23 de março de 2017 – Quinta-feira, Quaresma 3ª semana

 

Leitura: Jr 7,23-28

O trecho da leitura de hoje faz parte do sermão do profeta Jeremias sobre o culto no templo, proferido pouco depois da morte do rei Josias (609 a.C.). O templo de Jerusalém deveria exprimir a relação da aliança entre o povo e Deus. Transformou-se, porém, numa instituição corrompida (“cova de ladrões”, v. 1; cf. Mc 11,17p) que escondia as injustiças contra os fracos e pobres (v. 6: “o estrangeiro, o órfão e a viúva”): “roubar, matar, cometer adultério, jurar falso, queimar incenso a Baal, seguir deuses estrangeiros… e depois virdes e vos apresentardes diante de mim, neste templo, onde meu nome é invocado, e dizer ‘Estamos salvos’, para depois continuar praticando essas abominações” (vv. 9-11). Se Israel não se converter, o templo será destruído como o santuário de Silo foi destruído antigamente pelos filisteus (vv. 12.14-15; cf. 1Sm 4; Sl 78,60), para que o povo tome consciência de que Javé salva não através do culto, mas através da prática da justiça.

(Assim fala o Senhor:) ”Dei esta ordem ao povo dizendo: ‘Ouvi a minha voz, assim serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo; e segui adiante por todo o caminho que eu vos indicar para serdes felizes’(v. 23).

A aliança no Sinai impunha, como condição fundamental, a aceitação livre e a obediência ou cumprimento. O povo a aceitou globalmente. No próprio decálogo (dez mandamentos,cf. Ex 20; Dt 5), não há mandamento sobre sacrifícios e outras práticas do culto. O que Deus exige, não são holocaustos e sacrifícios (v. 22), mas a obediência (v. 23, cf. 1Sm 15,22: “obedecer vale mais do que um sacrifício”; cf. Os 6,6; Mq 6,6-8; Am 5,21): “Ouvi a minha voz (obedecei-me)”, assim “serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo” (fórmula da aliança; cf. 11,4; 24,7; Ez11,20; 14,11; 36,28; 37,27; Ex 6,7; 19,5; Lv 26,12; Dt 26,17-19; 29,12). “Caminhai por todo caminho que eu vos indicar para serdes felizes” (cf. Dt 30,15-20).

Mas eles não ouviram e não prestaram atenção; ao contrário, seguindo as más inclinações do coração, andaram para trás e não para a frente, desde o dia em que seus pais saíram do Egito até ao dia de hoje (vv. 24-25a).

Mas todo esforço de Deus de libertar e educar seu povo parece estar em vão, “eles não ouviram e não prestaram atenção, ao contrario, seguindo as más inclinações do coração, andaram para trás e não para frente” (v. 24; cf. 3,17; 8,6; 11,8). As rebeliões já começaram desde cedo (2,20) junto ao mar Vermelho (Sl 106,7) e continuaram no deserto e em Israel “até hoje” (2Rs 21,14s);

A todos enviei meus servos, os profetas, e enviei-os cada dia, começando bem cedo; mas não ouviram e não prestaram atenção; ao contrário, obstinaram-se no erro, procedendo ainda pior que seus pais (vv. 25b-26).

Deus enviou os seus “servos, os profetas” para atualizar a aliança desde Moisés (Dt 18; Jz6,8; cf. Jr 25,4.15; 29,19; 44,4; Is 42,1; 49,4; 50, 4; 52,13-53,12; Mc 12,2-5p), “mas não ouviram e nem prestaram atenção, ao contrário, obstinaram no erro” (lit. “endureceram a nuca” como novilho que rejeita a canga: Ex 32,9; 33,3; 34,9; Dt 9,6.13), “procedendo ainda pior do que seus pais” (v. 26; 2Rs 17,14).

Se falares todas essas coisas, eles não te escutarão, e, se os chamares, não te darão resposta. Dirás, então: ‘Esta é a nação que não escutou a voz do Senhor, seu Deus, e não aceitou correção. Sua fé morreu, foi arrancada de sua boca’”(vv. 27-28).

É um povo teimoso e rebelde que também não escutará nem Jeremias (v. 27; cf. 41,13.21) nem Ezequiel(cf. Ez 2,1-3,9.26s). Deus já quer desistir de educar e formar seu povo; declara: “Esta é a nação que não escutou a voz do Senhor, seu Deus, e não aceitou correção”(não aprendeu a lição, cf. 6,8). “Sua fé (ou: verdade, fidelidade, sinceridade)morreu” (v. 28).

