24 de Fevereiro de 2019, Domingo: Então, a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e os maus (v. 35b; cf. Mt 5,45).

1ª Leitura: 1Sm 26,2.7-9.12-13.22-23

A 1ª leitura foi escolhida em vista do amor ao inimigo, recomendado por Jesus no evangelho de hoje. Na leitura de hoje encontramos Saul e Davi como adversários, uma história complexa que envolveu Israel numa guerra civil (cf. 2Sm 3,1).

Saul foi ungido por Samuel para ser o primeiro rei de Israel (10,1) e combater os inimigos filisteus. Saul utilizou-se da antiga estrutura da milícia tribal com base de poder em sua própria tribo Benjamim. Preferiu ir ao encontro dos filisteus de frente, mas diante da superioridade dos recursos e tecnologia dos filisteus, finalmente encontrou a morte em combate (cap. 31).

Como contraste à vida de infortúnio de Saul está a vida sempre bem sucedida de Davi que entra na narrativa logo depois Samuel deixado Saul pela última vez (caps. 15-16). Davi começou sua ascensão primeiramente pelo sucesso militar no exército de Saul (cf. a luta contra Golias em cap. 17 e o canto da vitória em 18,17). Em sua tentativa der estabelecer sua legitimidade, Davi casou-se com a filha de Saul, Micol, e tornou-se o melhor amigo de Jônatas, filho de Saul (caps. 18-20). Como resultado, ficou integrado à família real. Seu sucesso na batalha, bem como a legitimidade que ganhou através do casamento real fez com que Davi parecesse o sucessor óbvio de Saul.

A partir da sua base tribal de Judá (2Sm 2,10s), Davi jogou primeiro os filisteus e os israelitas (liderados por Saul) uns contra os outros (1Sm 21; 23; 29). Mesmo antes de se tornar rei, Davi desenvolveu seu próprio exército (22,2; 27,2), depois de fugir da corte por causa do ciúme de Saul que tentou matá-lo com sua (18,9-11; 19,8-10).

O cap. 26 tem muita semelhança com o cap. 24 em que Davi também poupa a vida de Saul em respeito religioso para com o caráter sagrado do rei, “o ungido do Senhor” (26,11.23). No cap. 24, o rei Saul perseguia Davi no deserto e entrou numa caverna para satisfazer uma necessidade natural. Davi e seu bando, porém, estavam no fundo da caverna e Saul não os enxergou. Em vez de matar Saul por trás, Davi apenas cortou um pedaço do manto de Saul sem este perceber. Em seguida, à distância segura, mostrou a Saul o pedaço do manto em sinal da sua lealdade apesar da perseguição pelo rei.

A Bíblia do Peregrino (p. 541) comenta: Em toda a estrutura narrativa, na intenção e até em várias expressões, o capítulo 26 se parece muito com o 24, tanto que alguns o consideram um duplicado procedente de outra tradição oral. Como as situações são bem diversas, pode-se pensar que quem compôs o livro harmonizou espontaneamente duas narrações, que corriam sobre o herói Davi. Impossível determinar quanto há de acontecimento e quanto de lenda.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 444) comenta: O cap. 26 apresenta o mesmo esquema narrativo do cap. 24 (denuncia a Saul; Saul põe-se a caminho; a respectiva situação de Saul e David, com vantagem desse último; David consegue um objeto-testemunho; reconhecimento e dialogo à distância; separação), e as duas passagens têm muitas expressões semelhantes ou comuns (cf. os paralelos). Embora os dois episódios paralelos procurem igualmente celebrar a magnanimidade e lealdade de David, diversos detalhes distinguem os dois capítulos. O encontro não aconteceu por sorte como sugere 24,3, mas agora é David quem toma a inciativa de provocar Saul, conforme 26,6. O David do cap. 26 é menos modesto que o do cap. 24. O papel desempenhado pelos homens de David em 24,5-8 é desempenhado agora por Abishai (26,8-11), cujo zelo intempestivo (cf. v. 8) o autor parece querer denunciar. Observe-se enfim o toque milagroso introduzido no v. 12 e o interesse pelo culto manifestado no v. 19.

