23 de maio de 2016 – 8ª semana 2ª feira

Leitura: 1Pd 1,3-9

Hoje iniciamos a leitura da primeira carta de Pedro. Ela foi escrita em grego, e de tal qualidade que parece difícil atribuí-la ao próprio Pedro, pescador simples da Galileia onde se falava aramaico. Mas Pedro estava em companhia de Silvano (ou Silas, 5,12) e João Marcos (5,13). Ambos foram também companheiros de Paulo (At 15,40-18,5; 12,5; 13,5-13).

Esta carta circular (“católica” no sentido de “geral, para todos”) se diz ser escrita “por meio de Silvano” (5,12). A data deve ser pouco antes da perseguição de César Nero na qual Pedro e Paulo sofreram o martírio (64-67 d.C.). Entretanto, o estudo da situação histórica e do desenvolvimento do cristianismo faz pensar, que a carta poderia ser escrita pouco depois do martírio de Pedro, talvez cerca de 70-80 ou durante a perseguição de Domiciano (95 d.C.), ou até em duas etapas. Um discípulo residente em Roma (“Babilônia”, 5,13; cf. Ap 18,2.10.21) teria redigido esta mensagem de encorajamento para manter viva a tradição do primeiro apóstolo e alentar as comunidades “dispersas” na Ásia Menor (cf. v. 1).

Nos vv. 1-2 (omitidos pela leitura de hoje), Pedro se apresenta com os mesmo títulos das cartas de Paulo e se dirige a cristãos (“eleitos”) que vivem longe da pátria em terras estrangeiras. Se é diáspora (“dispersão”) é para os judeus, para os cristãos é seu primeiro crescimento. Eles formam o povo da nova aliança, graças ao sangue de Jesus Cristo (“na aspersão do seu sangue”; v. 2; cf. Ex 24,3-8; Hb 9,12-14; 12,24; Mt 26,28p). A menção das três pessoas divinas mostra que a comunidade cristã tem a sua origem na Trindade (cf. 2Cor 13,13). O trecho seguinte voltará o tema do Pai (vv. 3-5), do Filho (vv. 6-9) e do Espírito (vv. 10-12, leitura de amanhã).

Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Em sua grande misericórdia, pela ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, ele nos fez nascer de novo, para uma esperança viva, para uma herança incorruptível, que não se mancha nem murcha, e que é reservada para vós nos céus. Graças à fé, e pelo poder de Deus, vós fostes guardados para a salvação que deve manifestar-se nos últimos tempos (vv. 3-5).

Bendizer a Deus equivale a dar-lhe graças (Paulo sempre dava graças no início das suas cartas). A fórmula de bênção herdada no AT, “Bendito seja Deus…” (Gn 14,20; Lc 1,68; Rm 1,25; 2Cor 11,31), tornou-se cristã (Rm 9,5). O Deus que nós bendizemos é o Pai de Jesus (cf. 2Cor 1,3; Ef 1,3).

Os benefícios da bênção pelos quais louvamos a Deus estão ligados a pessoa de Cristo e, sobretudo à sua ressurreição (Rm 1,4-5; etc). O “novo nascimento” (cf. v. 23 “gerados de novo”) pelo batismo (cf. Jo 3,3-5; 1Jo 3,9) é participação na vida de Jesus ressuscitado, dando aos cristãos esperança incomparavelmente superior a qualquer outro ideal humano. Assim como Deus havia concedido a “herança” da terra ao povo da antiga aliança, também o povo da nova aliança recebe como herança “incorruptível” a própria vida de Deus (cf. 2Pd 1,4; Mt 25,34).

O cristão vive impulsionado para a vida plena que está “reservada” (cf. Sl 31,20; Cl 1,5.12), sempre em via de se “manifestar”: o período final da história inaugurado por Jesus (1,20) e que se concluirá com a “revelação” (vv. 7.13; 4,13; 5,1; 1Cor 1,7-8) ou seja, a parusia (vindo do Senhor e do Reino; Tg 5,8; cf. Mc 1,15).