A única possibilidade que resta é Deus fazer uma “nova aliança” em que ninguém mais precisa ensinarou corrigir seu irmão, mas em que a lei de Deus já estará escrita em seus corações (31,32-34; Lc 22,20; 1Cor 11,25; 2Cor 3,6; Hb 9,15)

 

Evangelho: Lc 11,14-23

No evangelho ouvimos de uma má interpretação das curas de Jesus. No episódio anterior, Jesus acabou de ensinar aos discípulos a rezar (o Pai nosso: cf. 11,1-13), agora é acusado de ser aliado do diabo.

Jesus estava expulsando um demônio que era mudo. Quando o demônio saiu, o mudo começou a falar, e as multidões ficaram admiradas (v. 14).

Jesus curou uma pessoa muda. Para os contemporâneos, ele expulsou um demônio, suposta causa da deficiência ou doença (cf. 4,39 “ameaçou a febre”). O sucesso da cura era óbvio, “o mudo começou a falar” (v. 14; cf. 1,64) e causou a admiração do povo.

O contexto da cura do mudo antes da acusação polêmica (também em Mt 12,22s) demonstra que Lc copiou de Mc 3,22-27 e também da fonte Q (Lc11,14.19-20; Mt 12,27-28; ou existia uma segunda edição de Mc, Deuteromarcos, de quem Mt e Lc copiaram?).

Mas alguns disseram: “É por Belzebu, o príncipe dos demônios, que ele expulsa os demônios.”Outros, para tentar Jesus, pediam-lhe um sinal do céu(vv. 15-16).

Mas “alguns” atribuem o sucesso da cura ao chefe dos demônios: “É por Belzebu, o príncipe dos demônios, que ele expulsa os demônios” (v. 15). Lc copia este relato de Mc 3,22-30, mas poupa “os escribas que haviam descido de Jerusalém” (Mc 3,22; em Mt 12,24: fariseus) generalizando os acusadores em “alguns” e “outros”. ComoLc escreve para cristãos que não vieram do judaísmo, mas do paganismo, ele não precisa polemizar contra os judeus.

Difícil é imaginar uma acusação pior contra o Messias Jesus. Belzebu soa como “deus do lixo/senhor das moscas”. “Belzebu” é um dos nomes tradicionais do diabo (tomado do deus de Acaron em 2Rs 1, onde o nome Beel-Zebul, “senhor príncipe”, é transformado maliciosamente em Baal Zebub, “senhor das moscas”).A acusação é gravíssima e visa desacreditar pela base toda atividade de Jesus, declarando-o agente do rival (satanás) de Deus. É uma acusação absurda em simples lógica e se voltará contra os que a pronunciam.

“Outros, para tentar Jesus, pediam-lhe um sinal do céu“ (v. 16); mas a resposta de Jesus é dada mais tarde em vv. 29-32 (cf. o evangelho de quarta feira da primeira semana da quaresma).

Mas, conhecendo seus pensamentos, Jesus disse-lhes: “Todo reino dividido contra si mesmo será destruído; e cairá uma casa por cima da outra. Ora, se até Satanás está dividido contra si mesmo, como poderá sobreviver o seu reino? Vós dizeis que é por Belzebu que eu expulso os demônios(vv. 17-18).

A respeito de Belzebu, Jesus refuta a idéia. Como ele poderia estar aliado a Satanás? Assim Satanás “estaria dividido contra si mesmo, como poderia sobreviver seu reino?” (v. 18). Em Mc 3,24s, Jesus responde com dupla comparação: a divisão de um “reino” e de uma “casa” (família) acabará em ruína. Em Lc, sob a impressão de guerras (cf. 19,43-44 e terremotos cf. 21,20s), a imagem é de destruição e desastre total,“cairá uma casa por cima da outra”.

Se é por meio de Belzebu que eu expulso demônios, vossos filhos os expulsam por meio de quem? Por isso, eles mesmos serão vossos juízes. Mas, se é pelo dedo de Deus que eu expulso os demônios, então chegou para vós o Reino de Deus (vv. 19-20).

Esse argumento dos vv. 19-20 faltava em Mc (como em v. 14, Lc e Mt usam aqui uma segunda fonte, Q, ou uma segunda edição de Mc, Deuteromarcos).

Jesus não era o único exorcista da região, havia outros homens (“vossos filhos”) do meio deles: “Se é por meio de Belzebu que eu expulso demônios, vossos filhos (Mt: adeptos) os expulsam por meio de quem?” (v. 19).

A prática deles era a seguinte: pôr um anel embaixo das narinas do possesso junto com uma raiz que Salomão indicou. Quando o possesso cheirava a raiz, o exorcista tirou o demônio pelas narinas do doente. O doente caiu logo e o exorcista pronunciou fórmulas mágicas mencionando o nome de Salomão para o demônio não mais voltar (cf. Strack-Billerbeck IV 534; cf. Josefo, Antiquidades VIII 2,5).