(Naqueles dias,) Saul pôs-se em marcha e desceu ao deserto de Zif. Vinha acompanhado de três mil homens, escolhidos de Israel, para procurar Davi no deserto de Zif (v. 2).

Como em 24,2, os habitantes da região denunciam o local do esconderijo de Davi e seus homens e Saul junta o mesmo número de homens para capturar Davi. Já em 23,19ss, algumas pessoas de Zif informaram Saul que Davi estava entre eles. Só desta vez, Davi sabia através de espiões que Saul havia chegado e onde acampava, e toma iniciativa.

Davi e Abisai dirigiram-se de noite até o acampamento, e encontraram Saul deitado e dormindo no meio das barricadas, com a sua lança à cabeceira, fincada no chão. Abner e seus soldados dormiam ao redor dele. Abisai disse a Davi: “Deus entregou hoje em tuas mãos o teu inimigo. Vou cravá-lo em terra com uma lançada, e não será preciso repetir o golpe”. Mas Davi respondeu: “Não o mates! Pois quem poderia estender a mão contra o ungido do Senhor, e ficar impune?” (vv. 7-9).

A lança é a mesma que Saul queria cravar em Davi e em Jônatas (cf. 18,11; 19,10; 20,33; 22,6). Ela é um símbolo do poder real, como também o manto (cf. 24,5).

A Bíblia do Peregrino (p. 541) comenta: Saul morto por sua própria lança seria uma façanha singular (como a cabeça do filisteu cortada com sua própria espada). O leitor recorda que com essa lança Saul tentou atravessar Davi, e sabe talvez que essa lança porá fim à vida de Saul (o ouvinte ou leitor antigo o sabia, pois escutava uma vez ou outra a história). A lança é a arma real, leitmotiv narrativo da sua pessoa. De três maneiras pode o Senhor dar a morte a Saul: com uma enfermidade mortal (ngp), deixando que chegue sua hora, ou fazendo que caia na guerra. Davi deseja e pressente: morrer na batalha é a morte menos humilhante para o Ungido do Senhor. Pela boca de Davi, o narrador nos prepara.

Davi leva consigo Abisai, seu sobrinho (filho da sua irmã e irmão de Joab; cf. 1Cr 2,16; Joab torna-se comandante do exército de Davi, cf. 2Sm 2,12-32; 8,16; 20,6-23). A proposta violenta de Abisai serve para salientar a moderação da David e combina com seu caráter que se revela em 2Sm 16,9; 19,22.

Como em 24,7.11, Davi se recusa “estender a mão contra o ungido do Senhor”. Os reis de Israel eram ungidos por um homem de Deus (sacerdote ou profeta: cf. 10,1; 16,13; 1Rs 1,39; 2Rs 9,6; 11,12). Esse rito dava ao rei um caráter sagrado e fazia dele um vassalo de Deus; ele era “o ungido (lit. messias) do Senhor (Javé)” (cf. 2,35; 24,7.11; 26,9.16 e ver Ex 30,22).

Então Davi apanhou a lança e a bilha de água que estavam junto da cabeceira de Saul, e foram-se embora. Ninguém os viu, ninguém se deu conta de nada, ninguém despertou, pois todos dormiam um profundo sono que o Senhor lhes tinha enviado. Davi atravessou para o outro lado, parou no alto do monte, ao longe, deixando um grande espaço entre eles (vv. 12-13).

“Ninguém os viu, ninguém se deu conta de nada, ninguém despertou, pois todos dormiam um profundo sono que o Senhor lhes tinha enviado” A Bíblia do Peregrino (p. 542) comenta: O autor se dá conta do inverossímil do fato, e o justifica, apelando para uma intervenção especial de Deus. A frase é muito rítmica, quase uma respiração acompanhada pelo sono.

“Profundo sono que o Senhor lhes tinha enviado”; mesma expressão em Gn 2,21 (torpor de Adão). Aqui que introduz um toque de milagre no relato (cf. Gn 15,12; Jó 4,13; Pr 19,15), uma espécie de sono letárgico e anormal que pode ir até a alucinação (Is 29,10).

