24 de Maio de 2020, Domingo da Ascensão do Senhor : Eis que eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo” (v. 20b).

Solenidade da Ascensão do Senhor 

 1ª Leitura: At 1,1-11

A primeira leitura de hoje apresenta a ascensão do Senhor “quarenta dias” (v. 3) após a Páscoa. Daí procede nossa festa litúrgica da “Ascensão do Senhor”. A data certa seria na quinta-feira passada (40 dias após páscoa); no Brasil, porém, esta festa foi transferida para o domingo seguinte.

No meu primeiro livro, ó Teófilo, já tratei de tudo o que Jesus fez e ensinou, desde o começo, até ao dia em que foi levado para o céu, depois de ter dado instruções pelo Espírito Santo, aos apóstolos que tinha escolhido (vv. 1-2).

Os Atos se dirigem a mesma pessoa a qual o terceiro evangelho se dirigiu na introdução (Lc 1,1-4): “Teófilo”, talvez o patrocinador da obra dupla. Mas como o nome grego Teófilos significa literalmente “amigo de Deus”, pode ser um nome simbólico para qualquer leitor que procura amizade com Deus.

O evangelista que chamamos de Lucas escreveu duas obras, seu evangelho e em seguida os Atos dos apóstolos (lit.: práxeis – prática dos apóstolos). O seu “primeiro livro” é o Evangelho de Lc. Na verdade, todos os quatro evangelhos na Bíblia são obras anônimas que posteriormente se atribuiu a pessoas do âmbito apostólico como possíveis autores. A tradição cristã viu como autor dos Atos (e consequentemente do terceiro evangelho) um companheiro de Paulo, já que a segunda parte do Atos trata das viagens de Paulo, com trechos na primeira pessoa plural (“nós”). O autor escreveu no estilo e na língua grega mais sofisticados em todo Novo Testamento. Nas cartas de Paulo encontra-se entre seus companheiros uma pessoa de boa formação: o “médico Lucas” (Cl 4,14, cf. Fm 24; 2Tm 4,10). Alguns, porém, pensam em Timóteo como autor (ou fonte) dos At, porque os trechos escritos na primeira pessoa (nós) nos At começam exatamente depois da vocação de Timóteo em At 16.

O autor resume o conteúdo da sua primeira obra: o Evangelho tratou de “tudo o que Jesus fez e ensinou, desde o começo, até ao dia em que foi levado para o céu”; desde o começo do ministério de Jesus, e mais precisamente desde o seu batismo (cf. 10,37; Lc 3,23). O Evangelho de Lc iniciou com a infância de Jesus e terminou com sua ascensão em Lc 24,50-53 que os Atos recontam no início. A ascensão de Jesus será designada pelos mesmos termos “arrebatado, (e)levado” em Lc 24,51 e At 1,11.22.

Não se mencionam aqui a paixão e a ressurreição que estão incluídas na ascensão. Para o autor, esta se inicia já em Lc 9,51 com o início da viagem a Jerusalém. Esta viagem era parte central do Evangelho de Lc e servia principalmente para o ensino dos discípulos que se destaca também aqui: “depois de ter dado instruções pelo Espírito Santo, aos apóstolos que tinha escolhido”.

Outras traduções possíveis: “que ele tinha escolhido pelo Espírito Santo” ou então: “ele foi arrebatado pelo Espírito Santo”. Já se menciona o Espírito Santo, aqui relacionado ao ensino de Jesus (cf. Lc 4,14-30 etc.). Os Atos se destacarão pelo protagonismo do Espírito Santo na missão dos discípulos, por isso esta obra foi chamada o “Evangelho do Espírito Santo”.

Em Lc, os “apóstolos” são identificados apenas com os Doze (Lc 6,13, cf. At 1,15-26) como em At 6,2.6. Esse modo de ver, próprio de Lucas, não é, sem dúvida o mais antigo (cf. a exceção em 14,4.14 e as cartas de Paulo que insiste em ser apóstolo também, cf. Rm 1,1; 1Cor 1,1; 2Cor 1,1; 11,5 etc.).