Com isso, Jesus não se quer colocar no mesmo nível destes exorcistas; nele não se trata de mágica, mas da presença soberana de Deus vencendo o poder do mal. A verdade é que Deus atua em Jesus, como Deus atuava milagres e prodígios já no Antigo Testamento através do seu “dedo” (Ex 8,15; cf. Dt 9,10; Sl 8,4). Mas se é a mão de Deus (Lc: “dedo”; Mt: “Espírito”, daí a imagem do Espírito Santo como dedo de Deus) que se manifesta nos atos de Jesus, então não precisa mais esperar pelo reino de Deus, porque “já chegou para vós o reino de Deus” (cf. Mc 1,15). Jesus aparece como chefe, príncipe e messias-salvador (cf. At 5,31s).

Quando um homem forte e bem armado guarda a própria casa, seus bens estão seguros. Mas, quando chega um homem mais forte do que ele, vence-o, arranca-lhe a armadura na qual ele confiava, e reparte o que roubou (vv. 21-22).

Não é que uma facção do reino de Satanás esteja lutando contra outra; o ataque vem de fora, de um mais forte que ele, que o amarrará e saqueará sua casa (Mc 3,27).Lc capricha na descrição e acrescentou motivos de guerra(cf. Is 9,2s; 49,24-26; 53,12) “bem armado… chega um homem mais forte do que ele, vence-o, arranca lhe a armadura na qual confiava, e reparte o que roubou”(devolve a saúde psíquica e física dos doentes e a dignidade das pessoas).

Jesus já resistiu ao Satanás com sucesso no deserto(cf. 4,1-13), viu o “cair do céu como um relâmpago” (10,18), mas o enfrentará de novo na paixão (cf. 22,3; Jo 12,2). Mas o mais forte é Jesus (cf. 3,16; At 4,10 etc.). Quando Satanás foi amarrado, o reino de Satanás está sendo vencido e com ele também o domínio da morte o será (cf. Hb 2,14s; Ap20,1.10).

Lc não fala aqui do pecado da blasfêmia contra o Espírito Santo cometida por quem inverte o bem e o mal nesta acusação (cf. Mc 3,28-30; Mt 12,31-32), mas fala dela em 12,10 no contexto de testemunho na perseguição.

O ícone da ressurreição (anástasis) na Igreja Ortodoxa mostra Jesus vitorioso descendo entre os mortos, libertando Adão e Eva (representantes da humanidade) dos túmulos, enquanto Satanás está amarrado sob a porta arrombada da mansão dos mortos aprisionados (cf. 2Pd 3,18-22)

Quem não está comigo, está contra mim. E quem não recolhe comigo, dispersa(v. 23).

A mesma frase está em Mt 12,30 e parece contradizer Mc 9,40: “Quem não está contra nós, está a nosso favor”. Mas em Mc 9,38-40 se trata de um exorcista que não é do grupo dos discípulos (“não nos segue”), mas expulsa demônios “em nome de Jesus”, então de certo modo está com Jesus, não contra ele (Mc 9,40 é um convite a ecumenismo, buscando o comum e não o que nos separa).

Mas quem não se posiciona ao lado de Jesus, bom e supremo pastor das almas, “não recolhe, mas dispersa” as ovelhas (Ez 34; Mt 9,36; Lc 10,3; Hb 12,20; 1Pd 2,25; 5,4). Em Jo 10,11-21, Jesus é acusado de ter um demônio após o sermão do bom pastor. Como em Lc, isso pode ser um reflexo de separação progressiva entre sinagoga e Igreja (oficializada pela excomunhão dos cristãos da sinagoga no sínodo de Jâmnia em 90 d.C).

No evangelho de hoje, Lc quer destacar que Jesus é mais forte e com ele venceremos o mal. Através das palavras e dos atos de Jesus, “o reinado de Deus já começou”, no entanto, ainda estamos longe da sua plenitude e sujeitos a recaídas. Assim a continuação do Ev em Lc 11,24-26 fala da volta do espírito impuro à casa arrumada com sete espíritos piores do que ele.

O site da CNBB comenta: Estamos vivendo uma época em que as posições em relação a Satanás são contraditórias. Existem algumas pessoas que dizem que o demônio não existe, que é uma espécie de personificação das más tendências e inclinações das pessoas e que essa história de anjo decaído não passa de mitologia. Por outro lado, existem os que absolutizam a ação do demônio, de modo que tudo é o inimigo agindo, é fruto do maligno e outras coisas do gênero. A Igreja afirma a existência do demônio, mas também afirma que o poder de Deus é infinitamente superior ao dele. No Evangelho de hoje, Jesus nos mostra o seu poder sobre o maligno, poder que se manifesta na totalidade no Mistério Pascal, que é a derrota definitiva do antigo inimigo.

 

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