“Davi atravessou para o outro lado, parou no alto do monte, ao longe, deixando um grande espaço entre eles”. Ele só parou na outra vertente do vale, à distância segura. A Bíblia do Peregrino (p. 542) comenta: Muito espaço para os pés que descem e sobem, não para a voz que atravessa a ribanceira e nem para a vista que já distingue os objetos; o autor supõe que já está clareando.

E Davi disse: “Aqui está a lança do rei. Venha cá um dos teus servos buscá-la! O Senhor retribuirá a cada um conforme a sua justiça e a sua fidelidade. Pois ele te havia entregue hoje em meu poder, mas eu não quis estender a minha mão contra o ungido do Senhor (vv. 22-23).

Nossa liturgia abrevia o diálogo, primeiro com Abner, comandante do exército de Saul (vv. 14s) e depois com Saul (vv. 17-21.24s) que reconhece sua culpa e chama Davi “meu filho” (vv. 17.21.25, fato comum nas intrigas da corte, onde a luta pelo poder colocava pai e filho em lados opostos; (cf. Davi e Absalão em 2Sm 13-18) e o abençoa.

Mas Davi não volta ao palácio, não confia mais em Saul e vai procurar exílio entre os filisteus, inimigos de Israel (cap. 27).

A Bíblia do Peregrino (p. 541) comenta: A narração tem pontos fracos: não explica a primeira visita de inspeção de Davi, não diz por que ele executa a ordem que deu a Abisaí, não justifica a alusão ao exílio. Mas fica clara a intenção do episódio e suas variações em relação ao capítulo e suas variações em relação ao capítulo 24. A magnanimidade de Davi brilha outra vez, unida à sua valentia; prepara-se o exílio forçado; grande parte da culpa recai agora sobre ministros ou cortesãos aludidos; pressente-se a morte próxima de Saul.

Os livros de Samuel podem refletir as reescritas de histórias mais antigas que exaltam Davi em detrimento de Saul, uma polêmica contra Saul que serviu como propaganda pró-Davi. As questões de cronologia levantadas pelos arqueólogos e as questões críticas levantadas pelos estudiosos bíblicos erodiram a visão gloriosa que Davi recebia na tradição posterior.

2ª Leitura: 1Cor 15,45-49

A 2ª leitura de hoje é tirada da terceira parte da abordagem de Paulo sobre a ressurreição da qual alguns membros da comunidade em Corinto duvidaram (v. 12). A doutrina da ressurreição era particularmente difícil de ser aceita pelos gregos. Uns pensavam que tudo terminava com a morte, outros que a alma se separava do corpo e continuava vivendo sozinha, outros “que a ressurreição já se realizou” (2Tm 2,16). Na filosofia neoplatônica, a alma era considerada o essencial da pessoa e a matéria como peso sujo, ou seja, o corpo como prisão do espírito. Se na morte a “alma” se liberta do “corpo”, que sentido tem recuperá-lo, encerrar-se ou enterrar-se outra vez nele? Outros interpretaram a ressurreição puramente espiritual, apenas interior e operado já pelo batismo (cf. Rm 6,3-11; Ef 2,6; Cl 2,12; 3,1-4), ou imaginaram uma ascensão mística para Deus.

Paulo diz que à semelhança do corpo de Cristo ressuscitado, as pessoas passarão por uma transformação total, conservando toda a sua diversidade individual (Rm 8,23). A realidade transcendente, porém, só se explica por meio de comparações. Por isso, a carta compara a morte e ressurreição à semente que morre para reviver de maneira diferente numa planta: “Alguém perguntará? Como ressuscitam os mortos? Insensato! O que semeias, não nasce sem antes morrer. E, quando semeias, não semeias o corpo da planta, que há de nascer, mas o simples grão, como o de trigo, ou de alguma outra planta” (vv. 35-37). A comparação se fixa na incrível diferença entre uma semente enterrada e uma planta crescida e adulta (cf. Mc 4,31-32p; Jo 12,24), e supõe a continuidade ou identidade do sujeito. “Pois assim será também a ressurreição dos mortos. Semeia-se em corrupção e ressuscita-se em incorrupção. Semeia-se em ignomínia, e ressuscita-se em glória. Semeia-se em fraqueza, e ressuscita-se em vigor” (vv. 42s). Se há um corpo natural (psíquico, natural), há também um espiritual (sobrenatural)” (vv. 42-44).

