22 de Outubro de 2020, Quinta-feira: Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso! Devo receber um batismo, e como estou ansioso até que isto se cumpra!(v. 49-50).

29ª Semana do Tempo Comum 

 Leitura:Ef 3,14-21

Na leitura de hoje encontramos novamente o esquema trinitário, sem usar o termo técnico Filho: o Pai (vv. 14.19), seu Espirito (v. 16), Cristo (vv. 17.19). Em tom de súplica, o autor da carta pede ao Pai (v. 14) que o amor de Cristo habite os corações (vv. 17.19), para serem fortalecidos pelo Espírito, na interioridade do ser humano (v. 16).

O Espírito é um novo dinamismo interior; a fé nos abre e transforma em morada estável de Cristo, o amor nos dá raiz e alicerce, de onde brota uma nova capacidade de conhecer e compreender o “mistério” (cf. leitura de ontem) e receber a “plenitude de Deus” (v. 19; cf. 1,23).

Eu dobro os joelhos diante do Pai,de quem toda e qualquer família recebe seu nome,no céu e sobre a terra (vv. 14-15).

Dobrar os joelhos é gesto humilde de súplica (At 20,36; cf. 1Rs 8,54; Esd 9,5).

De Deus Pai procede toda paternidade humana e seu equivalente celeste (que não se esclarece).Outra tradução possível: “de quem toda paternidade recebe o seu nome”. Jogo de palavras entrepatriá (família) e patêr(pai). O Pai, revelado em Jesus Cristo, está na origem do todo o agrupamento humano ou angélico.

Em lugar de paternidade pode-se entender sobrenome, frequente em Nm e Cr, para apresentar genealogias. Agora todos têm um último Pai comum (Lc 3,38 faz a genealogia de Jesus ascender até Adão e Deus).

Que ele vos conceda, segundo a riqueza da sua glória,serdes robustecidos, por seu Espírito,quanto ao homem interior,que ele faça habitar, pela fé, Cristo em vossos corações,que estejais enraizados e fundados no amor (vv. 16-17).

Aqui continua a súplica, numa frase difícil e densa (vv. 16-19), pedindo:“robustecer”(v. 16) e “habitar” (v. 17) para “compreender” (v. 18) e “entender” (v. 19). “Internamente”, ou no homem interior da antropologia grega; na intimidade onde reside o Espírito. Pode se comparar com expressões equivalentes dos salmos(Sl39,4; 55,5; 94,19; 19; 109,22). “Robustecidos (fortalecidos) por seu Espírito” (cf. Sl 51,12 “espírito firme”).Pela fé, Cristo “habita” (Jo 14,23). “Enraizados e fundados (alicerçados)”: são as duas imagens clássicas da vida agrária e urbana (Jr 1,10; Sl 144,12; aplicadas à sabedoria em Eclo 1,15-20).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p.2270)comenta o termo “homem interior”: Esta expressão designa a parte racional do homem (cf. Rm 7,22…) por oposição a“o homem exterior” que é o seu corpo perecível (2Cor 4,16). Esse tema, tomado da filosofia grega popular, é distinto da oposição “homem velho – homem novo” que se inscreve numa perspectiva judaica. Acontece entretanto que o “homem interior” quase se confunde com o “homem novo”, como em 2Cor 4,16 e, aqui, em Ef 3,16. A expressão homem interior fica, todavia, mais marcada por sua origem antropológica: ela é muito semelhante ao termo “coração” no v. 17.

Tereis assim a capacidade de compreender, com todos os santos,qual a largura, o comprimento, a altura, a profundidade,e de conhecer o amor de Cristo,que ultrapassa todo o conhecimento,a fim de que sejais cumulados a téreceber toda a plenitude de Deus (vv. 18-19).

A importância de ser nova criatura (pelo batismo) consiste em viver o amor segundo o modelo do próprio Cristo (Rm 8,39). Amor que vai muito além do conhecimento e tem dimensão universal. A totalidade desse amor está expressa nas quatro dimensões que designavam, no pensamento grego da filosófica estoica, a totalidade do universo.

“A largura, o comprimento, a altura, a profundidade”,enumeração à maneira da literatura sapiencial, para sublinhar o caráter inacessível da Sabedoria de Deus e dos seus caminhos (cf. 3,8); cf. Jó 11,5-8: “a sabedoria… é mais elevada do que os céus… mais profunda do que o Xeol (morada dos mortos), mais extensa do que a terra e mais ampla do que o mar.”

A Bíblia do Peregrino (p.2809) comenta: Nós reconhecemos em nosso espaço três dimensões. Os hebreus concebiam quatro dimensões (Jó 11,5-8), porque não concebiam que a linha de profundidade, subterrânea continuasse para cima. A superfície da terra que o homem vivo pisava, era um corte total. Como se podia imaginar que do Xeol partisse uma linha contínua até o céu?