Foi a eles que Jesus se mostrou vivo depois da sua paixão, com numerosas provas. Durante quarenta dias, apareceu-lhes falando do Reino de Deus. Durante uma refeição, deu-lhes esta ordem: “Não vos afasteis de Jerusalém, mas esperai a realização da promessa do Pai, da qual vós me ouvistes falar: ‘João batizou com água; vós, porém, sereis batizados com o Espírito Santo, dentro de poucos dias’” (vv. 3-5).

Na cultura grega imaginava-se apenas a sobrevivência da alma, não a do corpo (cf. At 17,18s.32). Para Lc é importante descrever para seus leitores gregos a ressurreição como fato perceptível, não como fantasma ou delírio (Lc 24,11), por isso as “numerosas provas” de ver, tocar e comer com o Ressuscitado (Lc 24,39-43, cf. Jo 20,20.24-29, 1Jo 1,1-3).

No final do seu Evangelho, Lc parece concentrar em um só dia (“o primeiro da semana”, cf. 24,1.13.33.50) a ressurreição e a ascensão de Jesus (Lc 24,51) que são separadas em At 1,3 por “quarenta dias”. Esses quarenta dias podem ser compreendidos como uma duração-tipo de iniciação ao ensinamento do Ressuscitado ou como o tempo-limite para lançar distantemente as bases da autoridade das primeiríssimas testemunhas.

Os “quarenta dias” marcam a presença visível do Ressuscitado no meio dos discípulos. Este número pode significar o tempo de preparação, como eram os quarenta anos do povo no deserto do Sinai antes de entrar na terra da “promessa”. Após ser batizado por João Batista, cujas palavras são citadas e adaptadas aqui (cf. Lc 3,16p; At 11,16), Jesus ficou quarenta dias no deserto (Lc 4,1p) antes de iniciar sua pregação sobre o “Reino de Deus” (Lc 4,43p), será o tema também da pregação apostólica (At 8,12; 14,22; 19,8; 20,25; 28,23.31).

No dia de Pentecostes, os judeus celebram a “entrega da Lei” no monte Sinai/Horeb. Moisés ficou com Deus quarenta dias nesta montanha (Ex 24,18; 34,28). Elias caminhava quarenta dias para lá (1Rs 19,8). A presença de Moisés diante do Senhor antes de entregar a Lei ao povo pode ter inspirado este tempo de convivência com o Ressuscitado antes da entrega do Espírito.

Os apóstolos devem se preparar para a vinda do Espírito “dentro de poucos dias”, ou seja, no “dia de Pentecostes” (2,1), palavra grega que significa o “50º dia” após a Páscoa (Tb 2,1; cf. Ex 19,1s; Lv 23,15-21). Depois da ascensão de Jesus, os discípulos vão ficar em Jerusalém junto com as mulheres, e rezar por nove dias (a primeira “novena”, cf. 1,12-14). Neste período escolherão um duodécimo apóstolo em substituição de Judas (vv. 15-26). Os Doze simbolizam as doze tribos de Israel.

Então os que estavam reunidos perguntaram a Jesus: “Senhor, é agora que vais restaurar o Reino em Israel?” Jesus respondeu: “Não vos cabe saber os tempos e os momentos que o Pai determinou com a sua própria autoridade. Mas recebereis o poder do Espírito Santo que descerá sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, e até os confins da terra” (vv. 6-8).

A Bíblia do Peregrino (p. 2625) comenta: O breve diálogo revela o horizonte mental dos discípulos, mesmo depois da ressurreição, mas antes de receber o Espírito: uma restauração política de Israel (cf. Mt 17,11; Ab 20-21; Sf 3,19-20). Jesus se nega a predizer datas (Mt 24,36-37; Mc 13,32).