A Bíblia do Peregrino (p. 2905) comenta sobre nossa leitura de hoje:

O motivo do conjunto é a “salvação” (Pedro poderia ter recordado que o nome de Jesus contém a raiz de “salvar”). Jesus traz o título de Senhor, talvez o de Messias (christós), implicitamente o de Filho de Deus Pai.

Toda a salvação, desde o começo do batismo, ao longo da existência, até a consumação, é obra de Deus Pai por meio de Jesus Cristo. Inclusive antes precede o “desígnio” de Deus (v. 2). De Jesus Cristo recorda a “ressurreição” (v.3) e a parusia (vv. 5.7). O cristão responde com a fé (vv. 5.9), a esperança (v. 3), a constância (vv. 6-7), o amor a Cristo (v. 8). Vejamos as etapas.

  1. a) a regeneração ou novo nascimento (vv. 3.23), em virtude do mistério pascal. A morte de Cristo fica implícita; menciona só a ressurreição. Porque ambas, ressurreição de Cristo e regeneração do cristão, são a seu modo começo de vida nova. A fé inicial é crer e amar sem ter visto nem conhecido pessoalmente Jesus – como conheceu Pedro, que conviveu com ele. É também o começo de uma esperança sem ter visto (cf. Jo 20,29)
  2. b) a vida do cristão está animada pela fé, “custodiada” por Deus, alegrada pela esperança. Inclui sofrimentos (tema dominante da carta), que são provações e purificam a fé. Em meio ao sofrimento, a esperança enche de alegria (cf. 2Cor 7,4). Cada família recebeu sua parcela, quando a terra prometida foi repartida entre as tribos; era sua herança. Era uma terra alheia, exposta, ameaçada, perdida. O cristão conta com uma “herança” guardada ou reservada no céu. É segura, não terá fim; o paradoxo é que o herdeiro toma posse da herança quando morre, não quando morre o testamenteiro. E a receberá no “último dia”, o dia da parusia, quando Jesus Cristo se revelar (1Cor 1,7).

Isto é motivo de alegria para vós, embora seja necessário que agora fiqueis por algum tempo aflitos, por causa de várias provações. Deste modo, a vossa fé será provada como sendo verdadeira – mais preciosa que o ouro perecível, que é provado no fogo – e alcançará louvor, honra e glória no dia da manifestação de Jesus Cristo (vv. 6-7).

O tema preponderante da carta é a fé no meio das provações (cf. 3,14; 4,12-14; Mt 5,11s: Jo 16,20; Hb 12,5-13; Tg 1,2s; Rm 5,3-5).

A qualidade da fé será testada no juízo, como o ouro, acrisolado no fogo. A comparação é tradicional: “Ó Deus, pudeste-nos a prova, tu nos refinaste como se refina a prata” (Sl 66,10); “Deus os pôs a prova e os encontrou dignos de si, provou-os com o ouro no crisol” (Sb 3,5s; cf. Is 48,10; Zc 13,9; Ml 3,3). Lembramos que Pedro estava se aquecendo no fogo do pátio quando falhou negando Jesus e chorou amargamente (Mc 14,66-72p; cf. Jo 21). A fé é compromisso permanente com Cristo, até a morte. Cristo chegou à glória da ressurreição e da vida através de perseguições e sofrimentos. O cristão segue o mesmo caminho: mediante o testemunho de vida em meio às provas, pouco a pouco nele se manifesta o próprio Cristo, que comunica a alegria da ressurreição.

Sem ter visto o Senhor, vós o amais. Sem o ver ainda, nele acreditais. Isso será para vós fonte de alegria indizível e gloriosa, pois obtereis aquilo em que acreditais: a vossa salvação (vv. 7-8).

Os apóstolos “viram” Cristo ressuscitado (cf. 1Jo 1,1 etc.), mas os que não viram, mas acreditam no testemunho e na pregação dos apóstolos são declarados “felizes os que crerem sem terem visto” (Jo 20,29; cf. 2Cor 5,7).  No meio das angustias (v. 6; 2,12.19; 3,13-17; 4,12-19), os cristãos tiram desta fé e do amor ao “Senhor” ressuscitado (cf. Jo 20,8) a certeza jubilosa da “salvação das almas” (lit.), isto é das suas pessoas (v. 22; 2,11; cf. 1Cor 15,44). A Bíblia do Peregrino (p. 2905s) traduz “salvação pessoal” e comenta: No AT o sintagma significa simplesmente salvar a vida; aqui significa a salvação total e definitiva. A salvação fica completa no final, no último dia.