(Irmãos,) assim está escrito: o primeiro homem, Adão, “foi um ser vivo”. O segundo Adão é um espírito vivificante. Veio primeiro não o homem espiritual, mas o homem natural; depois é que veio o homem espiritual. O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre; o segundo homem vem do céu. Como foi o homem terrestre, assim também são as pessoas terrestres; e como é o homem celeste, assim também vão ser as pessoas celestes. E como já refletimos a imagem do homem terrestre, assim também refletiremos a imagem do homem celeste (vv. 45-49).

O que já escreveu em 5,12-21, Paulo continua desenvolvendo: a comparação entre Adão e Cristo, “o segundo Adão” (cf. vv. 21s), agora aplicada ao corpo terrestre e corpo ressuscitado.

Ao consultar Gn 2,7 (na Tradução grega dos Setenta), encontra o termo psychê, que lhe permite confirmar seu argumento. Adão “foi um ser vivo” (Gn 2,7), lit. alma (psychê) viva; isto é, um ser dotado de vida puramente natural e submetido às leis do desgaste e da corrupção, porque esta expressão aplica-se tanto ao homem como aos animais, “seres vivos” (Gn 1,20).

Adão foi tirado “da terra”: segundo Gn 2,7 e sua tradução. Em hebraico, as palavras “Adão” (adam, significa homem) e “terra, argila” (adamá) tem a mesma raiz. Adão é criatura mortal, ao que parece prescindindo do pecado (como em Eclo 17,1-2); Cristo é aqui provavelmente o glorificado (não o preexistente; cf. a antítese em Jo 3,31s).

“Refletir” (lit. trazer) a “imagem” que o pai transmite ao filho (Gn 5,3); a do celeste (Gn 1,26). Já refletimos a imagem de Adão, “homem terrestre” (Gn 2,7), assim também refletiremos a imagem de Cristo ressuscitado, “homem celeste” (Rm 8,29; cf. Cl 1,15; 2Cor 3,17s; 4,4.6; 5,17).

Nossa liturgia omite os vv. 50-53 no final triunfal do capítulo (vv. 50-58). Sobre o modo da ressurreição só se pode falar em comparações, mas sobre o tempo tem um segrego (“mistério”, v. 51) a comunicar: na parusia (quando Jesus voltar), “todos seremos transformados, num instante, … com efeito, é necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade.”

 

Evangelho: Lc 6,27-38

Continuamos ouvir o sermão da planície em Lc (em Mt 5-7 é o sermão da montanha). O amor ao próximo, em particular aos inimigos, ocupa boa parte do discurso programático de Jesus em Lc.

A vós que me escutais, eu digo: (v. 27a).

Dirige-se “a todos os que escutam” (vv. 17-19; cf. Mt 5,1; 7,28), não mais “aos discípulos” apenas (cf. v. 20). Embora esteja formulado em imperativos, não deve ser entendido como novo código legal para regular uma conduta em determinados casos, mas como expressão de um espírito que anima de dentro toda a vida cristã. A motivação não deve ser interesseira; busca precisamente refrear o egoísmo interesseiro. A motivação é o exemplo de Deus Pai (vv. 35b-36), que seu Filho vem revelar (cf. 10,21s), para devolver sua imagem aos homens.

O estilo é aforístico, de frases concisas e incisivas, ligadas ou articuladas em paralelismo e agrupadas em unidades menores. O centro é a chamada “regra de ouro” (v. 31) ligada ao amor aos inimigos.

Amai os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam, e rezai por aqueles que vos caluniam (vv. 27b-28; cf. Mt 5,44).