Lc quer esclarecer um mal-entendido: Jesus não veio para “agora … restaurar o reino em Israel” (cf. a restauração nacional em Ml 3,23; Eclo 36,1-17; Mc 9,12, cf. Lc 19,11; 21,8; 24,21; At 15,16s). Seria realizar o sonho de muitos em Israel, a “libertação de Jerusalém” (cf. 2,25.38), mas este sonho foi perseguido por meio violentos, p. ex. atentados terroristas contra os romanos pelos zelotas (partido radical ao qual um dos doze apóstolos pertencia: Simão Cananeu, o zelota, cf. Lc 6,15; At 1,13)

Jesus não era um messias-rei como Davi (cf. 1Sm 18,7), não veio para libertar Israel do poder estrangeiro, mas o povo de Deus do poder do pecado e da morte. Não queria derramar o sangue dos outros, mas o próprio (cf. Hb 3-9). Veio para proclamar o evangelho da misericórdia, não da violência; não queria acabar com os inimigos, mas com a inimizade (Ef 2,14; cf. Lc 6,27s.36; 23,34; At 7,60). Agora precisa anunciar e praticar este evangelho para além de Israel.

Só o Pai sabe a hora (cf. Mc 13,32p) da parusia (volta triunfal do Cristo do céu). Mas os discípulos vão receber o “poder do alto” (Lc 24,49), o dom e a realização da promessa do Pai (cf. v. 4; Lc 24,49), o Espírito Santo que deve capacitá-los a evangelizar (o mesmo Espírito desceu a Jesus na hora do batismo para dar início a sua pregação do seu evangelho, cf. Lc 3,21-22p, 4,1-2.14.18).

A Bíblia do Peregrino (p. 2625s) comenta: O Espírito tradicionalmente comunica força física (Jz 14,6.19) ou espiritual (Is 11,2-3). Os apóstolos a receberão para uma missão particular: ser “testemunhas” de Jesus. A palavra é densa de conteúdo, por sua frequência em todo o NT, em suas variações verbais e nominais. As etapas estão marcadas: Jerusalém, centro; daí, em movimento centrífugo, a Judeia, a semipagã Samaria, os pagãos “até os confins do mundo” (Is 48,20; 49,6; 62,11). Essa consciência de universalidade se deve ao narrador inspirado. Os discípulos levarão tempo para compreendê-la.

Jerusalém permanece no início da evangelização, como o era no início e no fim do Evangelho (Lc 1,9; 2,22.38; 9,51; 24,33.47). Mas os apóstolos serão as testemunhas de Jesus “em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, e até os confins da terra”. Esta frase indica o plano de narração dos Atos: os apóstolos Pedro e João e o diácono Estêvão testemunharão em Jerusalém (caps. 2-7). Pela perseguição, o evangelho começa a se espalhar ao redor (8,1: “Judeia e Samaria”). Finalmente o missionário Paulo leva o evangelho para Europa (cap. 16) e termina em Roma (cap. 28), que será o novo centro da cristandade de onde o evangelho se expandirá “até os confins da terra”.

O testemunho prestado a Cristo é antes de tudo testemunho da sua ressurreição (1,22). Nos Atos, as “testemunhas” são antes de tudo os Doze (1,22; 10,41), mas outros também são igualmente chamados testemunhas, em sentido um pouco diferente (13,31; 22,20).

Depois de dizer isto, Jesus foi levado ao céu, à vista deles. Uma nuvem o encobriu, de forma que seus olhos não mais podiam vê-lo. Os apóstolos continuavam olhando para o céu, enquanto Jesus subia. Apareceram então dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: “Homens da Galileia, por que ficais aqui, parados, olhando para o céu? Esse Jesus que vos foi levado para o céu, virá do mesmo modo como o vistes partir para o céu” (vv. 9-11).

Aqui o autor descreve a ascensão mais detalhada como no final do Evangelho (cf. Lc 24,50-53). Para os outros evangelistas, a ressurreição é a “glorificação” ou exaltação de Jesus, para estar “sentado à direita de Deus” (Lc 22,69p; cf. Sl 110,1). Esta ascensão (cf. Is 52,13) é um acontecimento transcendente, não acessível aos sentidos. Lucas dramatiza o fato, inspirando-se em antecedentes bíblicos, em lendas apócrifas e talvez em modelos helenísticos.