 

Evangelho: Mc 10,17-27

No cap. 10, depois de uma catequese familiar sobre matrimônio e o valor das crianças, Mc trata a questão dos bens que podem impedem um homem a seguir Jesus.

Quando Jesus saiu a caminhar, veio alguém correndo, ajoelhou-se diante dele, e perguntou: “Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna?” (v. 17).

Jesus caminha, mas “veio alguém correndo” (v. 17), um homem com pressa (angustiado, estressado?). Ele tem observado os mandamentos “desde a sua juventude” (v. 20; em Mt 19,16 ele é um “jovem”), mas “ajoelhou-se diante dele e perguntou: “Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna?” (v. 17b; cf. Lc 10,25). A pergunta revela que o homem acredita na ressurreição e sabe que não basta pertencer ao povo de Deus para salvar-se, mas precisa da decisão e da conduta ética do indivíduo. É a Lei que orienta para isso, mas na época de Jesus havia várias interpretações da lei que confundiam o povo.

Jesus disse: “Por que me chamas de bom?” Só Deus é bom, e mais ninguém. Tu conheces os mandamentos: não matarás; não cometerás adultério; não roubarás; não levantarás falso testemunho; não prejudicarás ninguém; honra teu pai e tua mãe!” (vv. 18-19).

A resposta de Jesus parece estranha para nós: “Porque me chamas de bom? Só Deus é bom e mais ninguém” (v. 18). Jesus quer corrigir a expectativa do homem: A resposta a esta pergunta cabe só a Deus, o único que salva. O que Jesus comunica, não é uma opinião pessoal, mas a vontade de Deus.

“Tu conheces os mandamentos” (v. 19). Jesus cita a segunda tábua da Lei (10 Mandamentos); a primeira tábua (os primeiros três mandamentos) já estava incluída na frase anterior sobre a unicidade e bondade de Deus (cf. Dt 6,4-6). Assim, Jesus não cita a proibição das imagens incluída no primeiro mandamento, nem o segundo mandamento sobre o nome de Deus e nem o terceiro sobre o sábado; os cristãos vão mudar o primeiro e terceiro. Citando apenas a segunda tábua e omitindo a citação dos três primeiros mandamentos, Jesus abre espaço para um homem poder salvar-se pela sua ética e boa conduta, independentemente da sua fé e religião. Assim será no juízo final em Mt 25,31-46 (cf. o bom samaritano em Lc 10,25-37 e Vaticano II, LG 16).

A sequência dos mandamentos citados é diferente: Jesus cita o 5º, 6º, 7º e 8º mandamento, depois o 4º no final (vv. 19; cf. Ex 20,12-16; Dt 5,16-20), antes acrescenta “não prejudicarás ninguém”; este último pode ser um resumo do 9º e 10º mandamento, mas a tradição helenista destacava as obrigações sócias, então poderia se referir aos pobres e empregados cujos salários não se deve atrasar (este preceito convém para um rico; cf. Eclo 4,1 com a mesma palavra, e Dt 24,14). Também o 4º mandamento no final expressa obrigações sociais a respeito dos pais (cf. 7,10-13; Eclo 3,1-16).

Ele respondeu: “Mestre, tudo isso tenho observado desde a minha juventude.” Jesus olhou para ele com amor, e disse: “Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me!” Mas quando ele ouviu isso, ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico (vv. 20-22).

Até agora nada de novo para este homem que pode constatar que “tudo isso tenho observado” (v. 20). Mas Jesus convida para segui-lo, “olhou com ele com amor e disse: ‘Só uma coisa te falta, vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me’” (v. 21).

No judaísmo surgiu a ideia de que esmolas e boas obras serão recompensadas no céu (cf. Mt 6,2-4; 6,9-21). Para ganhar a vida eterna, não se deve “correr” (v. 17) atrás de dinheiro, mas atrás de Jesus que também é pobre e caminha para cruz. Mas a vocação fracassou desta vez, o homem “ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico” (v. 22; cf. 4,19). Quem vai seguir Jesus no caminho a Jerusalém, será Bartimeu, o mendigo cego e curado (v. 52, final do cap. 10).