As quatros dimensões não são explicitamente determinadas; trata-se sem dúvida do desígnio misterioso de Deus (o mistério da salvação que une judeus e gentios, cf.3,1-13, leitura de ontem) e antes de tudo do “amor de Cristo”. Como para a sabedoria, essas dimensões vão além de qualquer medida humana (cf. também as dimensões escatológicas do templo e da Terra prometida em Ez 40-45; Ap 21,9s).

Uma exegese muito antiga interpreta as quatros dimensões a partir da “cruz”, símbolo da extensão ecumênica (cf. 2,13-17) e cósmica (cf. Cl 1,20) da obra de Cristo,como o vértice do universo.

“O amor de Cristo queultrapassa todo o conhecimento”; o simples conhecimento, a gnose, não podia plenificar o homem; só o “amor deCristo”capacita o ser humano para “receber toda a plenitude de Deus”, porque seu amor revela o amor de Deus (Jo 1,15). O amor que Cristo nos testemunhou entregando-se (5,2.25; Gl 2,20), amor idêntico ao do Pai (2,4.7; 2Cor 5,14.18s; Rm 8,35.37.39).

A Bíblia de Jerusalém (p.2200) comenta: Muito mais que “compreender” (v. 18, termo grego de origem filosófica), trata-se de “conhecer” com um conhecimento religioso, místico, penetrado de amor (cf. 1,17s; 3,3s; ver Os 2,22; Jo 10,14), que vai mais longe que qualquer conhecimento intelectual (cf. 1Cor 13). Mais ainda: trata-se menos de conhecer do que de ser amado e sabê-lo (cf. Gl 4,9), ainda que seja impossível penetrar na profundeza desse amor.

A ideia é a de Cl 2,9s (cf. Ef 1,23): os cristãos participam na “plenitude” que Cristo recebe de Deus e comunica ao seu Corpo que é a Igreja. Pode-se também compreender: cumulados para entrar em toda a plenitude de Deus. Pela plenitude de vida divina que o cristão recebe de Cristo, em quem ele habita (Cl 2,9s), ele entra por sua vez na plenitude do Cristo total: a Igreja e ulteriormente o novo Universo, para cuja construção ele contribui (1,23; 2,22, 4,12-13; Cl 2,10).É um grande paradoxo: encher-se do que tudo enche, abrange transborda; cf. a oração de Salomão na inauguração do templo: “É verdade que Deus poderia habitar sobre a terra? Os próprios céus e o céu dos céus não te podem conter! Quanto menos esta Casa que construí” (1 Rs 8,27).

Aquele que tudo pode realizar superabundantemente,e muito mais do que nós pedimos ou concebemos,e cujo poder atua em nós,a ele a glória,na Igreja e em Jesus Cristo,por todas as gerações, para sempre. Amém (vv. 20-21).

“A ele a glória, na Igreja e em Jesus Cristo”; a Igreja manifesta a “glória” de Deus, do mesmo modo que personificava a sua “sabedoria” eterna em v. 10. Aqui conclui a oração que foi iniciada em v. 1, interrompida em v. 2, e continuada em v. 14 (retomandoa de 1,16-23).  Encerra com uma doxologia(fórmula de louvor, v. 21) a primeira parte da carta.

 

Evangelho:Lc 12,49-53

No evangelho de hoje, Jesus continua falando a seus discípulos, agora mudando de foco: antes falou sobre a vigilância necessária quanto à parusia(sua volta no fim do mundo; cf. vv. 35-48), agora sobre sua própria crise no sofrimento (v. 50) e a confusão e a divisão apocalípticas que se fazem sentir no tempo presente (vv. 51-53).

Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso! Devo receber um batismo, e como estou ansioso até que isto se cumpra!(v. 49-50).

Só Lc transmite esta frase sobre o fogo e este batismo, diferente daquele que João Batista administrava (cf. Mc 10,38; Lc 3,16p). O fogo que se fala aqui deve ser para Jesus aquele que acompanha o julgamento de Deus em cenas escatológicas (Is 66,15s; Ez 38,22; 39,6; Ml 3,19; Dn 7,9-11; Jt 16,17). Lc deve pensar no batismo no Espirito e no fogo em Pentecostes (3,16; At 2,3.19).

Em Mc 10,38, o batismo é posto em paralelo com a taça do sofrimento para evocar o martírio (cf. Mc 14,36). Aqui, o batismo está em paralelo com o fogo, num contexto que evoca o julgamento (cf. 3,16-17p).A associação de água e fogo como instrumentos do julgamento é reencontrada em 17,26-29 (Noé, Ló; cf. 2Pd 2,5s; 3,6s).