No AT, a “nuvem” é um elemento das manifestações de Deus (cf. Ex 13,21s; 14,20.24; 16,10; 19,16; 24,15-18 etc.; cf. a expressão em Lc 1,35 “cobrir com sua sombra”, e o final da transfiguração em Lc 9,34p). Em Dn 7,13s, o “Filho do homem” está numa nuvem do céu para receber do Ancião (Deus) o poder do reino (cf. Lc 21,27; Mc 14,62p). No mundo greco-romano contavam-se ascensões de heróis ou reis: Hercules, Alexandre Magno, César Augusto, também do taumaturgo Apolônio de Tiana (que realizava muitas curas parecidas com as de Jesus).

Diferente de uma viagem ao céu que atinge apenas a alma (p. ex. Maomé, num sonho subiu de Jerusalém para ver os sete céus e acordou depois), numa ascensão, a pessoa é “arrebatada/levada” com seu corpo todo, que some, carregado por um ventaval, por uma nuvem ou por anjos. Do AT se conhece a referência concisa a Henoc (Gn 5,24; Eclo 44,16) e o relato misterioso, quase litúrgico do rapto do profeta Elias na presença do seu discípulo Eliseu num carro de fogo (2Rs 2,1-13; Eclo 48,9.12; 1Mc 2,58).

Para Lc e seus leitores greco-romanos é importante quem foi elevado ao único Deus: é o messias Jesus; e os At explicam o porquê. A morte de Jesus foi um escândalo difícil de superar e recuperar fé e esperança (cf. Lc 24,19-21; cf. 1Cor 1,22-24). É de dentro da nuvem, ou seja, de dentro de Deus, o ressuscitado queria derramar o Espírito a seu povo em Pentecostes.

A Bíblia do Peregrino (p. 2625) comenta: Lucas adora o esquema vertical, que coloca a divindade na altura celeste (Sl 123,1). Usa o verbo “elevar-se” (“epairo”, raro com este fim) e o corrente “levantar, elevar” (que corresponde ao hebraico “lqh”). Convoca dois personagens masculinos celestes e prefere a nuvem ao carro de fogo (“tomando as nuvens como teu carro”, cf. Sl 104,3). A cena visual se anima com diálogos e instruções … Anjos em figura humana são companhia costumeira em momentos solenes: o nascimento (Lc 2,9), a ressurreição (Mc 16,5).

Os apóstolos não devem ficar “parados, olhando para o céu”, mas se colocar em movimento, assumir a missão para os diversos cantos da terra. Como designação de origem, “Galileia” não se aplica a todos; sim, como designação dos seguidores de Jesus.

O anúncio da volta é conciso, sem indicação alguma temporal. “Virá do mesmo modo”; pura afirmação do fato, garantida por duas testemunhas celestes (cf. Dt 19,15). Jesus, que doravante estará ausente, não cessará no entanto de estar presente à vida da Igreja: sua vinda (parusia) será, portanto, menos uma “volta” do que a manifestação final dessa presença permanente (cf. Mt 28,20).

2ª Leitura: Ef 1,17-23 (facultativas: Ef 4,1-13 ou Ef 4,1-7.11-13)

A segunda leitura apresenta um trecho da carta aos efésios que muitos exegetas consideram uma carta deuteropaulina, ou seja, escrita por um discípulo de Paulo em nome dele, porque difere do estilo do apóstolo que se conhece nas cartas autênticas (Rm, 1-2Cor, Gl, Fl, 1Ts, Fm). Era comum na época, discípulos escrevendo em nome do mestre para dar continuidade no espírito.

O endereço “aos efésios” falta nos manuscritos mais antigos, e talvez esta carta tenha sida uma carta circular para várias comunidades. A carta aos colossenses (Cl) é parecida com Ef e talvez ambas tenham como autor (ou pelo menos referência) um certo “Epafras, servo de Cristo Jesus que sempre luta por vós na oração…” (Cl 4,21, cf. Cl 1,7). Nos vv. anteriores à nossa leitura de hoje diz, “não paro de agradecer por vós quando penso em vós nas minhas orações…”. Em seguida pronuncia três pedidos.

O Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai a quem pertence a glória, vos dê um espírito de sabedoria que vo-lo revele e faça verdadeiramente conhecer (v. 17).

Primeiro pedido: o carisma da sabedoria revelada (cf. Is 11,2s) é um dom do Espírito, não aquisição humana; revelação do mistério ou sensibilidade para “conhecê-lo”: a Deus Pai ou a Jesus Cristo? Pelos vv. que se seguem, pelo teor da carta e textos semelhantes (2Cor 5,16; Fl 3,10), podemos pensar no segundo: conhecer e reconhecer Jesus como Messias, como Filho de Deus Pai (Lc 10,21-22p).

Que ele abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos, e que imenso poder ele exerceu em favor de nós que cremos, de acordo com a sua ação e força onipotente (vv. 18-19).

Segundo pedido: iluminação (Cl 1,12). A “herança” só podemos ter em “esperança”; sendo futura, não vemos (cf. Hb 11,1). Mas uma luz celeste nos permite contemplá-la à distância (cf. Hb 11,9-13): Que ele abra o vosso coração à sua luz” (lit.: que ilumine os olhos do vosso coração), é expressão bíblica (cf. Sl 13,4; 19,9, cf. “na tua luz vemos a luz” em Sl 36,10; sobre o sentido da palavra “esperança”, cf. Cl 1,5).

O termo “santos” designa os membros do povo de Deus, os batizados (cf. 1,1). Mas a perspectiva celeste da carta e suas afinidades com a literatura do judaísmo tardio (ex. Qumran), podem evocar os anjos, a comunidade do céu (cf. Cl 1,12). Pensou-se ainda nos judeu-cristãos, representando o resto santo de Israel, ao qual os pagão-cristãos são associados (cf. Ef 1,12; Rm 15,25). O termo “santos” se generaliza para designar os cristãos em Ef e Cl suplantando o termo “irmãos”.

Ele manifestou sua força em Cristo, quando o ressuscitou dos mortos e o fez sentar-se à sua direita nos céus, bem acima de toda a autoridade, poder, potência, soberania ou qualquer título que se possa mencionar não somente neste mundo, mas ainda no mundo futuro (vv. 20-21).

O terceiro pedido (vv. 19-21) tem a ver com a festa de hoje e faz a transição para a cristologia. Compreender o “poder” extraordinário de Deus, com o qual realiza em Cristo seu projeto admirável (cf. Is 52,13-53,12): a ressurreição como vitória definitiva sobre a morte (1Cor 15,14); a exaltação “à sua direita” (Sl 110,1) como instauração do Reino de Deus (sentar no trono). “Acima de”: as quatro categorias “autoridade, poder, potência, soberania” (cf. Cl 1,16) representam a totalidade cósmica, que pode incluir anjos e exércitos celestes. Seu “título” supremo é “Senhor” (em grego Kyrios, como equivalente do hebraico Yhwh, cf. Fl 2,9-11).

Sim, ele pôs tudo sob os seus pés e fez dele, que está acima de tudo, a Cabeça da Igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que possui a plenitude universal (vv. 22-23).

“Ele pôs tudo sob os seus pés” alude a Sl 8,6s que o atribui simplesmente ao “filho do homem”, ao ser humano. Esse texto e Hb 2,6-8 estreitam a aplicação ao Homem por excelência, Jesus Cristo. Nas cartas paulinas, a Igreja é o corpo de Cristo (Rm 12,5; 1Cor 12,12), nas deuteropaulinas, Cristo é a “Cabeça da Igreja” (Cl 1,18; 2,9.19; Ef 2,22; 4,12-15).

A Bíblia do Peregrina comenta: A frase é densa e ambígua, por isso as interpretações diferem: a) A igreja sujeito plenifica, completa a Cristo, como o corpo completa a cabeça; Cristo plenifica tudo. b) A igreja está cheia de Cristo, o qual… c) A Igreja está cheia daquele que Deus plenificou com sua plenitude (Jo 1,14.16; Cl 1,18-19).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (pág. 2267) comenta:

Lit. “a plenitude (pleroma) daquele que é repleto totalmente em todas as coisas”. Como em Ef 3,19 e 4,13, a Igreja é chamada de plenitude de Cristo (cf. Cl 1,19…). Ela é repleta das riquezas da vida divina por Cristo, que se acha, ele mesmo, repleto por Deus, segundo a afirmação de Cl 2,9-10. Aproximamo-nos das expressões joânicas: o Pai está no Filho, nos discípulos; os discípulos, no mundo (Jo 17,11.20-26; cf. Jo 1,16).