Jesus então olhou ao redor e disse aos discípulos: “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!” Os discípulos se admiravam com estas palavras, mas ele disse de novo: “Meus filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus! É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!” (vv. 23-25).

Jesus lamenta e se dirige agora aos discípulos: “Como é difícil para os ricos entrar no reino de Deus!” (v. 23); “entrar no reino de Deus” significa aqui o mesmo da pergunta: “ganhar a vida eterna” (v. 17; cf. 9,43-47). Repetindo a frase, Jesus chama os discípulos: “meus filhos” (v. 24; lit. “crianças”; só aqui os chama assim em Mc) e diz: ”É mais fácil um camelo entrar no buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus” (v. 25). Não se deve atenuar o contraste trocando a palavra camelo por cámilo (corda de navio) ou aludir a um portal no muro de Jerusalém com o nome camelo. Já os rabinos e outros autores da época conheciam as comparações absurdas do elefante e da agulha ou do contraste da formiga e do camelo.

Eles ficaram muito espantados ao ouvirem isso, e perguntavam uns aos outros: “Então, quem pode ser salvo?” Jesus olhou para eles e disse: “Para os homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível” (vv. 26-27).

Os discípulos ficaram muito espantados e perguntaram uns aos outros: “Então quem pode ser salvo?” (v. 26); a mesma pergunta de v. 17, só desta vez generalizada. Riqueza e outros poderes do mundo seduzem o homem e se opõem ao reino de Deus. Mais uma vez Jesus orienta para a soberania de Deus (cf. v. 18). Só Deus é bom e pode superar os obstáculos: “Para os homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível” (v. 27; cf. Gn 18,14; Jó 42,2; Zc 8,6; Lc 1,37). Assim a preocupação do homem passa do material para o espiritual, da dependência do dinheiro para gratuidade (graça) de Deus.

Em Lc 19,1-10, depois da cura do cego que segue Jesus, aparece um rico cobrador de impostos, Zaqueu. Ele se converte, não segue Jesus no caminho, mas se salva dando a metade dos seus bens aos pobres.

Na história da Igreja havia interpretações diversas do texto de hoje. No evangelho apócrifo dos nazarenos, o rico é visto como hipócrita: como ele pode dizer que cumpre os mandamentos, se está na lei: “Amarás o próximo como a si mesmo” (Lv 19,18). Alude-se a vida comunitária dos primeiros cristãos (cf. At 2,44-45; 4,32-37), e Clemente de Alexandria diz: “Todas as coisas são propriedade comum, e os ricos não devem querer mais para si do que para os outros”. São Tomás de Aquino assegura o direito à propriedade particular, no entanto, as propriedades têm obrigações sociais (e ambientais, acrescentamos hoje). O homem rico no evangelho fracassou na vocação, mas o texto inspirou Santo Antão e São Francisco a venderem seus bens para levar uma vida simples. A exigência de Jesus é vista como um conselho para alguns, não como mandamento para todos (cf. 1Cor 7,10-25), assim se vive os três conselhos “pobreza, castidade, obediência” nas congregações religiosas, mas há de lembrar a todos as pessoas de suas obrigações sociais e da opção preferencial pelos pobres de Jesus e da Igreja (cf. Lc 4,18; 6, 20-25; 16,19-31).

O site da CNBB comenta a respeito: O evangelho de hoje nos apresenta, no caso do jovem rico, um grave erro que pode ocorrer na vida de todos nós no que diz respeito à questão da salvação e que se refere ao sujeito da salvação. Às vezes, a gente escuta que as pessoas devem esforçar-se para se salvarem e eu penso que eu devo conseguir me salvar. Ora, ninguém salva a si próprio. Eu não posso ser o meu salvador. Os discípulos perguntaram: “Quem então poderá salvar-se?” A resposta de Jesus é: “Para os homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus, tudo é possível”. Não podemos confiar a nossa salvação nem em nós mesmos, nem nos outros e nem nos bens materiais, pois nada ou ninguém, a não ser o próprio Deus, podem nos salvar.

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