Convém tomar juntos os quatros verbos, que reúnem e articulam: o afeto ou atitude, “amai”; as obras, “fazei o bem”; as palavras, “bendizei”; a oração “rezai”. Sobre o último pode-se recordar Moisés intercedendo pelo Faraó (Ex 8,25; 9,28s), e Jeremias por seus perseguidores (15,15). Pela oração, o ofendido recomenda a Deus o ofensor e isso é grande benefício; ao mesmo tempo olha ao ofensor numa perspectiva superior. A oração favorece os três atos procedentes. Em Lc, Jesus pratica estas palavras na sua paixão, rezando pelos que o crucificam (23,34).

Se alguém te der uma bofetada numa face, oferece também a outra. Se alguém te tomar o manto, deixa-o levar também a túnica. Dá a quem te pedir e, se alguém tirar o que é teu, não peças que o devolva (vv. 29-30; Mt 5,39-42).

Demonstra a capacidade de suportar a injustiça no corpo ou nas posses. É como um manifesto de não-violência (cf. a campanha de Mahatma Gandhi pela independência da Índia, conseguida em 1947). Em Jo 18,22s, Jesus não oferece a outra face, mas questiona a atitude do guarda violento. O dar é emprestar a fundo perdido, como o aconselha Dt 15,1-11; comparar com as salvaguardas de Eclo 29,1-13.

O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles (v. 31)

É a chamada “Regra de Ouro” (cf. Mt 7,12). Na fonte original Q (perdida na história, mas absorvida em Mt e Lc que a usavam), esta regra estava ligada ao amor aos inimigos.

A Regra de Ouro é universal e existe em várias formas nas muitas filosofias e religiões: por ex. Confúcio (China, 551-479 a.C.): “Uma palavra resume a boa conduta: Não fazer aos outros aquilo que tu mesmo não gostarias que fosse feito a ti”. No AT, Eclo 31,15 (grego): “Julgo por ti mesmo o que o outro (próximo) sente e comporta-te sempre com reflexão”. Sua aplicação abrange desde o cotidiano até o heróico. Comparar o imperativo categórico de Imanuel Kant (Alemanha, 1724-1804): “Aja sempre da maneira que tua conduta possa ser uma lei geral para todos”.

Já o rabbi Hilel (60 a.C.-10 d.C.) viu nela um resumo da lei de Moisés. Na forma negativa (Tb 4,15: “Não faças a ninguém o que não queres que te façam”), ela é a mais comum; é um resumo da ética, uma lógica natural (“lei natural”, quer dizer: não precisa de uma revelação divina para entendê-la, basta seguir a consciência humana). A forma positiva que Jesus apresenta (cf. “amarás o teu próximo como a si mesmo”, Lv 19,18 citado em Mc 12,31p; Rm 13,9; Gl 5,14) é mais exigente e desafia a criatividade: não somente não prejudicar o outro (cf. o Decálogo em Ex 20; Dt 5), sim amar e pensar como posso fazer o bem ao outro. S. Tomás de Aquino (1225-1274) definiu: “amar é fazer o bem ao outro”.

Se alguém procura instintivamente o próprio bem, pense que também os outros procuram. Se duvidar como tratar o próximo, consulte seus próprios desejos. Não somente tratar como o tratam, mas como desejaria que o tratassem. Para tanto promove a iniciativa de fazer o bem, pôr-se na situação do outro, adivinhar seus desejos, sentindo os próprios. Como seria uma sociedade regida por este princípio?

Se amais somente aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Até os pecadores amam aqueles que os amam. E se fazeis o bem somente aos que vos fazem o bem, que recompensa tereis? Até os pecadores fazem assim. E se emprestais somente àqueles de quem esperais receber, que recompensa tereis? Até os pecadores emprestam aos pecadores, para receber de volta a mesma quantia. Ao contrário, amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca (vv. 32-35a; cf. Mt 5,46s).

Repetem-se três normas: amar, fazer o bem, emprestar. Três coisas que homens honestos praticam, só que em limites estreitos e pensando no interesse. O que Jesus propõe é superior, porque derruba os limites da reciprocidade e o motor do interesse.

