho” (2,48; 15,31; 16,25) ou “amigo” (11,5; 14,10). O homem pede a Jesus que assuma uma tarefa temporal. Jesus se recusa a fazê-lo; ele se distingue assim de Moisés, que pelo contrário, “arvorava-se em chefe e juiz” (Ex 2,14; cf. At 7,27-35). Nas primeiras comunidades cristãs, também se julgavam casos temporais (cf. 1Cor 6,4).

A Bíblia do Peregrino (p. 2499) comenta: Tinha razão talvez aquele homem, ao reclamar o que lhe era devido (cf. Gn 21,10; Jz 11,2); é razoável supô-lo. Naquela cultura, herdar era assunto importante, não somente para o herdeiro, mas também para a continuidade da família. O Eclesiástico instrui sobre testamentos (Eclo 32,20-24). Pois bem, Jesus não veio dirimir pleitos de interesses financeiros, ele ensina a dar mais do que a reclamar.

E disse-lhes: “Atenção! Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens”. E contou-lhes uma parábola: (vv. 15-16a)

Jesus ensina a dar mais do que a receber ou reclamar (cf. At 20,35). A raiz que vicia as relações humanas e escraviza a vida às posses é a cobiça, a “ganância” (Mc 7,22; Rm 1,29; 2Cor 9,5; Ef 4,19; 5,3; Cl 3,5; 2Pd 2,3.14; cf. Tg 4,13-5,6). A riqueza não seguro de vida (Sl 49). “A vida de um homem não consiste na abundância de bens” (lit. “sua vida não procede de seus bens”).

Esta afirmação geral conclui a introdução da parábola seguinte explicando por que Jesus se recusa a ocupar-se de questões de dinheiro: este não é a fonte de vida. Jesus responde com uma parábola como em 7,40-43; 10,30-37; 14,16-24; 15,3-32. Esta parábola não é uma comparação (“O reino de Deus é como…”; cf. 8,4-15p; 13,18-21p), mas um exemplo que apresenta uma atitude a imitar ou a evitar (cf. 10,29-37; 16,1-8; 18,9-14).

A terra de um homem rico deu uma grande colheita. Ele pensava consigo mesmo: “O que vou fazer? Não tenho onde guardar minha colheita” (vv. 16b-17).

Este “homem rico” é um exemplo de confiança nas riquezas (Sl 49,7.19; 52,9; Pr 11,28). Pode ser inspirado em Eclo 11,18-28: “Quando diz: agora posso descansar, agora comerei de minhas posses, não sabe o que acontecerá até que o deixe a outro e morra” (cf. o evangelho apócrifo de Tomé, nº 63).

Num monólogo interior, o rico se denúncia. Não se consulta com Deus nem com outras pessoas. Nas parábolas de Lc, as pessoas exprimem muitas vezes o seu pensamento num monólogo (15,17-19; 16,3; 18,4; 20,13; cf. 12,45; também em Mt 21,38; 24,48).

Então resolveu: “Já sei o que fazer! Vou derrubar meus celeiros e construir maiores; neles vou guardar todo o meu trigo, junto com os meus bens. Então poderei dizer a mim mesmo: Meu caro, tu tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, aproveita!” (vv. 18-19)

O ideal deste rico, sua filosofia de vida, é comer e beber, aproveitar e desfrutar (cf. Jr 22,15; Ecl 2,24; 3,13; 8,15; Tb 7,10); espera “muitos anos” de vida; trabalhou e agora pode “descansar”; acumulou e poder viver de rendas. Seu horizonte é imanente: esta vida (cf. Sb 2,1-9), como era de muitos dos leitores greco-romanos de Lc.

“Poderei dizer a mim mesmo: Meu caro, tu tens…”, lit.: “Eu direi a minha alma: Alma, tu tens…”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 2004) comenta: A palavra “alma” designa aqui, como muitas vezes no AT, o ser vivo todo inteiro, a pessoa. Deve-se traduzi-la por vida (6,9; 9,24; 12,20.22s; 14,26; 17,33; 21,19), ou como aqui, por um pronome pessoal.

Aliás, o materialista não pensa numa alma que transcende esta vida terrena (cf. a oração do ateísta/agnóstico: “Ó Deus, se o Senhor existir, salve a minha alma, se eu tiver uma”).

Mas Deus lhe disse: “Louco! Ainda nesta noite, pedirão de volta a tua vida. E para quem ficará o que tu acumulaste?” (v. 20).

Ao monólogo do rico responde o próprio Deus chamando-o de “louco”; essa filosofia de vida é “insensata” (Sb 2,1.21-22; Sl 39,6s). O rico tem a vida apenas como empréstimo e está vencendo o prazo de restituí-la. O futuro sonhado “para muitos anos” se mostra como ilusão: “ainda nesta noite”; nas línguas semíticas, o plural impessoal, “pedirão de volta a tua vida”, pode designar Deus (cf. 6,38; 16,9) como Senhor da vida e da morte, seja aqui o anjo da morte (idêntico com Satanás) ou o próprio Senhor que clama o rico deste mundo pela morte.

Assim acontece com quem ajunta tesouros para si mesmo, mas não é rico diante de Deus (v. 21).

A falta do v. 21 em alguns manuscritos pode indicar que a parábola na versão original de Jesus já terminou sua lição, reafirmando o v. 15: o sentido da vida não consiste na abundância de bens, mas na espera pela vinda do reino de Deus.

Lc não condena proprietários em si, somente quando se fecham no egoísmo (cf. 15,6s.9s.32; 16,1-5; 19,1-27). Ele pode ter acrescentado o v. 21 em que sobressai qual é a verdadeira riqueza. “Rico diante de Deus” traduz-se também “visando a Deus” ou “ao olhar de Deus”. É o mesmo convite a ajuntar para si um tesouro no céu e ser defensor dos pobres (12,33; 18,22; cf. 16,9; Mt 6,19; At 2,45; 4,34). Rico para Deus é quem ajuda o próximo com o que é seu: “Quem se compadece do próximo empresta a Deus” (Pr 19,17; Eclo 29,8-13; cf. Tb 4,8-11).

O site da CNBB comenta: “Mas Deus lhe disse: ‘Louco’.”  Louco é aquele que é incapaz de perceber a verdadeira hierarquia dos valores e submete o eterno ao temporal, o celeste ao terreno, fazendo com que o acúmulo de bens materiais se tornem a causa maior da sua própria felicidade, o que faz com que ele feche a sua vida para os valores que são eternos e que trazem a felicidade que não tem fim. A verdadeira loucura consiste em não conhecer a Deus e, por isso, não valorizar a sua presença em nossas vidas, não viver no seu amor e não amar, de modo que não haja partilha de todos os bens, não possibilitando um crescimento mútuo e um projeto comum de felicidade, que dura para sempre.

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