A Bíblia de Jerusalém (p.1955) comenta:Esse fogo, evidentemente simbólico, pode assumir significados diferentes, conforme os contextos: O Espírito Santo ou ainda o fogo que purificará e abrasará os corações e que deve ser aceso na paixão, na cruz. O v. 50 favoreceria essa última interpretação, mas os vv. 51-53 sugerem antes um estado de guerra espiritual que o aparecimento de Jesus suscita.

A Bíblia do Peregrino (p.2501) comenta: Fogo e água podem resumir qualquer tipo de perigo (Is 43,2). Será que as duas imagens se referem aqui ao mesmo fato, a paixão próxima? Em 3,16p, João Batista falou de outro batismo “com Espírito Santo e fogo”, fogo de julgamento e purificação [cf. 1Pd 1,7; Ap 3,18]; Is 4,4 fala de uma purificação com “vento” (pneuma) de julgamento: aniquila ou purifica e limpa. A pregação de Jesus já acendeu esse fogo (cf. Is 1,25; 9,17; Zc 13,9). Cabe referir os versículos à paixão como julgamento que vai separar. O batismo aqui é a grande prova, que alude à paixão (cf. Sl 42,8; 69,2; 124,40)[cf. Mc 10,38-39p; Is 43,2; Ct 8,7]. Outros distinguem: o batismo é a paixão, o fogo é Pentecostes; Jesus anseia que chegue o Espírito purificador, mas se aflige diante da proximidade da paixão [cf. a aflição de Jeremias em Jr 20,9]. E o cristão tem de seguir a mesma trajetória.

Vós pensais que eu vim trazer a paz sobre a terra?Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer divisão (vv. 50).

Estes versículos,que tem um paralelo em Mt 24,34-36,apoiam a interpretação do fogo como julgamento, “divisão”; a palavra grega krinein (daí a palavra “crise”) significa discernir, dividir, julgar, separar (o bem do mal). Mt 10,34 diz mais concretamente: “trazer a espada” (símbolo da justiça que divide) que deve ser primitivo.

Para Lc, a “paz” é o dom messiânico por excelência e ele insiste nisso (1,79; 2,14.29; 7,50; 8,48; 10,5s; 11,21; 12,51; 14,32; 19,38.42; 24,36; cf. Ef 2,14).  Mas a paz de Jesus não é uma paz carnal e fácil como os falsos profetas sonhavam (6,22-23.26; cf. Jo 14,27; Jr 6,14; 8,11; Ez13,10.16).

Pois, daqui em diante, numa família de cinco pessoas,três ficarão divididas contra duas e duas contra três;ficarão divididos:o pai contra o filho e o filho contra o pai;a mãe contra a filha e a filha contra a mãe;a sogra contra a nora e a nora contra a sogra (vv. 50-53).

A Bíblia do Peregrino (p.2502) comenta: Diante de Jesus as pessoas terão de tomar partido, como Simeão anunciou (2,34-35), passando por cima dos laços familiares. Recorda-se, na tremenda cena deEx 32, o grito de Moisés: “A mim os do Senhor!” e a matança dos culpados, sem perdoar nem “irmão, parente ou vizinho”. A divisão que Jesus provocará atravessará grupos humanos naturais… A expectativa da paz messiânica (Is 2,2-5; 11,1-10; Zc 9,10) não pode ignorá-lo.

Na tradição profética, a “divisão” das famílias é uma característica da tribulação do fim dos tempos (Mq 7,6; Ag 2,22; Ml 3,24). Jesus voltará a isso no discurso sobre o fim do mundo em 21,16 (Mc 13,12p). Para Lc e sua comunidade era um consolo que as divisões nas famílias por causa da fé fazem parte da vida cristã e do plano divino; o próprio Jesus as experimentou (cf. 4,16-30; 8,19-21p; Mc 3,21; Jo 7,5).

O site da CNBB comenta: A vinda de Jesus cria um divisor de águas na história dos homens. De um lado encontramos os que são dele e, de outro, os que são do mundo. A partir dessa divisão se estabelece o conflito, que é caracterizado principalmente pela diferença de valores, e exige de todos os que abraçam a fé a consciência de suas consequências, entre elas a de ser odiado pelo mundo. Como cristãos, devemos enfrentar o conflito com o mundo, mas não com as mesmas armas do mundo, uma vez que estas levam à morte, o grande valor do mundo. Devemos enfrentar o mundo com a fé, a espiritualidade, a entrega, a partilha, a doação, a fraternidade, o testemunho, o profetismo, que são valores do Reino e levam à vida.

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