Este versículo difícil é suscetível de receber várias interpretações. É preferível evitar a tradução de “pleroma” por “complemento” (a Igreja, complemento de Cristo). Além da nossa tradução, propõe-se ainda: “a plenitude daquele que repleta tudo em todos” (isto é, a Igreja, plenitude de Cristo que a anima e conduz à sua plenitude, cf. 4,13). Ou ainda: “a plenitude daquele que repleta tudo em todas as coisas” (isto é, a Igreja, plenitude de Cristo que, ele próprio, penetra o universo sob todos os aspectos, cf. 4,10).

 

Evangelho: Mt 28,16-20

Ouvimos hoje o final brilhante do evangelista. Não descreve uma ascensão de modo explícito como Lc, mas indiretamente com as últimas palavras de Jesus, que se despede como Emanuel, o “Deus conosco” (cf. 1,23). A Bíblia do Peregrino (p. 2391) comenta: Para concluir, Mateus compõe uma cena magistral. No espaço de cinco vv. condensa o substancial de sua cristologia e eclesiologia. A Bíblia de Jerusalém (p. 1895) comenta: Nessas ultimas instruções de Jesus, com a promessa que as acompanha, está condensada a missão da Igreja apostólica

Os onze discípulos foram para a Galileia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado. Quando viram Jesus, prostraram-se diante dele. Ainda assim alguns duvidaram (vv. 16-17).

Mt seguiu fielmente ao evangelho mais velho, Mc: Na última ceia, Jesus falou: “Depois que eu ressurgir, eu vos precederei na Galileia” (26,32p; Mc 14,28). No túmulo vazio, o anjo lembrou às mulheres desta palavra (28,7; Mc 16,7). Mas Mc terminou por aqui, não narrou nenhuma aparição. Ou Mc não achava mais necessário porque já contou a transfiguração (Mc 9,2-10), ou se perdeu a última página deste evangelho a qual se reconstruiu posteriormente a partir dos outros evangelhos (Mc 16,9-20 é um acréscimo do séc. II).

Mt e os outros evangelistas narram relatos de aparições do ressuscitado. Em Mt, ele aparece primeiro às mulheres ao voltarem do túmulo reforçando as palavras do anjo (28,9s).

Três vezes se falou da “Galileia” (26,32; 28,7.10), mas não falou do monte. Os discípulos vão a Galileia, como que voltando ao começo e abandonando Jerusalém, aonde foi só para morrer (já em Mc, Galileia é a primavera da atividade de Jesus, onde é acolhido, enquanto Jerusalém é hostil). Ir a Galileia significa então um novo começo, mas não só, para Mt, Galileia designa também uma região semipagã (cf. 4,12-16) em contraste ao centro do judaísmo, Jerusalém.

Jesus os espera num “monte”, numa ascensão simbólica se despedirá. Impossível de identificar esta montanha, porque para Mt e seus leitores judeu-cristãos é um símbolo que alude ao AT (ao monte de Deus Sinai-Horeb, ao monte do templo Sião) e Moisés. Jesus anunciou sua nova interpretação da Lei no sermão da montanha (caps. 5-7); Moisés recebeu a Lei no monte Sinai (Ex 19-34). Jesus subiu à montanha com três discípulos como testemunhas para ser transfigurado em luz; Moisés subiu com alguns escolhidos e seu rosto brilhava ao descer (Ex 24,1.9-13; 34,29). No final de Deuteronômio, Moises entoou um cântico de despedida e abençoou as tribos de Israel (Dt 32-33), depois subiu ao monte Nebo, para ver ainda toda a terra prometida e morrer (Dt 34,1-5). Como sua sepultura não é conhecida (Dt 34,6), apócrifos judaicos falam da sua ascensão (como Elias, cf. 2Rs 2). O monte Nebo é associado também ao monte da tentação em Mt 4,8, porque está perto do rio Jordão.