Então, a vossa recompensa será grande, e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e os maus (v. 35b; cf. Mt 5,45).

A recompensa virá de Deus: “quem se compadece do pobre, empresta ao Senhor” (Pr 19,17). Filho do Altíssimo: o título é usado pelo eclesiástico (Eclo 4,10, encerrando uma situação sobre esmola e beneficência a pobres e oprimidos, órfãos e viúvas, “e Deus te chamará filho”). O título pode ser lido no salmo 82,6, num contexto de administração da justiça em favor do necessitado. Nós diríamos que o filho puxa o pai.

Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso (v. 36; cf. Mt 5,48).

“Compassivo” (misericordioso) é um dos títulos clássicos do Senhor, que se repete em formulas litúrgicas (Ex 34,6; Dt 4,31; Jl 2,13; Jn 4,2; Sl 86,15; 103,8). Agora o tributo pertence a “vosso Pai”; “como um pai se enternece com seus filhos” (Sl 103,13).

Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados. Dai e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será colocada no vosso colo; porque com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos (vv. 37-38; cf. Mt 7,1s; Mc 4,24).

Seguem-se quatro sentenças paralelas, duas negativas (julgar, condenar) e duas positivas (perdoar, dar), cinzeladas por formas correspondentes. Seu alcance se estende a qualquer campo da vida. O cristão não deve erguer-se em juiz do próximo, não deve condenar sem razão, ser indulgente. Isso não suspende o juízo de valores que é parte integrante do sentido moral. A imagem da recompensa refere-se a um recipiente de medir cereais, que ao ser sacudido contém mais, e ao qual depois não passa a rasoura. Deus é compassivo e generoso (Pr 19,17).

A Bíblia do Peregrina (p. 2472) comenta: No centro deste sermão soa a regra de ouro (v. 31), que outros textos e culturas formulam em termos negativos (“não faças a ninguém o que não queres que te façam”, Tb 4,15) e Jesus exprime em forma positiva, muito mais exigente: “fazer”, porque o amor inculcado não se esgota em sentimentos (cf. Is 5,1-7). Aqui se vai à raiz da ética: Fazer o bem e não fazer o mal nas relações com os outros. Por serem recíprocas, permitem traçar um quadro para distinguir casos tópicos que se poderiam ilustrar com exemplos ou textos bíblicos:

Faz mal a outrem sem razão: do que se queixa o salmista (35,7; 6,5);

Mal por mal: pode ser castigo legal ou vingança legitima [a lei do talião: Ex 21,23-25; Lv 24,19s; Dt 19,21]

Mal por bem: máximo agravante (Sl 35,12; 38,21; Pr 17,13; Jr 18,20);

Bem sem razão: por compaixão, por generosidade; Ex 23,4-5 exorta à compaixão pelo asno do inimigo e pelo inimigo;

Bem por bem: se recebido, é agradecimento; não tem mérito especial, segundo vv. 32-33; cf. 1Pd 2,19-23;

Se esperado, é interesseiro: contra isto adverte o v. 34

Bem por mal: 1Sm 24,18; Pr 25,21-22; é o tema central da exortação. Paulo o formula assim: “Não se deixa vencer pelo mal, mas vencer o mal com o bem” (Rm 12,21).

O site da CNBB comenta: A regra do ouro da vida do cristão é resumida por Jesus na frase: “O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles”. Todas as pessoas desejam ser amadas, compreendidas e servidas, por isso, todos devem amar, compreender e servir. Devemos ser diferentes das pessoas que vivem a reciprocidade: devemos viver a gratuidade, ser diferentes dos que vivem fazendo justiça: devemos ser misericordiosos. O critério do nosso agir em relação aos outros não pode ser o agir dos outros, mas sim o próprio Deus, que não nos trata segundo nossas faltas, mas ama a todas as pessoas, indistintamente, com amor eterno e as cumula com a abundância dos seus bens. Se vivermos segundo esse critério, seremos filhos do Altíssimo e será grande a nossa recompensa nos céus.

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