Os doze discípulos representaram o novo povo de Deus (doze são as tribos de Israel), agora são “onze” (sem Judas que se suicidou, cf. Mt 27,3-10; At 1,15-19) e naquele momento representam toda a Igreja; por isso não falta quem duvide. Veem o ressuscitado e hão de ser suas testemunhas (cf. At 1,8). Alguns “duvidaram”, enquanto outros “prostraram-se” diante dele (gesto de adoração que convém diante de Deus, cf. 2,11; 14,33 e a fé fraca dos mesmos em 8,26). Como Mt não narra outras aparições aos discípulos e nem contou como os discípulos reagiram à mensagem das mulheres, é forçado a mencionar a dúvida aqui, que faz parte dos relatos de aparição (cf. Mc 16,11.14; Lc 24,11.41; Jo 20,24-29).

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1917) comenta: A menção à dúvida causa estranheza: ela segue-se à da adoração, sem ser equilibrada pela do reconhecimento do Senhor, como sucede no esquema clássico das narrativas de aparições (Lc 24,11.37-44; Jo 20,25-27; Mc 16,11.13-14). Por isso, certos estudiosos veem nisto um pormenor acrescido a uma tradição que apresentava o encontro do Senhor vivo com seus discípulos sob a forma de uma “epifania”, aparentada com o anúncio escatológico de Dn 7,14. Outra tradução possível: eles, que tinham duvidado (não de Jesus, mas da palavra das mulheres).

Então Jesus aproximou-se e falou: “Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra. Portanto, ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei! (vv. 18-20a).

Jesus toma a palavra afirmando sua plena autoridade recebida de Deus (aludindo a Dn 7,14; Mt 9,6). A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1917) comenta: Aquele que, no monte da Tentação, não quis receber do demônio o domínio sobre os reinos do mundo (4,9-10) proclama que o recebeu de Deus (cf. Dn 7,14: “ao Filho do Homem foram dados império, honra e reino, e todos os povos, nações e línguas, o adoraram”); e mais: trata-se aqui do “céu e da terra”, segundo a convicção da Igreja primitiva (At 13,33; Rm 1,4; Fl 2,5-11; 1Tm 3,16).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1895) comenta: Cristo glorificado exerce tanto na terra como no céu (6,10; cf. Jo 17,2; Fl 2,10; Ap 12,10) o poder sem limite (Mt 7,29; 9,6; 21,23; etc.), que recebeu de seu Pai (cf. Jo 3,35). “Portanto” os seus discípulos exercerão esse poder em seu nome pelo batismo e pela formação dos cristãos. A sua missão é universal: depois de ter sido anunciada primeiro ao povo de Israel (10,5; 15,24), como exigia o plano divino, a salvação doravante devia ser oferecida a todas as nações (8,11; 21,41; 22,8-10; 24,14.30s; 25,32; 26,13; cf. At 1,8; 13,5; Rm 1,16). Nessa obra de conversão universal, por mais demorada e laboriosa que seja, o Ressuscitado estará vivo e ativo com os seus.

“Ide e fazei discípulos meus todos os povos” ou ainda: De todas as nações, ide fazer discípulos (cf. 2,8; 9,13; 10,6; 11,4; 27,66; 28,7). Estes povos designam aqui não só os pagãos, mas também os judeus (cf. 24,9.14; 25,32). O ressuscitado envia os discípulos para “todos os povos”, agora a missão não está mais limitada aos judeus (10,6; 15,24) cujas autoridades rejeitaram o messias (27,25). Divergindo do seu modo de proceder durante a vida terrena (10,5-6.23; 15,24), Jesus agora cumpre a profecia (Is 42,6; 45,18-20, 49,6).

Os discípulos devem se multiplicar (cf. Gn 1,28; 9,1), não hão de ensinar para serem mestres de muitos discípulos (23,8), mas para “fazer discípulos” de Jesus, como? “Batizando” e “ensinando” (a menção do batismo antes de ensino/catequese apoia o batismo de criancinhas). Como rito de consagração os discípulos administrarão o batismo, com a invocação trinitária explícita (compara-se com a formula de At 2,38; 8,16; 1Cor 1,13; Gl 3,27). Como consequência, deve se viver de acordo com o ensinamento de Jesus.

“Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1917) comenta: “Em nome de” significa que se estabelece uma relação pessoal (cf. 1Cor 1,13; 10,2) do batizado com o Pai, o Filho e o Espirito Santo; designação “trinitária” já conhecida na Igreja primitiva (1Cor 12,3-5; 2Cor 13,13). Provavelmente, a fórmula deriva da pratica da Igreja (cf. Didaqué).

A Bíblia de Jerusalém (p. 1895) comenta: É possível que, em sua forma precisa, essa fórmula reflita influência do uso litúrgico posteriormente fixado na comunidade primitiva. Sabe-se que o livro dos Atos fala em batizar “no nome de Jesus” (cf. At 1,5; 2,38). Mais tarde deve ter-se estabelecido a associação do batizado às três pessoas da Trindade. Quaisquer que tenham sido as variações nesse ponto, a realidade profunda permanece a mesma. O batismo une à pessoa de Jesus Salvador; ora, toda a sua obra salvadora procede do amor do Pai e se completa pela efusão do Espirito.

Eis que eu estarei convosco todos os dias, até ao fim do mundo” (v. 20b).

Estas são as últimas palavras de Jesus em Mt que apresentou Jesus como “Emanuel –Deus conosco” no início no evangelho (1,23), no meio (18,20) e no final. Emanuel era Deus conosco na história do povo eleito (Is 7,14). Agora é Jesus glorificado com sua Igreja para sempre.

Mt também tinha que lidar com o problema da demora da parusia, ou seja, a vinda de Cristo no final dos tempos não é eminente (caps. 24-25), por tanto inaugura-se o tempo da Igreja. É preciso viver e agir nesse tempo com a certeza de que Jesus, não obstante ir-se embora, fica com os discípulos, com a Igreja.

A Tradução Ecumênica da Bíblia (p. 1917) comenta: Com essas palavras, o Ressuscitado reassume e cumpre a figura e a promessa da presença divina do AT (Ex 3,12; Jr 1,8; Is 41,10; 43,5; Mt 1,23). Ele dá a certeza, não só dos dons particulares (Lc 24,48; Jo 20,22), ou mesmo de uma presença duradoura (Mt 18,20), mas de uma assistência eficaz “todos os dias”, mesmo na perseguição. Com isso, está presença assimila-se à do Paráclito de S. João (Jo 14,16; 16,7-11, cf. 1Jo 2,1).

A Nova Bíblia Pastoral (p. 1223) comenta: Se no início do Evangelho se indicava que Deus se faria presente no meio da humanidade por meio de Jesus, agora é Jesus que garante sua presença permanente na comunidade que se compromete a espalhar por todos os cantos, sem preconceitos, a boa notícia do Reino, constituindo novos discípulos que semearão a justiça de Deus.

Um certo paralelo do nosso evangelho está em 2Cr 36,23 que conclui a Bíblia Hebraica com o decreto do rei persa Ciro II: “Assim fala Ciro, rei da Pérsia: O Senhor, Deus do céu, deu-me todos os reinos da terra, e encarregou-me de lhe construir um templo em Jerusalém, que está no país de Judá. Quem dentre vós todos, pertence ao seu povo? Que o Senhor, seu Deus, esteja com ele, e que se ponha a caminho.” Fala do poder universal concedida e da promessa da presença do Senhor. Mas não fala da missão, elemento essencial da Igreja (não do judaísmo). Em vez de convocar os judeus para a Jerusalém, Jesus envia os apóstolos para todos os povos pagãos. O templo reconstruído é o Cristo ressuscitado (Mt 26,61p; 27,39p; Jo 2,18-22) onde os cristãos sentem a presença divina.

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